Texto publicado no Capítulo 7, do livro “Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida – Volume I”, organizado pela professora de direito Larissa Ramina que está sendo lançado pela Editora Íthala, na coleção Mulheres no Direito Internacional, em femenagem a Carol Promer.
Fernando Augusto Henriques Fernandes (1)*
A Doutrina de Segurança Nacional fez o processo de intervenção e golpes na América Latina na Décadas de 60 e 70, sob a influências deturpada do pensamento de Carl von Clausewitz (2)*, transformando a política numa continuação da guerra por outros meios.
Os golpes militares na Guatemala, Equador e Honduras, 1963; deposição do presidente João Goulart, Brasil, 1964; deposição do presidente Victor Paz Estensoro, Bolívia, 1964; intervenção militar na República Dominicana liderada pelo governo dos EUA, 1965; golpes militares na Argentina, 1962, 1966 e 1976; assassinato de Ernesto Che Guevara, Bolívia, 1967; golpe militar no Uruguai, 1973; derrubada do governo socialista de Salvador Allende por um golpe militar comandado por Augusto Pinochet com a colaboração da CIA e da ITT, Chile, 1973 (3)*.
Após o ataque de 11 de setembro os Estados Unidos, assenta-se a ideia, já a partir do governo Clinton, de combate ao “eixo do mal” com o objetivo de “integrar países e organizações de forma a promover um mundo em harmonia com os interesses americanos”. De fato “Os Estados Unidos acreditam que podem governar o mundo sozinhos ou com mera ajuda de vassalos passivos”. Na realidade são reedificações ideológicas. Durante a guerra fria, os Estados Unidos já chamavam a URSS de “Império do Mal” (4) * com o objetivo de “integrar países e organizações de forma a promover um mundo em harmonia com os interesses americanos” (5)*. De fato “Os Estados Unidos acreditam que podem governar o mundo sozinhos ou com mera ajuda de vassalos passivos” (6)*. Na realidade são reedificações ideológicas. Durante a guerra fria, os Estados Unidos já chamavam a URSS de “Império do Mal” (7)*
Para Henry Kissinger: “A passagem americana pela política internacional demonstra o triunfo da fé sobre a experiência” (2001:14). Esse é o horizonte no qual se situa o ideário do Destino Manifesto, compreendendo um conjunto de formulações ideológicas que serviu de estímulo e justificativa para as ações expansionistas dos EUA no continente durante o século XIX. O ideário do Destino Manifesto estabelecia que os norte-americanos haviam construído um país a partir de valores superiores e que, portanto, postularam a missão divina persistente de civilizar as regiões que não tiveram a mesma sorte. Note-se não se tratar apenas de colocar a República norte-americana como um exemplo a ser seguido, mas sobretudo a tarefa supostamente altruísta de criar um mundo a sua imagem e semelhança. seja pela via pacífica, negociada, persuasiva ou a ferro e fogo. É nesse sentido que o Destino Manifesto casa-se com os interesses econômicos, financeiros, políticos, militares, sociais e culturais dos setores dominantes da sociedade norte-americana. A mesma missão civilizadora que supostamente ensina aos outros povos a democracia, a liberdade e a justiça, também garante os negócios, os lucros e o consumismo exacerbado (8)*.
A história de influencia americana na América Latina é antiga, desde o advento do Corolário Roosevelt de 1904. Mesmo no governo de Wilson. que preconizava a autodeterminação dos povos, as intervenções continuaram, como nos casos da Nicarágua, República Dominicana, Haiti, Cuba, Honduras, Panamá e México. Na década de 1920, a despeito da política isolacionista. os governos de W.G. Harding (1921-1923), C. Cootidge (1923.1 929) mantiveram as práticas do Big Stick. Foi no governo de H. Hoover (1929.1933) que os EUA começaram a repensar os paradigmas que orientavam suas intervenções na região.
Até 1930, a supremacia norte-americana na região havia sido construída através de penetração econômica, intervenções atiradas e abertas pressões políticas A década de 70 foi marcada com o fim de uma época de hegemonia benevolente norte-americana e o início de um projeto de dimensão imperial, que se sustentou da “doutrina Monroe através do Corolário Roosevelt à Doutrina Monroe, em 1904, que dava aos EUA o direito de intervenção e interferência direta nos assuntos internos e externos do continente” (9)*.
