Por Fernando Augusto Fernandes, Guilherme Marchioni e Otávio Bazaglia
O artigo foi publicado no Conjur, em 07 de julho de 2022, em https://www.conjur.com.br/2022-jul-07/opiniao-prerrogativa-advocacia-liberacao-bens
A Lei 14.365 de junho de 2022 trouxe importante dispositivo contra o sufocamento econômico da defesa, incluindo no Estatuto da Ordem dos Advogados dispositivo determinando a liberação de até 20% bloqueados na hipótese de bloqueio universal de acusados por determinação judicial com a finalidade exclusiva de viabilizar o pagamento de honorários advocatícios e o reembolso de gastos com a defesa. A única ressalva feita pela lei é a inaplicabilidade do dispositivo em causas relacionadas à Lei de Drogas.
Sabe-se que o dispositivo legal tem como objetivo impedir que o direito à defesa seja inviabilizado por meio de subterfúgios de ordem econômica lançados contra o acusado. Cabe lembrar que a operação “lava jato” teve como um dos instrumentos para obtenção de delações premiadas o bloqueio universal de bens, além de outras ameaças ao acusado e à sua família, prolongamento de prisões preventivas ilegais, conduções coercitivas, e verdadeiras torturas procedimentais[1] da Guantánamo brasileira, a Polícia Federal de Curitiba[2].
Mais ainda, com o advento da Lei nº 13.869/2019 (lei contra ode abuso de autoridade), o ordenamento passou a tratar sobre o tema do bloqueio excessivo de bens como prática ilegal. Com efeito, no artigo 36 da referida legislação definiu como crime a decretação judicial de indisponibilidade de ativos financeiros que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte quando, apesar de demonstrada a excessividade da cautelar, a indisponibilidade for mantida. Trata-se de tipo penal que responde a situação similar ao bloqueio universal com finalidade de constranger e subjugar o cidadão submetido a um processo judicial com desrespeito aos seus direitos constitucionais — e bem por isso, significa um abuso de autoridade.
Desta feita, se o desbloqueio de parte dos bens constritos em cautelar de bloqueio universal é medida que respeita o princípio democrático e constitucional à defesa, como conciliar o direito do acusado de ser assistido por um defensor de sua escolha com o obstáculo à defesa definido a casos em andamento relacionados a um delito relacionados na Lei 11.343/2006?
Justamente esse obstáculo criado pelo legislador salta aos olhos, uma vez que difere um determinado grupo de defensores que representam acusados por crimes relacionados ao tráfico de drogas de todos os outros defensores. Aqui, desponta clara violação ao artigo 5°, caput, da Constituição Federal, que preceitua o princípio da isonomia, ferindo de igual modo o artigo 133 da Constituição, que elevou a advocacia a função indispensável à administração da justiça.
É evidente que o objetivo do legislador ao incluir o artigo 24-A, à Lei 8.906/1994 foi prestigiar à advocacia, assegurando-lhe o recebimento de seus honorários profissionais na hipótese de bloqueio patrimonial universal de seus constituintes e não de beneficiar acusados em processos penais, como pode parecer com o obstáculo em uma interpretação desleixada. Vejamos o teor do artigo em comento: “no caso de bloqueio universal do patrimônio do cliente por decisão judicial, garantir-se-á ao advogado a liberação de até 20% dos bens bloqueados para fins de recebimento de honorários e reembolso de gastos com a defesa, ressalvadas as causas relacionadas aos crimes previstos na Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006 (Lei de Drogas), e observado o disposto no parágrafo único do artigo 243 da Constituição Federal”.[3]
Importa notar que o instrumento que permite o desbloqueio de parcela do bloqueio universal para a quitação de custos com advogado não se limita à defesa criminal no procedimento em que foi determinado a cautelar de bloqueio, uma vez que a lei não distingue a finalidade do recebimento de honorários é plenamente possível que o reembolso de gastos com a defesa que trata o artigo contemple a prestação de serviços jurídicos relacionados à cautelar imposta para custos como a elaboração de parecer jurídico, pagamento de cálculos contábeis, prestação de investigação defensiva, e serviços afins.
Assim, a alteração legislativa no Estatuto da Ordem dos Advogados reflete uma preocupação ampla a respeito do direito de defesa e, sobretudo, na terminologia da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, com a garantia judicial do acusado de que se presuma a sua inocência lhe garantindo, em plena igualdade, o direito de ser assistido por um defensor de sua escolha (artigo 8.2.g do Pacto de São José da Costa Rica).
