As ciências humanas como fonte e fundamento da coculpabilidade no Direito Penal

Por Guilherme Lobo Marchioni e Matheus Akira Funayama

Artigo publicado no boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), nº 334, ano 28, de setembro de 2020.

Resumo: O artigo tem como objetivo propor uma reflexão acerca da aplicação da coculpabilidade sob um ponto de vista interdisciplinar. Para tanto, apresenta breves noções sobre o instituto no Direito para posteriormente estabelecer conexões com ideias advindas de outros campos das ciências humanas. Além disso, o texto tece uma aproximação entre o estudo das ciências humanas e a aplicação da coculpabildade na prática.

Palavras-chave: coculpabilidade. Corresponsabilidade. Interdisciplinaridade. Habitus.

Abstract: The purpose of this article is to discuss the joint liability from an interdisciplinary point of view. For this, it presents brief notions about the institute and establishes connections with ideas from other fields of the humanities disciplines. In addition, the article approaches the study of the humanities and the practical enforcement of joint liability.

Keywords: Interdisciplinary. Joint liability. Habitus.


O raciocínio cartesiano é suficiente para explicar o mundo à nossa volta? A era de hipercompartimentalização dos saberes em si mesmos que experimentamos, independente da área de conhecimento da qual falamos, gera algum risco de tolher a própria ciência? Toda ciência poderia e deveria refletir sobre tais questões, mas é na ciência do Direito que encontramos exemplos amargos da dissociação entre os saberes, e dentre os quais se destaca a noção da coculpabilidade em nosso Direito Penal.

Quando criamos um sistema de regras que se vale do judiciário e seus rituais, da fiscalização, do sistema carcerário e da vigilância coordenadas pelo estado, passamos a lidar com uma tecnologia humana – no sentido de ser do interesse coletivo -, da sociedade em todos os seus sentidos.

Desta forma, não parece que, utilizando a metáfora do próprio Descartes, o direito seja uma peça do relógio, que pode ser estudada à parte do mundo e, uma vez encaixada no maquinário, tenha condições de cumprir sua função plena dentro da máquina, ou, neste caso, da sociedade.(1)

A crítica referida está a nos dizer que o Direito, para que possa funcionar de acordo com, por exemplo, os ideais sociais que inspiram a Constituição Federal de 1988, deveria aceitar as ciências produzidas pelas demais áreas de conhecimento para que possa operar em consonância com o que estudiosos da sociedade, dos costumes e dos indivíduos dizem sobre seus respectivos objetos de estudo. Nesse sentido, parece que uma saída para superar tal hipercompartimentalização, o formato mecanicista ao qual a área de estudo do direito parece seguir, seria incorporar uma forma complexa de pensamento. Utilizar os saberes produzidos por quem tem autoridade para deliberar sobre a sociologia, fisiologia, costumes e história é uma forma de comportar a complexidade que circunda o objeto de estudo do Direito.(2) Não há como a aplicação de leis de matriz penal ser operada com razoabilidade sobre um complexo de sistemas (pessoas e comunidades) sem que seus agentes e estudiosos levemem consideração a complexidade que os envolve.

Com efeito, o sistema penal é composto por uma série de princípios que regulamentam a atividade do judiciário na aplicação da lei. Entre eles, na forma de garantia, que limita o poder de punir do Estado, encontra-se o princípio da culpabilidade. Conforme ensina Zaffaroni, ele é composto por “dois níveis: a exclusão de qualquer imputação de um resultado acidental imprevisível (caso fortuito) e o da exclusão da punibilidade por não ter podido o sujeito conhecer a ilicitude ou adequar sua conduta ao direito.”.(3)

A análise da culpabilidade pelo juiz da causa criminal é realizada, em resumo, pelo cotejamento do evento fático com a legislação. Comumente, a apreciação judicial é fria e a decisão sobre o crime assume a estrita faceta da subsunção da conduta à norma jurídica. Nesse contexto, o aspecto social da narrativa raramente é considerado. Na prática, as desigualdades sociais que assolam o país são relegadas a um triste pano de fundo nos julgamentos criminais.

Por sua vez, a coculpabilidade define-se como a responsabilidade que o Estado possui em certas infrações penais cometidas por indivíduos abandonados à própria sorte, pessoas que tiveram negados os direitos mais fundamentais, como saúde e educação.