Com o fim da Guerra Fria a “guerra jurídica assimétrica” (lawfare (10)* passou a substituir as formas de intervenção. Enquanto nos Estados Unidos protege-se a todo o custo a classe política de qualquer intervenção criminal, ‘vende-se’ para o resto do mundo uma ideia de limpeza contra a corrupção. O livro de Glenn Greenwald (11)* destrói essa ideia de equidade nos Estados Unidos trazendo a falta de punição de Nixon, de Bush no escândalo do Iran-Contra, depois Bush filho em relação ao programa de interceptação de americanos, bem como o porquê de não Obama não permitiu a investigação de seu antecessor e daí podemos entender a falta qualquer punição a Obama diante de todo o programa denunciado por Snowden. O Congresso Americano correu para mudar a legislação e proteger suas empresas de telefonia que cooperavam com os programas ilegais de monitoramento de americanos, assim como protege suas grandes empresas de qualquer punição.
Enquanto isso o mundo, e em especial a América Latina (12)*, entendida como “quintal dos Estados Unidos” – como se referiu John Kerry um discurso ante o Comitê de Assuntos Exteriores da Câmara de Representantes em Abril de 2013 (13)* – passou a ter suas classes políticas perseguidas e desacreditadas. A ideia intervencionista é tão presente que John Bolton, conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, que em entrevista em março de 2019 se refere a Doutrina Moroe novamente:
“Neste governo não temos medo de usar a expressão “Doutrina Monroe”. Trata-se de um país no nosso hemisfério. Manter um hemisfério completamente democrático sempre foi o objetivo de presidentes americanos desde Ronald Reagan — afirmou Bolton. — Eu disse, no fim do ano passado, que estávamos buscando o fim da “troica da tirania”, incluindo Cuba, Nicarágua e também Maduro. Parte do problema na Venezuela é a ampla presença de cubanos. São entre 20 mil e 25 mil agentes de segurança segundo os relatórios publicados. E esse é o tipo da coisa que consideramos inaceitável. (14)*
No Equador, em 3 de julho de 2018, quatro dias depois de o vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, visitar Quito e anunciar o fim de “dez anos de tensas relações entre ambos os países” e ter feito acordos com o FMI anunciando privatização de funções que outrora eram realizadas pelo Banco Central (como a gestão e o controle do dinheiro eletrônico), a Corte Nacional de Justiça do Equador ordenou a captura do ex-presidente Rafael Correa, que governou o país de 2007 a 2017 (15)*.
Quando da prisão de Julian Assange, o ex-presidente do Equador Rafael Correia afirmou em entrevista:
Olha, cada vez inventam uma nova acusação contra mim. É uma perseguição brutal. Assim como estão perseguindo o Lula, a Cristina Kirschner, a todos. E porque somos líderes de esquerda não temos direitos humanos! Está em curso um a absurda deturpação midiática e da Justiça. (16)*
Quanto às razões para o atual presidente do Equador ter expulsado Assange da embaixada, dispara terríveis informações:
Porque ele se entregou ao governo dos Estados Unidos desde o princípio, uma traição sem precedentes aos compromissos de campanha. Lembre-se que ele assumiu no dia 24 de maio de 2017. Mas no dia 20 de maio ele se reuniu com o Paul Manafor, ex-chefe de campanha de Donald Trump, antes ainda de assumir, e ofereceu entregar Assange aos Estados Unidos em troca de ajuda financeira ao Equador. E isso aconteceu, porque em fevereiro o Fundo Monetário Internacional (FMI) deu um empréstimo de US$ 4,2 bilhões para o Equador com apoio do governo americano. E no ano passado o vice de Trump, Mike Pence, visitou o Equador e junto com Lenin chegaram a três acordos. O primeiro é isolar a Venezuela regionalmente – basta ver como o Equador está se comportando – o segundo é deixar a Chevron-Texaco na impunidade, deixando de processá-la [por derramamentos massivos de petróleo nos anos 90]. E o terceiro é entregar Assange.
Já em Honduras, o presidente Manuel Zelaya foi deposto por uma decisão do parlamento em processo sumário, sem direito de defesa. A Suprema Corte daquele país determinou a sua prisão sem oitiva prévia e esse foi preso pelo exército e depois expulso do país, tudo contra disposições da Carta Magna daquele país Também Honduras Rafael Callejas, diagnosticado com leucemia em 2018 (17)* foi extraditado para os Estados Unidos reconhecendo sendo processado e reconhecendo ter recebido vantagens da Fifa.
