Gravação de Temer viola seu direito de não se autoincriminar

A gravação clandestina de Joesley Batista de sua conversa com o presidente da República, Michel Temer, jogou o país em mais uma crise política e merece análise aprofundada sobre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito.

A mais alta corte da nação nunca abordou um caso com tais características: um personagem investigado em diversos crimes faz um acordo com o Ministério Público e opera uma ação controlada, autorizada por um ministro do STF. Mas, antes dessa autorização, vai ao presidente da República e grava uma conversa em que lhe dá ciência sobre uma série de outros crimes que estaria cometendo.

A jurisprudência do Supremo é clara sobre gravação feita por um dos interlocutores e à possível violação ao sigilo das comunicações (artigo 5º, XII, CF) e à garantia da intimidade (artigo 5º, X da CF). Na grande maioria dos casos, com esses focos, a Justiça entende que é lícita a gravação feita por um dos interlocutores — sendo vencido, historicamente nesse ponto, o ministro Marco Aurélio, do STF.

No entanto, a abordagem mais correta a respeito do caso Joesley é sobre a violação da garantia da autoincriminação (artigo 5º, LXIII, CF). O assunto toma relevância quando o interlocutor da gravação claramente deseja provocar no interlocutor uma situação para superar sua garantia de silêncio, obtendo prova contra ele com o objetivo de ser usada pelos agentes estatais em processo penal. E, assim, negociar a entrega dessa prova em troca de benefícios penais.

Antes de ingressar em temas doutrinários e jurisprudenciais, é preciso percorrer de forma simples os elementos que devem ser concatenados em gravações. Esses registros podem ser feitos por interceptação, ou seja, quando a gravação não decorre, em nenhuma das duas pontas, de uma comunicação, seja ela telefônica ou pelos modernos meios de troca de voz pela internet ou por texto.

Também pode ser ambiental, quando se grava o ambiente da conversa. Essa gravação pode ocorrer sem que nenhum dos interlocutores tenha conhecimento. Ambas as formas, autorizadas pela Justiça, tornam a gravação, inicialmente, lícita. Evidentemente estará a decisão judicial sujeita à verificação de legalidade e poderá seu conteúdo ser anulado.

Tanto na gravação telefônica quanto na ambiental, pode um dos interlocutores gravar a conversa, com ou sem autorização judicial. A legalidade dessa gravação dependerá de alguns fatores. A questão central está na preservação da garantia constitucional contra a autoincriminação, e não somente no direito à intimidade. Assim, se a gravação é feita pela defesa para comprovar inocência, ela é sempre admitida, sendo inválida, porém, para a acusação.

No caso de a gravação ser feita por um dos interlocutores como vítima, ela é válida, pois o outro não tem burlado seu direito ao silêncio. Ele, de fato, está a cometer um crime, a exemplo do sequestrado quando pede resgate à autoridade no crime de concussão.

É ilícita a gravação ambiental ou telefônica que visa burlar o direito ao silêncio do outro, consubstanciando uma verdadeira emboscada a ludibriar o interlocutor. A autorização judicial não torna legal gravação que tenha essa dinâmica.

Vale lembrar que a redação da decisão do STF no Recurso Extraordinário 583.937[1], com repercussão geral admitida e usada como parâmetro nesses casos, não comporta todas as questões que devem ser examinadas do ponto de vista constitucional, que não foram debatidas no julgamento[2] e não representam o conjunto das decisões do Supremo.

O julgamento desse caso, aliás, teve debate oral singelo, com relatório verbal que não se aprofundou no que consta no acórdão escrito. Na ocasião, percebia-se que a Defensoria Pública requeria a juntada de uma gravação ambiental em defesa de um acusado. Todos os ministros acompanharam o ministro Marco Aurélio, sem que fosse comunicado pelo relator que se tratava, nada mais, nada menos, de prova de defesa.

As palavras ecoadas pelo ministro Marco Aurélio merecem ser repetidas em um tempo pós-moderno, em que as gravações ambientais a serviço do estado policial se vulgarizam.