O princípio da coculpabilidade é um princípio constitucional implícito, que reconhece a corresponsabilidade do Estado no cometimento de determinados delitos praticados por cidadãos com menor âmbito de autodeterminação diante das circunstâncias do caso concreto, principalmente no que se refere às condições sociais e econômicas do agente. Tal ecossistema enseja menor reprovação social, gerando consequências práticas na aplicação e execução da pena.(4)

Complementa a definição do instituto, a sensível visão sobre o tema do professor Rogério Greco, para quem: “A teoria da coculpabilidade ingressa no mundo do Direito Penal para apontar e evidenciar a parcela de responsabilidade que deve ser atribuída à sociedade quando da prática de determinadas infrações penais pelos seus supostos cidadão. Contamos com uma legião de miseráveis que não possuem teto para abrigar-se, morando embaixo de viadutos ou dormindo em praças ou calçadas, que não conseguem emprego, pois o Estado não os preparou e os qualificou para que pudessem trabalhar, que vivem a mendigar por um prato de comida, que fazem uso de bebida alcoólica para fugir à realidade que lhes é impingida, quando tais pessoas praticam crimes, devemos apurar e dividir essa responsabilidade com a sociedade.”.(5)

A coculpabilidade atribuída ao Estado por meio do instituto assume a acepção de responsabilização indireta da administração pública, dada a omissão no cumprimento de seus deveres constitucionais, como assegurar a igualdade entre os cidadãos, promover saúde (art. 196, CF), e educação (art. 205, CF). Evidentemente, não se busca responsabilizar penalmente o Estado, mas reconhecer sua inoperância em cumprir seus deveres, gerando menor reprovação social do acusado. Ademais, essa responsabilidade do Estado é de ser invocada com cautela, respeitando como limite o cuidado para não transformar o criminoso em vítima e o Estado em criminoso.

Assim, o princípio da coculpabilidade pode se concretizar na aplicação do direito como decorrência do reconhecimento da exclusão social que o Estado falhou em evitar, de certo modo contribuindo com as condições que levam uma pessoa a delinquir, gerando, assim, uma atenuação da pena com fulcro no art. 66, do Código Penal.

Todavia, a realidade da persecução penal tem demonstrado uma parca aplicação da coculpabilidade, justificando o afastamento da teoria com pouco ou nenhum substrato. É o que se constata do exemplo da jurisprudência em caso no qual se apreciou crime sem violência, tendo sido proferida decisão com o seguinte teor: “Sem ignorar as reais desigualdades socioculturais existentes no país, reconhecendo o crime como fato social que é, não há como minorar a situação do agente pelo reconhecimento da atenuante genérica da coculpabilidade, os as desigualdades existentes em nosso país não podem servir de justificativa para a prática do tráfico ilícito de entorpecentes” (6).

No ponto é forçoso lembrar que o direito brasileiro se afastou dos demais campos de estudo das ciências humanas, pouco importando aspectos da psicologia, sociologia, filosofia. Como identificou Fernando Fernandes, a partir da década de 30 nas “faculdades de direito, houve a propagação de um positivismo a-histórico e associológico na formação do jurista e o consequente distanciamento da sociologia, da história e da literatura, por parte do direito”.(7) Como resultado desta estratégia de ensino, gerou-se, nas palavras do autor, um autismo jurídico,(8) que se isola do mundo exterior e segue sua própria lógica.

Assim, um conceito como a coculpabilidade sofre por ser interpretado pelo operador do direito sem um arcabouço de conceitos sociais que possa auxiliar o profissional a considerar, em maior profundidade, aspectos que exercem ingerência nas narrativas inerentes ao judiciário criminal.

A ideia da coculpabilidade carrega consigo uma noção social e humanística, que é perdida se a sua leitura é feita sem a devida conexão entre seu significado profundo e o contexto da aplicação prática. Com efeito, para compreender a importância da inclusão de um conceito como o de coculpabilidade no ordenamento penal, é necessário refletir sobre a maneira como a materialidade da vida molda as ações de uma pessoa, assim como o processo histórico individual molda seu pensamento – é o que o Bourdieu, sociólogo Francês, chamou de habitus. Este conceito é amplamente usado pelas chamadas ciências humanas, como princípio gerador de ação de uma pessoa. Seguindo a lógica desse conceito, Bourdieu trata sobre a violência simbólica ‒ uma violência que, segundo o autor, não se vale de coação física ‒ exercida pelo Estado, como condição material opressora das camadas sociais desfavorecidas economicamente.(9)

A extrapolação da violência simbólica pelo Estado contribui para a marginalização dos menos favorecidos. Os quais constituem aqueles mais propensos a se verem subjugados pelo sistema penal, seja pela realização de um delito, seja pelo aspecto da criminalização secundária a que estão submetidos.