Documentos vazados pelo WikiLeaks revelam que uma mensagem por cabo foi enviada pela embaixada dos Estados Unidos em Tegucigalpa para Washington, endereçada a Tom Shannon, Secretário Assistente para Assuntos de Relação com Ocidente, Harold Koh, Conselho Legal, Dan Restrepo, Conselho de Segurança Nacional e Diretor de Relações para o Ocidente e para a Casa Branca, informando que o que se passava em Honduras era um Golpe de Estado e que o presidente Manoel Zelaya sofria um rapto e sequestro. Mesmo após esse telegrama, um mês depois o Governo Americano dá suporte ao novo regime (18)*.
O documento original é mais que contundente. Nele, afirma-se que “A perspectiva da embaixada é que não existe nenhuma dúvida de que os militares, a Suprema Corte e o Congresso Nacional conspiraram em 28 de junho no que constitui uma ilegal e inconstitucional Golpe contra o Executivo” (19)*.
No Paraguai, em junho de 2012, por sua vez, Fernando Lugo também teve negado direito de defesa, com interpretação da Suprema Corte paraguaia. Outro documento da embaixada de Assunção, em 28 de março de 2009, dava conta de que o General Lino Oviedo e o ex-presidente Nicanor Duarte Frutos estavam trabalhando para assumir o poder por “meios legais” contra o presidente Lugo. A embaixada relatava já haver número suficiente para o que chamava de “Golpe Democrático”. O telegrama relata que a parceria o ex-presidente Nicanor e Oviedo iniciou muito antes de Lugo assumir a presidência em agosto de 2009. O telegrama descreve, ainda, que dois anos antes Duarte usou sua influência e controle sob a Suprema Corte para soltar Oviedo da cadeia. Oviedo estava envolvido na morte do vice-Presidente Luis Argana e o massacre em um protesto de estudantes, cuja a crise foi denominada Março Paraguaio.
O telegrama também afirmou que não havia razões para um impeachment, mas que tudo era possível no Paraguai: “Rumores e a teoria da conspiração são parte do sangue da política do Paraguai, e devem ser vistos como norma. Devemos realmente começar a nos preocupar apenas quando os rumores pararem”20, termina a mensagem (20)*.
No Peru (21)*, as acusações sustentadas pelas delações do ex-presidente Odebrecht vitimaram vários ex-presidentes. Alan Garcia (22)*, ex-chefe do Executivo peruano, cometeu suicídio quando da decretação de sua prisão. Pedro Pablo Kuczynski renunciou à Presidência em março de 2018, e como ex-presidente foi acusado de ter recebido dinheiro da Odebrecht quando ministro do presidente Alexandre Toledo, já condenado. Pedro Pablo então liberou o ex-ditador peruano Alberto Fujimori sob o argumento oficial de “questões humanitárias” (ele sofre de câncer na língua), numa barganha política para tentar evitar o próprio impeachment. Em 16 de abril de 2019 Pedro Pablo foi internado para uma cirurgia, aos 80 anos.
Alejandro Toledo que está nos Estados Unidos enfrenta um processo de Extradição. O ex-presidente Ollanda Humala, um ex-militante da esquerda nacionalista reciclado para um neoliberalismo de centro e grande entusiasta da interação da América Latina (UNASUR), foi preso com sua mulher, Nadine Heredia, sob acusação de receber doações “ilegais” da empresa Odebrecht em 2011.
Uma verdadeira onda de prisões, condenações em toda a América Latina. Em El Salvador, Francisco Flores morreu em janeiro de 2016 em prisão domiciliar, quando sofreu um infarto com edema cerebral severo da artéria média esquerda que teria provocado deterioração neurológica irreversível. Em setembro de 2018, o ex-presidente Elias Antonio Saca foi preso e condenado. Também o presidente Mauricio Funes – de esquerda e eleito em 2009 com 51,27% dos votos pelo ex-movimento guerrilheiro Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN) – teve em 2016 uma ordem de prisão decretada e pediu asilo a Nicarágua. Ao assumir a Presidência, reativou as relações diplomáticas com Cuba e afirmou “possível criar novos modelos, como Barack Obama e Luiz Inácio Lula da Silva”. Esse caos de destruição das lideranças políticas fez um “out-sider” de centro direita vencer as eleições em 2019, o publicitário de 37 anos Nayib Bukele,
Na Guatemala, também foram envolvidos em processo Otto Pérez Molina. Afonso Portillo Cabrera, ex-presidente, foi extraditado para os Estados Unidos em 2013. No Panamá, Ricardo Martinelli (2009-2014), foi preso em Miami, em 2017. Na Nicarágua, Arnolo Alemán (de direita, que governou o país de 1997-2002) foi condenado em 2003 e em 2009, mas a Suprema Corte anulou a condenação.
