O processo de Tiradentes e sua surpreendente semelhança com atuais procedimentos penais

No dia 21 de abril comemoramos o feriado nacional de Tiradentes, data em que homenageamos Joaquim José da Silva Xavier, brutalmente morto por ordem da coroa portuguesa no ano de 1792, uma vez que foi condenado por supostamente ser um dos líderes da Inconfidência Mineira.

O feriado nacional serve a recordar a execução de Tiradentes, reconhecido como mártir da inconfidência e patrono cívico do Brasil, patrono das Polícias Militares e herói nacional – é o que atesta a página do Ministério da Defesa do Brasil. Apesar disso, pouco se reflete sobre o procedimento que encaminhou Tiradentes ao martírio, isto é, sua execução foi prenunciada por um instituto processual penal atualíssimo: a premiação do delator ou informante.

O delito pelo qual Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi condenado à pena capital foi o de “lesa a majestade”, previsto no livro V, título VI, das Ordenações Filipinas.

De acordo com tal ordenamento “o crime de lesa majestade quer dizer traição cometida contra a pessoa do Rey, ou seu real Stado, que he tão grave a abominável que os Sabedores tanto estranharão, que o comparavão à lepra, porque asi como este enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar, e enche ainda aos descendentes de quem a tem, e ao que com elle conversão; polo que he apartado da communicação da gente: assi o erro da traição condena o que a commette, e empece e infama os que de sua linha descendem, postoque não tenhaõ culpa” (sic).

Especificamente no que concerne a conduta imputada a este herói nacional, ela era tipificada como “se algum fizesse conselho e conferedação contra o Rey e seu Stado, ou tratasse de se levantar contra elle, ou para isso desse ajuda, conselho e favor” (sic).

Em apertadíssima síntese, os supostos fatos que levaram Tiradentes a ser processado e condenado à morte, foi o de integrar um grupo de inconfidentes que buscavam a independência de Minas Gerais da coroa portuguesa, bem como do Brasil, tornando o estado uma república independente. A motivação para o levante era, também em breve síntese, os altos impostos cobrados pela coroa sobre o ouro extraído na então capitania – tal imposto era denominado “quinto”, posto que era cobrado a fração de 1/5 sobre todo o ouro extraído (o que perfaz o percentual de 20%).

Com efeito, nada obstante a trajetória de Tiradentes, há uma figura pouco referenciada em tal história: Joaquim Silvério dos Reis.

Joaquim Silvério dos Reis era coronel da cavalaria, fazendeiro e proprietário de minas de ouro, endividado em decorrência do “quinto”. Ao tomar conhecimento do levante que que se formara, optou por beneficiar-se de tal questão, procedendo a elaboração de cartas denúncia à coroa portuguesa, onde apontara Tiradentes como sendo o principal líder de tal movimento.

Diante disso, foi instaurado um procedimento penal em desfavor do Tiradentes.

Tal procedimento seguiu o rito da “devassa”, “cujo objetivo era realizar uma verdadeira inquisição, em que – pasme o leitor – não se asseguravam aos acusados o direito de defesa e o exercício do contraditório. No processo Auto de Devassa, as regras eram bem diferentes. Inquérito e processo eram conduzidos pelos próprios juízes e escrivães, permanecendo os acusados incomunicáveis e sem que os seus advogados pudessem atuar enquanto não finalizado todo o procedimento investigatório. Esses profissionais somente poderiam atuar e apresentar suas defesas quando a devassa fosse concluída, sem que tivessem tido contato, de qualquer espécie, com aqueles cuja defesa estivesse sendo por eles patrocinada”.

Dentro do rito processual em questão “a confissão era considerada a rainha das provas, senão a única. Sendo apreciada não só como meio de prova, mas como a própria prova, proporcionando ao julgador certa tranquilidade para condenar o acusado à pena capital sem remorso ou incerteza, ainda que inexistentes requisitos como: a verossimilhança e clareza nas declarações, consciência, vontade livre e espontânea daquele que confessa”. Sabemos que esse método de apuração de crimes nos remete à lamentáveis fatos históricos, à exemplo da inquisição, ocorrida a partir do século XIII. Segundo nos ensina Gabriel Anitua, a inquisição “se destaca em vários aspectos, como as teorias da pena, a identificação do delito e do pecado (e do “estado de pecado” como formas de direito penal do “autor”), a representação do infrator como um traidor ou inimigo do soberano, a teoria da lei penal e a obrigatoriedade do ius puniendi e a busca pela confissão”. Procedimento semelhante ao que Tiradentes foi submetido, bem como àquele adotado em algumas regiões do Brasil, não?