Epistemologicamente falando, Piaget(10) diz que quando somos confrontados com o meio e nossas estruturas cognitivas não são suficientes para superar tal problema, essas estruturas entram em desequilíbrio, nos levando a uma reacomodação em um novo estado de estabilidade. Desta perspectiva, seria equivocado pressupor a total racionalidade sobre os nossos atos, pois seríamos forçados extrinsecamente a racionalizar uma situação apenas quando os nossos automatismos gerados pelas estruturas previamente construídas não forem suficientes para lidar com problemas impostos pelo meio externo.

Vale ressaltar que, unindo as ideias de Piaget ao pensamento de Adorno,(11) não necessariamente essa construção de novas estruturas, esse aprendizado, irá levar a um patamar esclarecedor. De uma perspectiva piagetiana, pode-se ficar subentendido que o aprendizado sempre irá dizer respeito ao esclarecimento de algo obscuro. Mas pensando nos termos da Dialética do Esclarecimento, consoante o pensamento de Adorno, podemos entender o esclarecimento em si como um mito e que esse desenvolvimento cognitivo excede o indivíduo ‒ responde, por exemplo, à indústria cultural apontada pelo autor ‒ e não necessariamente terá algum alinhamento teórico ou estético. Permite, assim, arrazoar que em dada ocasião isolada uma ação, que pode ser considerada típica, foi a forma que o indivíduo conseguiu encontrar para lidar com determinadas situações. Desta forma, um determinado comportamento ou pensamento que compõem uma estrutura construída a partir da insuficiência frente a um problema não é de forma imperativa um bom pensamento ou comportamento do ponto de vista moral, ético ou estético. Apenas, naquela determinada situação, instantânea e subjetivamente, foi a adaptação que ocorreu.

Podemos, então, unir esses pontos para a ideia de habitus cunhada por Bourdieu.(12) Habitus, no caso, é a noção de que a ordem social se instala no corpo através de perene imposição. As estruturas construídas pelo sujeito, dessa perspectiva, são confrontadas pelo meio social, levando a aprendizados não necessariamente esclarecedores. Desse processo, é importante entender duas coisas: (1) que nem se trata de um fenômeno estritamente fisiológico, e nem de um estritamente social; e (2) nem todo o processo de tomada de decisão é totalmente racional. A somatória dessas estruturas, no caso, irá compor o habitus de cada indivíduo.

Não sendo possível conceber o habitus como resultado da soma de estímulos puramente físicos, faz-se necessário ressaltar a importância crucial do termo violência simbólica para essa discussão. Não havendo coação física direta, é a violência simbólica ‒ ou seja, o discurso não-verbal comunicado ao se negar condições mínimas para a dignidade humana, ou se reforçar relações de racismo, sexismo ‒ que desempenha o papel de construir os princípios geradores da atividade de todo e cada indivíduo, incluindo as circunstâncias que podem contribuir com a realização de comportamento considerado criminoso pela sociedade.

O ponto é que uma vez concebido esse ser humano moldado pelo seu meio natural e social, que não é racional em tempo integral, importa pensá-lo como um ser inserido em seu meio e sua relação com este: “o corpo e tudo que a ele se associa, em particular a urgência ligada à satisfação das necessidades e a violência física, efetiva ou potencial, de tal modo que ele acaba sendo de alguma maneira posto fora de jogo”(13) nas palavras de Bourdieu.

Se a configuração da materialidade nos ancora em uma realidade em que essas urgências ligadas ao corpo são colocadas fora de jogo, então há de se repensar a forma como enxergamos questões como mérito e culpa em relação ao meio no qual cada indivíduo se insere. Aspectos como fome, dominação e isolamento físico são condicionantes na formação de cada pessoa, levando a um aprendizado não necessariamente esclarecedor. Por isso, torna-se necessária a adição de parâmetros que modulam a tomada de decisão para além da falaciosa racionalidade. Eles nos permitirão criar faculdades de julgamento mais claras, em especial, quando se afere responsabilidades.

Nesse contexto, a epistemologia piagetiana complementada com a dialética de Adorno e o conceito de habitus podem fornecer subsídios teóricos à ideia de coculpabilidade. Veja, se os atos de um sujeito têm suas causas sociais, e se confrontado pelo seu meio o sujeito chegou a determinados esquemas que não são racionais em sua totalidade, logo parece coerente afirmar que há aqui uma coculpabilidade com a qual a sociedade deve arcar.

Por onde quer que se olhe, a responsabilidade indireta do Estado é uma realidade. Por isso, criar bases para fundamentar os institutos que dialogam com tal realidade é de extrema relevância para a prática jurídica. Nesse sentido, a coculpabilidade no Direito Penal ganha luz sob a ideia de habitus trabalhada no enfoque de Bourdieu, junto a um resgate de interpretações das ciências sociais para conferir ao tema tratado uma visão mais ampla.