Na Argentina, Cristina Kirchner, presidente de 2007 a 2015, apenas não foi presa em razão da imunidade de que goza como senadora e enfrenta dois processos em que é acusada, em um deles, de acobertar criminosos iranianos envolvidos no atentado contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), que deixou 85 mortos em 1994, bem como de direcionar cinquenta e dois contratos de uma obra pública para favorecer um empresário. O ex-presidente Carlos Menem (1989-1999), foi detido em 2001 acusado de venda ilegal de armas para a Croácia e o Equador, entre 1991 e 1994. A Suprema Corte o liberou, mas em 2014 Menem foi condenado a sete anos de prisão.
No Chile, a presidente Michelle Bachelet enfrentou durante o governo acusações de ter recebido para campanha valores da empreiteira brasileira OAS. A ex-presidente foi presa e torturada durante o regime Pinochet e o Chile enfrentou sanções e rebaixamento do Banco Mundial durante seu governo. O filho de Bachelet foi indiciado em 2018 e também a nora de Bachelet é processada. Em agosto de 2018 foi nomeada alta-comissária da ONU para os direitos humanos (23)* com oposição dos Estados Unidos e Israel.
Na Colômbia, em 9 de abril 2018, também foi extraditado o deputado eleito pelo novo partido das FARC, Jesús Santric, um dos responsáveis pela implementação dos Acordos de Paz no país. Alegou-se um suposto delito de conspiração para exportar cocaína aos Estados Unidos. Por isso, Santric não conseguiu tomar posse em sua vaga na Câmara Legislativa, apesar de não existir acusação alguma contra ele na Colômbia.
Nada disso seria possível se os Estados Unidos não prosseguissem o que iniciaram no pós-Segunda Guerra. O “Grande Irmão” influenciou os militares da América Latina sob a doutrina da Segurança Nacional (24)*, sobre a onda do inimigo interno. Após a eleição do novo inimigo na figura do traficante de drogas, ainda misturado com o combate ao ‘comunista’ (25)*, surge nova possibilidade de intervenção e influencia na América Latina. Na pós-modernidade, a eleição das pautas travestidas de combate ao terrorismo, money laundering, organized crime, plea bargain, possibilitam nova intervenção e supressão de direitos, sob as vestes do combate à corrupção. Corrupção eleita sob os atos que atrapalham os interesses americanos. Tudo, no fim, visava a “deslegitimação da classe política” (26)*.
No Brasil, maior país da América Latina, isso fica claro. Por anos, houve controle da atuação Polícia Federal por parte da DEA, a Drug Enforcement Administration dos Estados Unidos, e suas pautas. O WikiLeaks (27)* revelou a participação do ex-juiz federal Sergio Moro em um encontro desenvolvido pela embaixada americana para treinamento de juízes e promotores brasileiros, parte do Projeto Pontes. Tal ‘encontro’ foi parte da estratégia de influência americana e, em 2009, como um “guarda-chuva” de um “novo conceito de treinamento”, com a presença de juízes federais de 26 estados da federação, 50 agentes da polícia federal, bem como 30 autoridades estaduais, entre promotores e juízes.
O treinamento, conforme relatado na mensagem oficial vazada, “foi realizado na capital regional do Rio de Janeiro e financiada pelo Coordenador do Estado para Contraterrorismo [orig. State’s Coordinator for Counter Terrorism (S/CT)]”. O documento destaca “que [os brasileiros] historicamente sempre evitaram qualquer treinamento que tomasse por objeto o terrorismo, preferindo terminologia mais genérica como crimes transnacionais”. No documento constam referências às palavras da “Vice-coordenadora para Contraterrorismo na S/CT, Shari Villarosa”, que “está elogiando juízes e policiais brasileiros, que militam na direção oposta à do governo eleito e seu Ministério de Relações Exteriores”. O ex-juiz federal Sergio Moro estava presente e falou sobre lavagem de ilícitos.
A metodologia indiciária (28)* na pesquisa sociológica torna “elementar meu caro Watson” que a influência americana se alastrou em nossas forças policiais e judiciárias e, através, delas possibilitou a Lava-Jato. Não é à toa que passada a eleição Sérgio Moro foi nomeado Ministro da Justiça, convite que chegou antes da eleição (29)*, e que a primeira viagem de Bolsonaro foi para o Estados Unidos, onde foi o primeiro presidente latino-americano a visitar a CIA (30)*. Marcelo da Costa Bretas, o juiz do Rio de Janeiro que seguiu os passos de Moro, participou da Visiting Foreing Judicial Fellow (31)*. Bretas participou do treinamento do projeto Pontes? Seria uma das autoridades presentes? O procurador Deltan Dellagnol foi doutrinado por Scott Brewer (32)* em uma ideologia do processo penal como um jogo de argumentos retóricos. Ele participou do projeto Pontes?
