Imunidade absoluta para parlamentar é o que diz a Constituição
Por Fernando Augusto Fernandes
Várias reportagens e lives têm sido feitas em razão de recente divulgação dos arquivos que lutei por 20 anos no judiciário brasileiro para serem amplamente acessíveis. Durante esses anos publiquei dois livros[1], e o arquivo gerou o filme “Sobral o Homem que não tinha preço” (veja aqui).
No último, dia 4 de maio, José Roberto Batochio participou comigo de um debate sobre os arquivos desenvolvido pelo Centro De Documentação e Pesquisa da OAB-RJ, com o diretor Aderson Bussinger. Mas nesse debate trouxe importante e corajosa defesa, de imunidade absoluta de deputados e senadores. Essa importante argumentação torna a condenação do deputado Daniel Silveira inconstitucional.
Batochio é insuspeito ao adotar essa posição. Membro vitalício do conselho da OAB Federal, como seu ex-presidente, tem seu nome no Regulamento Geral da Advocacia[2], mas nesse caso, acima de tudo o redator como constituinte derivado e deputado federal (PDT, 1998-2002) na mudança do artigo 53 da Constituição. A referida modificação acresceu no artigo as palavras seguintes a inviolabilidade de deputados e senadores “civil e penalmente, por quaisquer” opiniões, palavras e votos.
Antes de mais nada é preciso relembrar os ensinamentos de Batochio que também foi advogado de preso político e de Lula. Esse nosso bâtonnier afirmou que “o autoritarismo e a tendência à tirania é como erva daninha, por mais que você a extermine, ela teima em renascer e nos lugares os mais insuspeitados, mas com redobrado vigor”.
Em palestra proferida em 4 de maio de 2022, promovida pela OAB-RJ, Batochio afirma que “para que não repitamos os equívocos, os erros e as tragédias do passado, é importante que nós conhecemos a nossa história na sua verdadeira dimensão, sobretudo nestes tempos de fake news e que a verdade sofre tantas contrafações, tantas falsificações e de modo tecnologicamente avançado através das redes sociais”. “Cada vez mais difícil com essa disponibilidade de comunicação coibir as falsificações da história e isto compromete o futuro das nações, porque o caminho que devemos trilhar enquanto nação, deverá ser pautado pela nossa experiência preterida, não é bem sopesada, avaliada e, digamos, joeirada no presente.”
“Eu gosto sempre de lembrar de uma citação de um personagem de Miguel de Cervantes, enfim, do don Quijote de la Mancha, quando ele diz assim ‘la verdad puede enfermarte, pero no muere de todo’, ou seja, a verdade, ela pode até ficar doente, adoecer, mas ela nunca morre definitivamente. Então, quando se tentou maquiar esse trecho da nossa história, os negativistas, e veja você, os negacionistas sempre existiram, em relação a tortura, a barbárie naquela época, em agora em relação a vacina, é o que eu disse, o autoritarismo, este sectarismo, é como uma erva daninha, ele renasce de tempos em tempos”, contou Batochio[3].
Ingressando no pós-modernismo, na nossa pós-democracia tão bem descrita por Rubens Casara[4], e por Pedro Serrano[5] quando afirma que o autoritarismo moderno se manifesta na América Latina, por meio de medidas de exceção praticadas pelo sistema de justiça[6], Batochio arremata, “não mais de uma maneira concentrada, não haverá mais Idi Amin Dada, não haverá mais Mussolini, não haverá mais Hitler, mas haverá sim pequenos tiranos ocupando postos de, digamos assim, decisão no estamento do estado, digamos assim, centros de emanação de decisões e este é o perigo que nós temos que arrostar nestes tempos que correm, como soldados que somos da liberdade, da civilização”.
Antes de ingressar no caso do deputado, e comentando os arquivos dos julgamentos de presos políticos esse eterno membro vitalício da OAB e deputado introduz a questão conjuntural que estamos vivendo. “O que nós estamos a ver é que, contrariando o que disse Churchill na conferência da Universidade de Bristol, quando deixou assentado que o traço mais característico de uma sociedade civilizada é o respeito que as suas autoridades constituídas têm pelo ordenamento jurídico, que projeta a vontade da nação. O que nós vemos são tribunais, são juízes, são membros do Ministério Público pretendendo sonegar inequívocas e insonegáveis franquias asseguradas até na constituição. Vou dar um exemplo, e antes de dar o exemplo para que não possa ser mal entendido, gostaria de lembrar o que disse o personagem Thomas More na obra teatral escrita por Robert Bolt, quando convocaram-no, o exortaram a que não dessem, não conferissem as garantias legais de defesa a um determinado acusado porque bárbaro fora o crime que ele tinha cometido, repugnante o crime, e ele respondeu assim ‘ao diabo, eu garantiria as franquias da lei em meu próprio benefício e em benefício da civilização e da sociedade onde eu estou, porque se desrespeitarmos as garantias de um cidadão considerando a gravidade ou a repugnância do seu ato, nós vamos acabar por denegar esta mesma garantia ao cidadão que não cometeu tamanho ato e até pode ser inocente’.”
Nesse ponto Batochio chega ao ponto em que pessoalmente redigiu a modificação do artigo 53 da Carta Magna para conferir imunidade absoluta aos congressistas. “Reprovo o que ele fez, execro o seu comportamento, repudio as ofensas que ele lançou contra coram populo, publicamente contra o Supremo Tribunal Federal, reputo-o sem condições para exercer o mandato parlamentar, mas foi levado ao parlamento pelo voto do povo, o voto do povo é de onde emana todo poder. E o que diz a nossa Constituição? Os deputados e senadores são civil e penalmente” e invioláveis por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. … Esta é a redação do artigo 53 da Constituição da República, decorrente da Emenda Constitucional 35, votada em 2001, no Congresso Nacional, cuja redação final, modestamente, foi por mim dada a esse dispositivo. Nós tivemos até uma divergência porque o relator sorteado que era o deputado Abi-Ackel, queria que os deputados e senadores fossem invioláveis por suas manifestações no exercício da função. Eu digo ‘mas quem vai dizer o que é e o que não é exercício da função? É o outro poder, o judiciário? É o executivo? Como assim?'”
