Durante o ano de 2019 o Brasil experimentou um significativo aumento na veiculação de discursos de ódio. Muitas foram as notícias que escandalizaram a sociedade, e uma das mais recentes foram atos públicos de cidadãos apoiando o nazismo. O primeiro deles é um homem, em um bar localizando em Minas Gerais, que foi flagrando ostentando em seu braço uma cruz suástica (1). A outra foi de um garoto em Curitiba, que, de igual forma, ostentava em seu braço uma cruz suástica (2).
Com o intuído de evitar manifestações em apoio ao nazismo, o legislador editou o § 1°, do artigo 20, da Lei de Crimes Raciais (Lei n. 7.16/89), atribuindo pena de dois a cinco anos e multa para a prática de fabricação, comercialização, distribuição ou veiculação de
Símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.
Ora, em ambos os casos relatados acima os agentes levavam consigo, à mostra e em locais públicos, uma cruz suástica, fazendo sua transmissão/propagação a um número indeterminado de pessoas, afetando-as diretamente, veiculando desta forma o símbolo e ideologia da suástica, que representa, sem dúvida alguma, um dos períodos mais assombrosos de nossa história – consumado está o delito acima mencionado.
Pois bem, o artigo 301, do Código Processo Penal, estabelece que “qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”. Na hipótese estamos diante de um caso especial de exercício de função pública pelo particular, excepcionado a regra de que o Estado somente pode praticar atos de coerção por meio de seus órgãos. Se trata da única modalidade de prisão em nosso ordenamento que não exige a precedência de uma ordem escrita emanada de autoridade competente, conferindo não só ao agente público a obrigatoriedade de efetivação da prisão como também a possibilidade de o particular também efetivar a respectiva prisão (3) – ou seja, o dispositivo legal contempla aos cidadãos uma faculdade de exercício de um direito, qual seja, dar voz de prisão àquele que for flagrado cometendo um crime.
Como resultado, quem se deparar com o ato criminoso praticado por quem ostenta em suas vestes a suástica, veiculando imagem que evoca o nazismo, pode determinar a prisão do criminoso. Ao efetuar a prisão em flagrante o particular, no caso, pode fazê-lo com fundamento no delito descrito na Lei de Crimes Raciais, devendo, de pronto, alertar a autoridade policial.
Com efeito, a resistência à veiculação e divulgação de símbolos e ideologias referentes ao regime nazista deve ser levada seriamente. Nunca é demais recordar que o holocausto judeu é a marca da crueldade do regime nazista, que perseguiu também negros, homossexuais, ciganos, maçons, comunistas, testemunhas de jeová, e deficientes.
Aliás, a reação às agressões de regimes como o nazista contribuíram para o desenvolvimento dos direitos humanos como direitos de observação fundamental, alavancados pela formatação de políticas e princípios que exigem respeito às diversidades culturais, políticas, religiosas e étnicas mundiais.
Nesse contexto é possível entender que um cidadão que olha com indiferença ao portador da suástica, ainda que sob o pretexto de garantir a liberdade de expressão do delinquente, favorece, em contrapartida, uma situação de banalização do mal (4). Daí que em defesa de temas de direitos humanos é necessário discernir o momento de reagir à intolerância, evidentemente não como um ímpeto de desejo pessoal, mas como cumprimento da lei e exigência de justiça (5).
O filósofo Karl Raimund Popper, em seu livro a sociedade aberta e seus inimigos, define o paradoxo de tolerância, esclarecendo que a sociedade deve ser tolerante, mas conduto deve agir com intolerância a atos de intolerância, a fim de que a própria intolerância não suprima a tolerância. Em suas palavras
A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada, mesmo para aqueles que são intolerantes, e se não estamos preparados para defender uma sociedade tolerante contra o ataque dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos e tolerância com eles. (6)
A memória dos mortos e perseguidos pelo regime nazista e a proteção estabelecida pela Lei de Crimes Raciais a fim de evitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia ou religião (art. 20 da Lei 7716/89) é afrontada pela veiculação pública do símbolo do nazismo nos braços dos delinquentes. Ao ostentarem o símbolo em espaços públicos confrontam a lei afirmando a ideologia nazista, portanto, é plenamente possível atestar o estado de flagrância do crime de símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo (art. 20, § 1º, da Lei 7716/89).
Desse modo, havendo o crime em estado de flagrância, pode o cidadão opor-se à conduta daquele que divulga símbolo nazista e utilizar do direito de declarar a prisão em flagrante do criminoso. Esta faculdade do particular representa uma forma da sociedade agir junto às regulares autoridades policiais para contribuir com a efetividade da proteção do bem jurídico protegido pela legislação referida. É, na prática, a realização do que identificou Ingo Sarlet ao asseverar que
Infelizmente os valores da dignidade humana, da vida e da liberdade não alcançam total efetividade, gerando, assim, a necessidade de uma ação conjunto e responsável por parte da sociedade e do Estado. (7)
Indubitavelmente manifestações favoráveis ao nazismo erguem a bandeira da intolerância – é o que faz aquele que veicula a suástica em público, este divulga o nazismo e incita a discriminação e o preconceito. Todos nós, cidadãos, podemos nos valer da lei para repreender tal comportamento.
(3) MINAGÉ, Thiago. Prisões e medidas cautelares à luz da constituição. Florianópolis: Tirant lo blanch, 2019, p. 245.
(4) “alguns de meus melhores amigos são anti-semitas” – teria dito Adolf Eichman, tal como relato por ARENDT, Hannah. Eichman em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2013, p. 37.
(5) ARENDT, Hannah. op. cit. p. 283.
(6) POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.
(7) SARLET, Ingo. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 58.
Fonte: Canal Ciências Criminais