É preciso lembrar que esse documento data de 2009 e a operação Lava-Jato ocorre em 2016. O documento termina com afirmação de que os brasileiros terão experiência em campo do trabalho de uma força tarefa proativa num caso de finanças ilícitas, e darão acesso a especialistas dos EUA para orientação e apoio em tempo real em Curitiba, São Paulo e Mato Grosso.
Nesse jogo de retórica, Deltan Dellagnol criou o power point apontando Lula como responsável por todos os atos de corrupção que ocorreram quando era presidente. Sérgio Moro é coautor e “vazava como uma peneira” (33)* com o objetivo de manipulação da imprensa. Os fundamentos garantistas da Constituição de 1988, consubstanciados na presunção de inocência (art. 5º , LVII da Constituição Federal) é substituído por um jogo de retórica que visa exclusivamente legitimar uma condenação. O processo em que Lula é acusado de ter recebido um apartamento tríplex é um exemplo grotesco disso. O ex-presidente nunca recebeu efetivamente o apartamento. Jamais teve a posse do mesmo. Mesmo assim o fato não foi considerado nem mera cogitação, ato preparatório ou tentativa (art. 14, II do Código Penal). O mais grave é que nenhum pedido de vantagem foi apontado ou identificado. Nenhum ato de ofício foi precisado, mas um ato genérico. A decisão da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, na Ação Penal nº. 5046512-94.2016.4.04.7000/PR que condenou o ex-presidente Lula também afirma sua absoluta exceção. O Des. Relator admitiu a especial condição de exceção do caso:
No caso, a corrupção passiva perpetrada pelo réu difere do padrão dos processos já julgados relacionados à ‘Operação Lava-Jato’. Não se exige a demonstração de participação ativa de LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA em cada um dos contratos. O réu, em verdade, era o garantidor de um esquema maior, que tinha por finalidade incrementar de modo sub-reptício o financiamento de partidos, pelo que agia nos bastidores para nomeações e manutenções de agentes públicos em cargos chaves para a empreitada criminosa.
Das provas testemunhais e dos interrogatórios acima reproduzidos é possível apurar o contraste entre as versões da acusação e da defesa. Um único ponto, todavia, deve ficar desde logo demarcado. As provas são seguras quanto à inexistência de transferência da propriedade no registro imobiliário em favor do apelante LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA ou sua esposa e quanto à não ocorrência da transferência da posse.
O processo contou com condução coercitiva do ex-presidente (04/03/2016) por um aparato militar; com divulgação de conversa gravada do ex-presidente Lula com a presidente em exercício, Dilma Rousseff (16/03/2016). Na decisão da CORTE ESPECIAL nº 0003021-32.2016.4.04.8000/RS o Des. Federal Rômulo Pizzolatti considerou que não se está “Dentro do âmbito de normalidade” e que a norma jurídica incide no plano da normalidade, não se aplicando a situações excepcionais”, se socorrendo ao argumento de exceção. Foi voto vencido o Desembargador Rogério Favreto.
O presidente Lula passou a responder a inúmeros processos enquanto encarcerado (desde 07/04/2018), foi impedido de concorrer a eleição pelo TSE, apesar de determinação do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Impedido de falar e manifestar seu pensamento, apesar de decisão do Ministro Lewandoski (Rcl. nº 32111) já que uma decisão liminar do Ministro Fux (SL 1178), como presidente em exercício do Supremo Tribunal Federal, o impediu. O presidente do STF, Dias Toffoli, manteve a liminar de censura.
O ex-presidente Lula ainda foi impedido de participar do enterro do seu irmão (30/01/2018) direito previsto do preso (art. 120 da Lei de Execução Penal). Registre-se que nem durante sua prisão na ditadura de 1964, já que em 1980 como preso Lula foi ao enterro da mãe. Posteriormente, diante do falecimento do seu neto, teve um aparato militar para levá-lo ao enterro.
A estratégia é de constante destruição da imagem do Lula, sua exposição pública com acusações prévias, típico do lawfare, que no caso específico não só visou a destruição de Lula como inimigo, mas em larga escala a destruição da credibilidade de toda a classe política, causando uma um descrédito no próprio sistema democrático e de representação.