Disse ele: “Entendo que a gravação escamoteada, camuflada, não se coaduna com ares de realmente constitucionais, considerada a prova e, acima de tudo, a boa-fé que deve haver entre aqueles que mantêm, de alguma forma, um contato. Que mantêm, portanto, um diálogo”.

O ministro afirmou ainda: “Não imagino que cheguemos ao ponto de ter de revistar alguém que peça uma audiência para manter contato sobre esta ou aquela matéria, visando a saber se porta, ou não, um gravador. Portando gravador e partindo para a gravação da conversa, adentra, a meu ver, campo contrário à boa-fé que deve ocorrer nas relações humanas, chegando a algo, sob minha ótica, inconcebível”.

O caso julgado passa a ser mais compreensível no acórdão escrito do que efetivamente ocorreu nos debates. O recorrente foi acusado de desacato contra o juiz da 2ª Vara Criminal da comarca de São Gonçalo (RJ) e requereu a juntada da gravação ambiental da audiência.

O recurso Extraordinário apontou violações dos artigos 1º, inciso III; e 5º, incisos X, LIV e LV da Constituição Federal. Alegou-se que a prova seria lícita porque “as audiências criminais são públicas”. A afirmação foi a de que “não existe no ordenamento qualquer limitação para gravação de colóquio interpessoal, em ambiente público, mesmo que de forma clandestina ou sem conhecimento da gravação do outro interlocutor”.

É preciso seguir os precedentes citados pelo então ministro Cezar Peluso na ocasião. O primeiro é um caso em que ele foi relator — o RE 402.717[3] (DJe de 13/2/2009). Esse precedente tratava de gravação clandestina ocorrida igualmente como prova de defesa. O voto até defende a tese de que somente há violação constitucional quando a conversa é gravada por terceiros sem ordem judicial. No entanto, o caso concreto tratava de prova de defesa, não fazendo precedente para a tese central que defendia.

O segundo precedente citado é o chamado “caso Collor”, a Ação Penal 307, nela o ministro afirma que, “se limitou o tribunal a reconhecer ilicitude à degravação do que se continha em disco apreendido sem as formalidades legais”. Duas provas foram, então, consideradas ilícitas.

O que se debatia no processo Collor era a gravação de uma conversa entre Paulo César Farias e Fernando Collor, feita com o uso de uma secretária eletrônica, oferecida pela testemunha Sebastião Curió. A gravação foi considerada ilícita.

O terceiro precedente de gravação ambiental citado foi o Inquérito 657, contra o então ministro do Trabalho de Collor, Antônio Magri, processo de relatoria do ministro Carlos Veloso, do STF — o mesmo citado pelo ministro Marco Aurélio no voto do RE 583.937.

No Inquérito 657, o STF enfrentou o tema da gravação ambiental de forma tangencial, pois tratava do recebimento da denúncia e não exclusivamente na validade da gravação. O ex-ministro Antonio Magri teria confessado atos de corrupção, na presença de uma testemunha, Volnei Ávila, que gravou a fala. Depois, o ex-ministro se retratou do que dizia na gravação. Diz o voto do ministro Carlos Veloso:

“A alegação no sentido de que a prova é ilícita não tem procedência, dado que não ocorreu, no caso, violação do sigilo das comunicações — CF, art. 5º, XII — nem seria possível a afirmativa de que fora ela obtida por meios ilícitos (CF, artigo 5º, LVI). Não há, ao que penso, ilicitude em alguém gravar uma conversa que mantém com outrem, com a finalidade de documentá-la, futuramente, em caso de negativa. A alegação talvez pudesse encontrar ressonância no campo ético, não no jurídico”.

O também ministro do STF Francisco Rezek acompanhou o relator, considerando lícita a prova. Ele afirmou que “o resultado pode variar entre a indiscrição inofensiva e a mais reprovável vilania; mas não há, aí, um ilícito”. O ministro Ilmar Galvão também acompanhou o relator, entendendo que a confissão teria que estar em harmonia com outras provas dos autos.