Algo que há tempos estamos vendo é a diminuição, a omissão do Congresso Nacional, que se acanhou diante de decisões do Supremo Tribunal que extrapolaram seus poderes ao determinar a prisão do Senador Delcidio de Amaral, posterior colocação de tornozeleira eletrônica em Aécio Neves, história detalhada no livro “Geopolítica da Intervenção”[7]. Batochio retorna a questão ao afirmar que “da mesma maneira que não existe prisão processual para membros do Congresso”. “Nós tivemos aí o ano retrasado, o ano passado senador preso por decreto de flagrante. Aliás, eu não conhecia o que é o decreto de prisão em flagrante, e o flagrante é uma situação empírica, não é, e nós tivemos um senador que teve a sua prisão decretada, ‘olha, o problema é o seguinte, o sujeito falou qualquer coisa, isso pode ser reproduzido eternamente aí nos meios de comunicação social, então ele está em eterna situação de flagrante delito’.” Em que pese a alteração do artigo 53 da Carta Magna o Supremo manteve uma jurisprudência inalterada de limite a imunidade, o que faz afirmar que a posição do STF desconsidera a modificação, mas não é casuística em relação ao momento que nos encontramos[8].
Importante definir fronteiras nesse debate. Não se está, nem Batochio nem eu a atacar o Supremo Tribunal Federal, mas a defender a instituição e a independência de poderes. Nem mesmo afirmar que é liberdade a manifestação de pensamento para atacar a democracia e comete crime. Ao contrário a afirmar que os atos do deputado são repugnantes e merecem punição. Também não se está afirmando que o decreto de graça não seja inconstitucional, poque ele foi motivado pelo pretexto de defesa personalíssimo, de agraciar o deputado e acirrar o conflito de poderes. Mas a punição do deputado deve vir do Congresso, que já deveria ter poupado o Supremo de cair na esparrela de sua autodefesa. A manutenção do deputado no seu mandato após tão baixos atos e sua indicação ao Conselho de Constituição e Justiça é um ato de afronta pelo congresso ao sistema democrático.
A casa legislativa deveria se elevar a defender a imunidade parlamentar e a impossibilidade de prisão e medidas alternativas contra seus membros. Mas também de não permitir desvios que mancham o importante papel parlamentar. Não é possível tolerar ataques antiéticos aos ministros do STF, ou homenagens a torturadores e incitações a atos inconstitucionais.
O momento é de crise, com a presidência incitando conflitos. O Supremo há tempos vem ocupando papel político e o congresso omitindo-se de suas próprias defesas e de zelar por sua grandeza. Cabe agora ao Supremo não dar essa bandeira tão desejada para aqueles que desejam a instabilidade.
[1][1][1] Poder e Saber Campo Jurídico e Ideologia Ed Geração Poder e Saber: Campo Jurídico e Ideologia (ffernandes.adv.br) Voz Humana, A defesa Perante os Tribunais de Republica Voz Humana (ffernandes.adv.br)
[3] Palestra disponível no YouTube
[4] CASARA, Rubens. O estado pós-democrático: neo obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
[5] SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo e golpes na América Latina: breve ensaio sobre jurisdição e exceção. São Paulo: Alameda, 2016.
[6] Conforme escrevemos ao livro em homenagem a Pedro Serrano: “O livro de Pedro nos ajuda a entender o momento atual, provendo nossas lentes investigatórias de instrumentos para a análise, somando-se na metodologia indiciária. O suicídio de Alan Garcia está conectado ao suicídio de Áureo Balthazar, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ambas vítimas da Lava Jato, sendo o primeiro internacional, trazendo tristes lembranças da operação Condor. Fatos recentes como as ações do Supremo Tribunal Federal de censurar a entrevista de Lula, ou mesmo da matéria da Crusoé, tudo desembocando na vivência de uma exceção permanente.” Cf.: FERNANDES, Fernando Augusto. Exceção e Resistência. In: MAGANE, Renata Possi; et al. Democracia e crise: um olhar interdisciplinar na construção de perspectivas para o Estado brasileiro – Estudos em homenagem ao Professor Pedro Estevam Alves Pinto Serrano. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
[7] FERNANDES, Fernando Augusto. Geopolítica da intervenção: a verdadeira história da Lava Jato. São Paulo: Geração Editorial, 2020.
[8] Ninguém pode se escudar na inviolabilidade parlamentar para, sem vinculação com a função, agredir a dignidade alheia ou difundir discursos de ódio, violência e discriminação. (PET 7.174, rel. p/ o ac. min. Marco Aurélio, j. 10-3-2020, 1ª T, Informativo 969.); A cláusula constitucional da inviolabilidade (CF, art. 53, caput), para legitimamente proteger o parlamentar, supõe a existência do necessário nexo de implicação recíproca entre as declarações moralmente ofensivas, de um lado, e a prática inerente ao ofício congressional, de outro. Doutrina. Precedentes. (Inq 1.024 QO, rel. min. Celso de Mello, j. 21-11-2002, P, DJ de 4-3-2005 e Inq 2.915, rel. min. Luiz Fux, j. 9-5-2013, P, DJE de 31-5-2013).
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