O efeito do descrédito e da desesperança do povo deu oportunidade a discursos radicais e a eleição de Bolsonaro, que há anos defende tortura, morte, ditadura, militares, homofobia.
Ao mesmo tempo, inflama o radicalismo penal, com a fragmentação dos ideais humanistas e democráticos e a proposta de endurecimento de leis. O Presidente já se manifestou defendendo a isenção de pena a policiais que praticam homicídios; e que fazendeiros e ruralistas devem ter o direito de matar quem invade suas terras. Não se trata mais de criminalizar movimento sociais, mas de criar a legalização de verdadeiros esquadrões da morte.
O momento histórico em que vivemos, com avanço do neoliberalismo e a defesa de estado mínimo na economia, que acarreta no desmonte de direitos sociais e trabalhistas, somado com o estado máximo repressor, tem consequências ainda imprevisíveis. A resistência e essencialmente a defesa nessa guerra híbrida do lawfare está principalmente na conscientização da conjuntura, e das estratégias de dominação que nossos países latinos-americanos sofrem. Isso porque o novo proletariado pós-moderno, sem sequer relação formal de emprego, irá se aprofundar na precariedade de uma sobrevivência abandonada.
O grau de consciência vai determinar se iremos nos aprofundar no estado penal máximo ou se conseguiremos retornar ao desenvolvimento da retirada das pessoas da linha de pobreza e o resgate dos direitos. Ou seja, isso irá determinar nosso grau de “Insuficiência Imunológica Psíquica” (34)* de nos repetirmos na nossa fatídica história de servir aos interesses do Big Brother.
Há três conceitos fundamentais para chegarmos à conclusão. O futuro-presente, em que passado, presente e futuro se entrelaçam. Assim, o futuro presentificado no dia de hoje (futuro-presente) projeta o presente futuro do dia de amanhã e ambos interagem com o futuro-passado, isto é, aquilo que, no passado se vislumbrava como futuro. Há, pois uma memória do futuro (35)* (aquilo que poderia ter sido) e que condiciona a memória do futuro presente” (36).
Sob essa perspectiva, o governo de João Goulart nos projetava um futuro-passado que foi interrompido com o Golpe de 1964. Acabamos de ter uma nova ruptura quase quântica. Nosso futuro, agora passado, nos projetava para um país a caminho de mais igualdades, direitos, inclusão social, diversidade e isso não mais se projeta no futuro-presente. Mas essa memória do futuro (aquilo que poderia ter sido), ainda presente e cravado no coração de nosso povo, pode nos dar a chance de transformar esse futuro passado em um futuro promissor.
Esta obra, em homenagem a Carol Proner, é merecida em razão de sua resistência, como no processo de impeachment de Dilma Rousseff (37)* assim como na denuncia a farsa do processo de Lula (38)*. O Supremo Tribunal Federal anulou as condenações de Lula. As consequências, no entanto, da atuação do judiciário à democracia brasileira são deletérias e de longa duração. Entender a Guerra Híbrida (lawfare) nos permitirá resistir e nos reencontramos com o futuro que a história interrompida da América Latina nos projeta.
Notas de Rodapé
1- Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Mestre em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Cândido Mendes (UCAM).
2 – CLAUSEWITZ, Carl. Da Guerra. Trad. por Maria Teresa Ramos. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
3 – SANTOS, Marcelo. O poder norte-americano e a América Latina. São Paulo: FAPESP, 2007.
4 – SANTOS, Theotonio dos; DUPAS, Gilberto (Coord.). A nova doutrina de segurança internacional dos Estados Unidos e os impasses na governabilidade global. In: Os impasses da Globalização – Hegemonia e contra-hegemonia, 2006, p. 197.
5 – SANTOS, Theotonio dos; DUPAS, Gilberto (Coord.). A nova doutrina de segurança internacional dos Estados Unidos e os impasses na governabilidade global. In: Os impasses da Globalização – Hegemonia e contra-hegemonia, 2006, p. 200.
6 – SANTOS, Theotonio dos; DUPAS, Gilberto (Coord.). A nova doutrina de segurança internacional dos Estados Unidos e os impasses na governabilidade global. In: Os impasses da Globalização – Hegemonia e contra-hegemonia, 2006, p. 206.
7 – SANTOS, Marcelo. O poder norte-americano e a América Latina. São Paulo: FAPESP, 2007.
8 – Ibid.