Neste diapasão, entre garantir a defesa técnica do acusado e viabilizar a este que escolha quem lhe prestará serviços jurídicos, a ressalva ao desbloqueio para adimplir custas com a defesa em casos relacionadas à Lei de Drogas causa estranheza porquanto o objetivo primordial do dispositivo é orientado a permitir que a assistência técnica de advogado e se realize o direito constitucional à defesa, circunstância que deve se operar em qualquer procedimento de natureza penal, esteja o acusado — presumido inocente — respondendo a delito de tráfico de drogas, de corrupção, ou qualquer outro.
Ora, se a intenção do legislador era a de impedir que o advogado participe de ganhos de seu cliente obtidos com o tráfico de entorpecentes estar-se-ia julgando o acusado previamente e tratando de forma desigual, pois no seu caso nega-lhe um aspecto do direito de defesa, ferindo o artigo 5º, inc. LV, da Constituição Federal, que assegura a ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes.
A inovação legislativa serve também como um alerta às autoridades públicas atuantes no âmbito de processos penais, a fim de que observem os requisitos fundamentais à aplicação de qualquer medida cautelar, quais sejam a razoabilidade e proporcionalidade, sobretudo porque “as medidas assecuratórias estão despertando do repouso dogmático para serem instrumentos de uso e abuso diário”[4]. Isto é, a legislação estabelece uma reação ao bloqueio universal que compromete o direito de defesa: na hipótese dessa estirpe de cautelar deve ser excluído da constrição até vinte porcento dos bens bloqueados para garantir custos com a defesa, funcionando tal mandamento como uma sanção contra a decisão antidemocrática de sufocar economicamente o acusado, e servindo a impedir que o bloqueio seja manuseado como forma de coerção ou prejuízo ao direito de defesa.
Nesta toada, urge responder se é legítima a exclusão de casos envolvendo a Lei de Drogas da sistemática do desbloqueio de bens para a garantia da defesa. O novo artigo 24-A da EAOAB corresponde a concretização de direitos constantes do arcabouço constitucional, deste modo a pretensa mitigação do direito de defesa compreendido na ressalva que permitiria o sufocamento econômico do acusado de crimes da Lei de Drogas é trecho inconstitucional do dispositivo legal, e ofende a presunção de inocência.
É dizer, a lei deve ser aplicável a todos as espécies de bloqueio universal de bem, ou seja, também a casos de tráfico de drogas, tendo em vista que é inconstitucional na parte que os ressalva ao passo que descrimina defensores que atuam no âmbito que ação penais que apuram este tipo de delito.
A prerrogativa inserida no artigo 24-A da EAOAB garantindo a liberação de até 20% do valor bloqueado de cliente em relação a universalidade de bens é aplicável a casos da Lei de Drogas tendo em vista que a vedação a um determinado tipo penal ofende o artigo 5º e 133, ambos da Constituição, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
[1] Conforme noticiado pela ConJur: ao comentar as revelações da “vaza jato”, o ministro Gilmar Mendes questionou: “Em algum lugar mais sensível e talvez mais ortodoxo em matéria de Direito, é de se dizer: essa gente estava se permitindo torturar pessoas. É lícito isso?” https://www.conjur.com.br/2021-fev-09/lava-jato-permitiu-torturar-pessoas-gilmar-mendes.
[2] Conforme narrado em Geopolítica da Intervenção: “A delação acabou virando uma verdadeira indústria. A cada fase da Lava Jato o mecanismo se repetia. Prisão seguida de um sequestro para o Paraná. Os presos ficavam o tempo necessário na carceragem da Polícia Federal e seriam remetidos ao presídio estadual à conveniência de sofrimento ou da disponibilidade na Federal. Pressão lenta. Demora nas prestações de informações e pareceres em habeas corpus. Manobras para que as medidas não fossem julgadas. E ao fim a substituição da defesa por advogados que passavam a negociar a delação.” (FERNANDES, Fernando Augusto. Geopolítica da Intervenção: a verdadeira história da lava jato. São Paulo: geração editorial, 2020, p. 152-153).
[3] Artigo 24-A, da Lei 8.906/1994.
[4] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 11ª edição. Saraiva. São Paulo, 2014, p. 257.
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