Dever de sigilo na investigação defensiva frente às prerrogativas da advocacia

O Provimento 188/2018 do Conselho Federal da OAB é um marco normativo para o exercício pleno da advocacia e do direito à ampla defesa, sobretudo na área criminal — mas não restrita a ela. O provimento oferece diretrizes para a advocacia praticar a investigação defensiva, tema que vem ganhando notoriedade no país (ainda que com alguns anos de atraso em relação a países como os Estados Unidos ou mesmo países europeus de tradição continental, como a Itália).

O provimento representa um primeiro passo em um debate que engatinha no país. A lentidão do legislador em definir regulamentação legal sobre a investigação defensiva[1] é contraposta pela urgência da Advocacia militante em realizar com segurança suas próprias diligências investigativas, isto porque técnica se revela instrumento que contribui à essencial paridade de armas entre acusação e defesa e mesmo a efetividade da administração da justiça.

À guisa de legislação específica, o provimento da OAB constitui a única fonte de recomendações para o advogado que se incumbe de realizar práticas investigativas em favor de seus clientes. Embora o provimento em muito auxilie o profissional, oferece pouca garantia quando estão em jogo questões mais complexas, que carecem de uma normatização efetiva para serem aplicadas na prática com segurança.

Entre os pontos duvidosos na realização da investigação defensiva está a compatibilização da atividade investigativa pela defesa com as prerrogativas da advocacia, sobretudo no que diz respeito ao sigilo profissional.

Sabe-se que o sigilo profissional é direito (artigo 7º, XIX, do Estatuto da Advocacia) do advogado, essencial para o exercício de seu múnus público, correlato ao dever de confidencialidade estatuído pelo seu código deontológico (especialmente artigos 35 e 36 do Código de Ética e Disciplina da OAB). Deriva da inviolabilidade constitucional da advocacia (artigo 133 da Constituição).

A garantia do sigilo é essencial à relação de confiança entre cliente e advogado, significa prerrogativa do profissional e proteção ao representado. Fatalmente, é o caráter de sigilo existente nas comunicações entre advogado e cliente que faz com que o último tenha tranquilidade e segurança para expor integralmente os fatos ao seu defensor para que este elabore a melhor estratégia na defesa do direito pleiteado[2].

Evidentemente, a investigação defensiva, como parte ordinária do exercício da atividade profissional do advogado, está naturalmente coberta pelo sigilo constitucional. Afinal, se assim não fosse, a própria investigação defensiva, como mecanismo para robustecer o direito de defesa e prevenir a condenação de inocentes (tornando a prestação jurisdicional mais justa e efetiva) estaria em risco.

Com efeito, o artigo 5º do provimento adverte que ao realizar investigação o advogado deve preservar o sigilo das informações colhidas. E estabelece, em seu artigo 6º, que “o advogado e outros profissionais que prestarem assistência na investigação não têm o dever de informar à autoridade competente os fatos investigados”.

Em conjunto, os dispositivos firmam o dever de sigilo e direito de não informar do advogado.Todavia, são silentes quanto à extensão do dever/direito de sigilo aos profissionais, não advogados, que auxiliam na investigação defensiva.

Pois bem, em seu artigo 4º, parágrafo único, o Provimento 188/2018 da OAB preceitua que “na realização da investigação defensiva, o advogado poderá valer-se de colaboradores, como detetives particulares, peritos, técnicos e auxiliares de trabalhos de campo”.

A profissão de detetive particular, por exemplo, foi regulamentada pela Lei 13.432/2011 e, de acordo com seu artigo 2º, restringe-se à “coleta de dados e informações de natureza não criminal”. O artigo 5º da mesma lei, no entanto, prevê a possibilidade de o investigador privado colaborar com investigação policial, desde que com expressa autorização de seu contratante.

Por sua vez, o Provimento 188/2018 da OAB estabelece, em seu artigo 7º, que as atividades nele descritas “são privativas da advocacia, compreendendo-se como ato legítimo de exercício profissional, não podendo receber qualquer tipo de censura ou impedimento pelas autoridades”.

Estariam, portanto, os auxiliares abarcados pelo sigilo profissional? Afinal, nos termos no artigo 6º o provimento é categórico ao afirmar que o advogado e seus auxiliares não têm o dever de prestar informações às autoridades competentes — salvo com expressa autorização de seu constituinte. Por outro lado, a investigação defensiva é descrita como atividade privativa da advocacia e, afinal,é o advogado o personagem central do regulamento.

Poderia, então, a investigação defensiva ser conduzida exclusivamente por profissionais que não sejam advogados? Caso positivo, seriam extensíveis a eles as prerrogativas profissionais legais da advocacia? Ao menos no que diz respeito à segunda pergunta, quer parecer que a resposta é negativa, partindo da ideia de as prerrogativas (privativas) da advocacia são desejáveis (e mesmo essenciais) para viabilizar a tal espécie de investigação.

Aqui, é pertinente trazer à baila a distinção proposta por Gabriel Bulhões entre a investigação privada stricto senso e uma investigação defensiva, “no sentido de que esta última deve ser conduzida por profissional habilitado, seguir e respeitar normas regentes, bem como estar finalisticamente direcionada a uma produção probatória de aporte a uma tese jurídica”[3].

De fato, a prática da investigação defensiva traz consigo uma inédita carga de responsabilidades para o advogado, que se propõe a desempenhar o múnus investigatório. Esta responsabilidade é transferida aos profissionais não advogados que o auxiliarem, porém, os direitos e deveres que constituem prerrogativas da advocacia não podem ser presumidamente compartilhados sem que a legislação assegure tais distinções[4].

Certo é que não há direitos sem correlatos deveres, e que a investigação defensiva requer um estatuto deontológico que a regulamente (mas não a inviabilize) a fim de conferir segurança ao profissional que a realize.

Por enquanto, é de rigor aconselhar a cautela.Assim, a solução mais adequada àqueles que tiverem interesse em contratar serviços nos moldes da investigação defensiva é o fazer diretamente com advogados devidamente protegidos por prerrogativas legais e constitucionais da profissão. Aos advogados em investigação defensiva a cautela surge na forma do cuidado no compartilhamento de informações com seus auxiliares de outras áreas, estes não estão obrigados a informar às autoridades aquilo que vierem a conhecer, contudo, não usufruem das garantias específicas de sigilo reservadas aos advogados.

[1] Observa-se que o PLS 156/2009, que visava reformar o Código de Processo Penal, traz disposições para regulamentar a Investigação Defensiva. O projeto foi aprovado pelo Plenário do Senado Federal e encaminhado à Câmara dos Deputados em 2010, onde transformou-se no PL 8.045/2010, destinado a propor novo Código de Processo Penal e que atualmente aguarda o parecer de Comissão Especial.

[2] Coêlho, Marcus Vinicius Furtado. Comentários ao novo código de ética dos advogados. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 50.

[3] BULHÕES, Gabriel. Manual Prático de Investigação Defensiva. Florianópolis: Emais, 2019, p. 85.

[4] Nesse sentido, recorda-seque o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil dispõe, no inciso XIX do artigo 7º, que é direito do advogado recusar-se a depor em processo que atuou como advogado, sobre fatos referentes a pessoal para quem tenha advogado, e sobre fato que constitua sigilo profissional; enquanto que para profissionais não advogado o artigo 207, do Código de Processo Penal, estabelece a proibição de depor àqueles que devam guardar segredos em razão de seu ministério, ofício, ou profissão — os quais não necessariamente coincidem com os profissionais que podem ser empregados em investigações internas, como auditores e contadores.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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