9 – SANTOS, Marcelo. O poder norte-americano e a América Latina. São Paulo: FAPESP, 2007.
10 – FERNANDES, Augusto Fernando. Geopolítica da Intervenção – A verdadeira História da Lava Jato, p. 75, na nota 53 – A professora Carol Proner descreve lawfare como um método de Guerra não tradicional pelo qual a lei, através de sua legitimidade e de seus atores (juízes, promotores e policiais) é utilizada como um meio para alcançar objetivo militar, desestabilizando ou substituindo governos. Cf. PRONER, Carol. Lawfare como herramienta de los neofascismos, 2019.
11 – GREENWALD, Glenn. With Liberty and Justice for Some – How the law is used to Destroy Equality and Protect the Powerful. Nova Iorque: Picador, 2011.
12 – O acesso aos recursos naturais como água, minério e petróleo são considerados “explicitamente, um assunto de segurança para os Estados Unidos”, cfe. BRUCKMANN, Monica. Ou inventamos ou erramos: a nova conjuntura latino-americana e o pensamento crítico, 2011, p. 293.
13 – Sul21. John Kerry um discurso ante o Comitê de Assuntos Exteriores da Câmara de Representantes em Abril de 2018, 2013. Disponível em: https://www.sul21.com.br/postsrascunho/2013/04/o-secretario-de-estado-estadunidense-john-kerryn-chama-a-america-latina-de-quintal-dos-eua/. Acesso em: 02 maio 2019.
14 – JORNAL O GLOBO. Assessor de Trump evoca Doutrina Monroe, que justificou intervenções na América Latina, ao comentar cenário na Venezuela, 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/ assessor-de-trump-evoca-doutrina-monroe-que-justificou-intervencoes-na-america-latina-ao-comentar-cenario-na-venezuela-23496229. Acesso em: 02 maio 2019.
15 – Carta Maior, Lawfare: as masmorras da política latino-americana, 2018. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Estado-Democratico-de-Direito/Lawfare-as-masmorras-da-politica-latino-americana/40/40888. Acesso em: 01 maio 2019.
16 – Disponível em: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/para-rafael-correa-prisao-de-assange-e–vinganca-pessoal-do-presidente-equatoriano/ e https://exame.abril.com.br/mundo/prisao-de-assange-e-vinganca-de-lenin-moreno-diz-ex-presidente-do-equador/. Acesso em: 24 abr. 2019.
17 – Disponível em: https://www.elheraldo.hn/pais/1162678-466/rafael-callejas-expresidente-de-honduras–inició-el-proceso-de-quimioterapia-tras-ser.
18 – HuffPost, WikiLeaks Honduras: State Dept. Busted on Support of Coup, 2010. Disponível em: https:// www.huffpost.com/entry/wikileaks-honduras-state_b_789282, acesso em 24/04/2019.
19 – Disponível em: <https://www.wikileaks.org/plusd/cables/09TEGUCIGALPA645_a.html>. Acesso em: 24 abr. 2019.
20 – Disponível em: https://wikileaks.org/plusd/cables/09ASUNCION189_a.html. Acesso em: 24 abr. 2019.
21 Quanto aos interesses específicos dos Estados Unidos em relação ao Peru, vale a citação de Monica Bruckmann (2011, p. 296): “Nesta complexidade de interesses em jogo existe um aspecto de fundo que se coloca no centro da disputa: a apropriação dos recursos minerais, petróleo e gás natural que o território peruano abriga. Para isto, iniciou-se desde na década de 1990, uma política de desregulamentação dos investimentos estrangeiros no Peru, que inclui remessas de lucros e fluxos financeiros; a criação de um quadro legal que permite a impunidade das forças policiais e forças armadas em suas operações repressivas; o loteamento da Amazônia peruana para prospecção e exploração e de petróleo e gás natural através de contratos de longa duração com empresas transnacionais. Tudo isto constitui uma situação de perda de soberania crecente em relação aos recursos naturais e as decisões econômicas e políticas.”
22 – Sobre o vínculo do governo Alan Garcia com os interesses americanos, ver BRUCKMANN, Monica. Ou inventamos ou erramos: a nova conjuntura latino-americana e o pensamento crítico, 2011, p. 293.
23 – Nações Unidas, Ex-presidente do Chile é oficialmente nomeada chefe de direitos humanos da ONU, 2018. Disponível em: https://nacoesunidas.org/ex-presidente-do-chile-e-oficialmente-nomeada-chefe–de-direitos-humanos-da-onu/. Acesso em: 01 maio 2019.