Ao final do processo Tiradentes foi condenado à morte pela forca, determinando-se que, após a morte, sua cabeça braços e pernas fossem cortados e expostos, declarando Tiradentes, seus filhos e netos infames, confiscando-se todos os seus bens e determinando-se que a casa em que vivia fosse derrubada.

Em contrapartida à sua carta denúncia, Joaquim Silvério dos Reis teve sua dívida perdoada pela coroa portuguesa, recebeu pensão da coroa por toda a vida, recebeu comendas e outros privilégios – um verdadeiro prêmio por sua delação.

Muito embora a colaboração prestada por Silvério à coroa portuguesa tenha atingido os efeitos por ele esperados, após a proclamação da república a imagem de Tiradentes foi “resgatada como importante herói republicano, criado com o objetivo de ornar e legitimar o período de transição que então se vivia. (…) Foram os republicanos, portanto, os responsáveis pelo justo regaste daquele que pagara com a vida por ter participado de um dos mais relevantes movimentos independentistas ocorridos no período colonial brasileiro, marcando a Inconfidência Mineira como incontestável e valoroso exemplo de luta do povo brasileiro pela sua independência e liberdade, contrária à opressão e às arbitrariedades que lhe eram impostas pela coroa portuguesa”.

Tal história, apesar de transcorrida em um passado não tão longínquo, ao início do século XVIII, há quase 230 anos, nunca pareceu tão contemporânea.

Hoje, em pleno século XXI, nos vemos inseridos em um Estado cada vez mais autoritário, em que o punitivismo é cultuado e aplaudido, em que seu principal governante assume publicamente apoiar contundas retrógradas e avessas ao Estado Democrático de Direito.

Além das semelhanças apontadas acima merece destaque a utilização de colaborações premiadas, eventualmente obtidas através de meios muito pouco ortodoxos, instaurando-se um processo penal em que, por vezes, o devido processo legal não é devidamente observado. O objetivo disso é bastante simples: encontrar um culpado, custe o que custar.

É realmente impressionante observarmos as semelhanças da inquisição com o processo ao qual Tiradentes foi submetido e, mais surpreendente ainda, as semelhanças de alguns procedimentos penais instaurados e em trâmite em nosso país com o processo de Tiradentes.

Ora, a informação prestada pelo delator (na concepção de delator da lei à época) foi largamente premiada, em um paralelo bastante concreto com dispositivo incluído recentemente na Lei n. 13.608/18 pela Lei Anticrime, em que prevê recompensa ao informante de delitos ou ilícitos administrativos lesivos ao interesse público (cf. art. 15 da Lei n. 13.964/19).

Com efeito, o informante e o colaborador são formas atualmente bastante empregadas pela investigação criminal para dar suporte a condenações, que muitas vezes optam por levar em consideração tão somente a palavra do colaborador.

Este cenário coloca em evidência o momento histórico de pouco apreço à preservação e prevalência dos direitos e garantias do acusado, conforme identifica Alexandre de Moraes da Rosa e Yuri Felix, “a história demonstra que o processo penal passou por movimentos de oscilação, por vezes fazendo valer as ideias e concepções de segurança e defesa social, tendo como consequência o recrudescimento punitivo.” Devemos ressaltar que o acusado, ainda que tenha cometido o crime pelo qual é investigado, tem a seu dispor garantias processuais para se defender do não raro excessivo poder punitivo do Estado e, sendo o caso, deverá responder apenas na justa medida das transgressões que cometeu.

A prática de delação, no entanto, subverte o processo acusatório. A prática demonstra que a delação não vem sendo utilizada como meio de obtenção de prova, mas sim como legítima fonte de prova, sendo a palavra do delator considerada como verdade mesmo quando este não apresente outros indícios ou elementos probatórios. A contraposição natural do sistema entre defesa e acusação ganha um novo elemento, representado pelo terceiro que tem interesse particular em comprovar sua delação ou informação – a imagem da balança da justiça pende para a punição.

Tudo isso serve para levar uma reflexão acerca do culto ao punitivismo que assola a sociedade que, comumente, apoia a busca de culpados a todo custo, esquecendo-se da lição deixada por Tiradentes no sentido de que por vezes condenações podem estar erradas, a sanção penal é exercício político, e o que é cultuado como heroico no judiciário atual pode muito bem não ser o que parece.

Artigo publicado no Justificando.

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