Ressalta-se, por cautela, que não se pretende inverter as posições jurídicas de vítimas e acusados, mas compreender o crime como verdadeiro fenômeno social. Uma aplicação mais reiterada da coculpabilidade teria como resultado simplesmente alertar que o Direito Penal não tem como função distribuir vingança e, por outro lado, recordar a necessidade do Estado de promover políticas públicas focadas em prevenção e recuperação, como métodos de evitar a criminalidade sem o combater pela simples repressão.

Tal premissa não é utópica e há, inclusive, repercussão na jurisprudência (ainda que rara), como ilustra voto do Desembargador Siro Darlan de Oliveira do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em caso afeto à aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, no qual consignou que “diante da essencialidade da prestação dos serviços públicos à coletividade, tais como a saúde, educação e segurança, o Estado está sujeito a causar danos aos administrados, decorrentes de condutas omissivas ou comissiva capazes de caracterizar sua culpabilidade no fato de não cumprir com seu mister e possibilitar que jovens, principalmente das comunidade carentes sejam facilmente aliciados pelo tráfico de drogas por ausência de políticas públicas efetivas que possibilitem dar maior efetividade ao princípio da proteção integral de crianças e adolescentes em nosso país.”(14)

A aplicação da coculpabilidade defende, assim, uma análise individualizada e sensível do agente e do delito, estabelecendo, quando for o caso, o abrandamento da pena em razão da concorrência do Estado, com a realização da conduta valorada negativamente pela lei penal. E mais, a aplicação da coculpabilidade recomenda que o operador do direito aprecie cada caso concreto, sob ótica que transcenda a descrição rigorosamente contida no texto legal e considere o crime como verdadeiro fenômeno social. Ele demanda o esquadrinhamento de narrativas consolidadas, na construção de um entendimento mais humano sobre as causas de um delito, a fim de alcançar uma resposta Estatal verdadeiramente proporcional.

A aproximação da aplicação da legislação penal a um patamar mais sincero quanto ao cenário brasileiro, inclusive quanto a contribuição da omissão do Estado nas ações de um acusado, deve trilhar não só as das formulações da ciência penal, mas também buscar as fontes das ciências humanas para compreensão de conceitos como a violência simbólica e o habitus, a ordem social que foi construída no do indivíduo. Aliando-se conceitos técnicos do Direito Penal à formulações teóricas das ciências humanas há de resultar uma reflexão necessária sobre afirmações na aplicação do direito de premissas cujo fundamento é social, tal como a noção de que a omissão do Estado para com um indivíduo lançado à delinquência acarreta a este Estado uma responsabilidade por danos causados por aquele à sociedade.


Notas de rodapé

(1) Sobre o método de pensamento de Descartes e sua concepção da natureza, vide: CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação, São Paulo: Ed. Cultrix, 1982. p. 55-59.

(2) Cf. MORIN, Edgar. O Método 1: A natureza da natureza. Rio Grande do Sul: Ed. Sulina, 2002. p. 186-188.

(3) ZAFFARONI, Eugênio Raul. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 246.

(4) MOURA, Grégore Moreira de Moura, Do princípio da co-culpabilidade no direito penal. Belo Horizonte: D ́plácido, 2016. p. 59.

(5) GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2002. p. 469.

(6) TJ MG, 0007792-30.2013.8.13.0707, Rel. Des. Antônio Armando dos Anjos, j. 26/11/2013

(7) FERNANDES, Fernando Augusto. Poder e saber – campo jurídico e ideologia. Rio de Janeiro: Revan, 2012. p. 16.

(8) idem, p. 27.

(9) BOURDIEU, P. Political Violence and Political Struggles. In: BOURDIEU, P. Pascalian Meditations. California: Stanford University Press, 1997. p. 164-205. (10) PIAGET, J. A Epistemologia Genética. 4. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

(11) ADORNO, T. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1985.

(12) BOURDIEU, P. Bodily Knowledge. In: BOURDIEU, P. Pascalian Meditations. California: Stanford University Press, 1997. p. 128-163.

(13) ibidem

(14) RODAS, Sérgio. Estado é responsável por jovens aliciados pelo tráfico, defende Siro Darlan em votos. Revista Consultor Jurídico, 20/07/2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-jul-20/estado-responsavel-jovens-trafico-siro-darlan-votos>. Acesso em: 5 set. 2019.

Artigo publicado no boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), nº 334, ano 28, de setembro de 2020.

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