24 – FERNANDES, Fernando Augusto Henriques. Voz humana: a defesa perante os tribunais da República. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
25 – Leia mais: https://apublica.org/2013/04/dea-caneppa-policia-federal-operacao-condo/. Acesso em: 01 maio 2019.
26 – MORO, Sergio Fernando. Considerações sobre a operação mani pulite, 2014. Disponível em: https:// www.conjur.com.br/dl/artigo-moro-mani-pulite.pdf. Acesso em: 01 maio 2019.
27 – Disponível em: https://wikileaks.org/plusd/cables/09BRASILIA1282_a.html, tradução disponível em http://www.patrialatina.com.br/da-vergonha-mas-e-preciso-ler-o-telegrama-moro-wikileaks. Acessos em: 24 abr. 2019.
28 – GINSBURG, Carlo. Sinais: RAÍZES DE UM PARADIGMA INDICIÁRIO”. In: GINSBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 143-179. Ver também Gisálio Cerqueira Filho.
29 – Folha de S. Paulo. Confirmado ministro da Justiça, Sergio Moro se contradiz sobre convite ao cargo, 2018. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/11/07/ministro-sergio-moro/. Acesso em: 24 abr. 2019.
30 – Global News. Brazil President Jair Bolsonaro visits CIA HQ. A critic called it an “explicitly submissive position”, 2019. Disponível em: https://globalnews.ca/news/5070744/jair-bolsonaro-cia-visit/. Acesso em: 24 abr. 2019.
31 – Cfe. http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4355003J1. Acesso em: 01 maio 2019.
32 – O Estado de S. Paulo, Em livro, Deltan Dallagnol contraria tese de Cármen Lucia, 2017. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,em-livro-deltan-dallagnol-contraria-tese-de-carmen-lucia,70001653480. Acesso em: 01 maio 2019.
33 – MORO, Sergio Fernando. Considerações sobre a operação mani pulite, 2014. Disponível em: https:// www.conjur.com.br/dl/artigo-moro-mani-pulite.pdf. Acesso em: 01 maio 2019.
34 – BERLINCK, M. T. (1997). A insuficiência imunológica psíquica. Boletim de Novidades da Livraria Pulsional, 10(103), 5-14. Berlinck trata no texto intitulado “Insuficiência imunológica psíquica” em que analisa a colonização espanhola e a resistência guerrilheira no regime de 1964 afirma que “O aparelho psíquico é, desde os começos da psicanálise, uma construção que responde à violência primordial que ameaça a existência física do sujeito e da espécie e, ao mesmo tempo, é insuficiente para proteger o sujeito de ataques virulentos tanto internos como externos”. Quanto às características, ensina que “Observa-se, também, que pacientes com insuficiência imunológica têm uma estrutura psíquica muito semelhante à dos índios centro-americanos descritos por Frei Bartolomé de las Casas. Não só revelam uma grande incapacidade de se proteger contra ataques virulentos externos, como há uma disponibilidade a ataques virulentos endógenos que frequentemente levam à destruição. in http://egp.dreamhosters.com/EGP/insuficiencia_imunologica.shtml. Verifica-se entre os ex-presidentes suicídios, doenças cardíacas, leucemia, certamente somatização de um lawfare com a lógica da guerra-absoluta (guerra fria).
35 – Para se compreender melhor, no presente o imaginário projeta um futuro, que chamamos de futuro-presente. No entanto algo pode ocorrer que impeça que esse futuro ocorra. Assim quando o tempo passa o futuro não representa aquele futuro imaginado, desejado (futuro passado). No entanto, esse futuro passado continuara a existir como possibilidade, como imaginário.
36 – LECHNER, Norberto. Lãs Sombras del Mañana: la dimensión subjetiva de la política. Santiago de Chile: LOM ediciones, 2002. Ver ainda KOSSELECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. Apud Gisálio Cerqueira Filho, Sérgio (modernista) Buarque de Holanda em A Viagem a Nápoles. Disponível em:http://www.fundamentalpsychopathology.org.br/uploads/files/coloquios/coloquio_metodo_clinico/mesas_redondas/sergio_modernista_buarque_de_holanda_em_a_viagem_a_napoles.pdf.
37 – PRONER, Carol (Org.). A resistência ao Golpe de 2016. Bauru: Canal 6, 2016.
38 – PRONER, Carol; CITTADINO, Gisele. RICOBOM, Gisele; DORNELLES, João Ricardo (Orgs). Comentários a uma sentença anunciada – O processo Lula.Bauru: Canal 6, 2017.
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