O ministro Marco Aurélio pediu vista, e acompanhou o relator quanto ao recebimento da denúncia, mas votou pela invalidade da gravação. Ele disse: “Tratando-se de gravação obtida de forma ardilosa e incorreta, mediante a prática condenável e escamotear um gravador visando a obter a armazenagem de informações, forçoso é concluir que se está diante de prova indiciária alçada pelo meio ilícito, ao arrepio não só dos padrões éticos e morais, como também da própria carta, no que preserva a intimidade da pessoa”.

Antes de prosseguir, é necessário acentuar que o voto vencedor aborda a inexistência de norma legal quanto ao tema, e o ministro Marco Aurélio aborda a garantia da intimidade. Não enfrentam a garantia do silêncio.

Pediu vista o ministro Celso de Mello. Que proferiu o seguinte voto:

“Essa questão — até em função das razões subjacentes ao tema da inadmissibilidade, em nosso sistema constitucional, das provas ilícitas — assume, ao meu ver, inegável relevo jurídico”.

Outro precedente citado é o HC 75.338-8 [4], de relatoria do ministro Nelson Jobim, no qual o acórdão aprecia e entende como legal a gravação telefônica de um dos interlocutores “quando há investida criminosa”.

O caso é de um tabelião que gravou um telefonema de um juiz pedindo valores para influir em uma decisão da Corregedoria. Como vítima de extorsão, foi compreendido como lícita a gravação.

O ministro aborda que não há violação à garantia da privacidade, prevista no artigo 5º, inciso X, da Constituição. Em razão de sugestão do ministro Marco Aurélio, estando pendente o julgamento o caso Magri, o julgamento foi suspenso e afetado ao Pleno. Prosseguindo, o ministro Marco Aurélio ficou vencido.

Importante abordagem fez o ministro Sepúlveda Pertence apontando falta de ofensa ao inciso XII do artigo 5º quanto à preservação de comunicação telefônica, talvez uma violação dos direitos autorais. Chegou a citar a decisão no HC 69.818, na qual apreciou a garantia contra a autoincriminação (art. 5º, LXIII, CF).

O entendimento foi o de que o silêncio somente protege a própria pessoa, não sendo possível socorrer terceiros. Apontando que o tema da autoincriminação não estava sendo apreciado no caso, o ministro acompanhou o relator.

Os três outros precedentes citados de igual forma não sustentam a ementa da repercussão geral. Um trata de um Agravo em que o tema do “the fruits of poisonous tree” (Teoria do Fruto da Árvore Envenenada) não foi objeto de debate (Ai-AgR 503.617, Rel. Ministro Carlos Velloso, DJ de 4/3/2005). Outro aborda o tema da ilicitude sob o ponto de vista de ter sido corroborada por outras no contraditório (RE – AGR n 402.035, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 6/2/2004). O último volta a abordar caso de sequestradores que são gravados por interlocutores que pedem o resgate (HC 75.261, Rel. Min. Óctavio Galloti, DJD 22/9/97).

Assim, a ementa da repercussão geral foi editada em um acórdão que não contou com o debate necessário. A abordagem foi a de que não há ofensa ao artigo 5º, inciso XII, quanto à interceptação telefônica, de comunicação ou de intimidade, quando um dos interlocutores grava a conversa.

Em 30 de outubro de 2001, o Supremo, em processo de relatoria do ministro Sepúlveda Pertence, julgou o HC 80.949-9. O caso abordava uma gravação ambiental, feita por um policial em uma conversa informal com o investigado, em que visou obter deste uma confissão de seus atos, fora do depoimento em que negava as ações. Relembro o caso com certa nostalgia do excepcional humanista, ministro Vicente Cernicchiaro, e pela passagem de Sepúlveda pela corte.

Marca o acórdão a frase:

“Guarda da Constituição, e não dos presídios. É dessa opção clara, inequívoca, eloquente, da Constituição — da fidelidade à qual advém a nossa própria legitimidade — é que há de partir o Supremo Tribunal Federal. O acórdão conclui que ‘a confissão gravada é ilegal por dois motivos. O primeiro porque estava o paciente preso sem flagrante ou ordem judicial’ (…) Já decidiu esta Turma que confissão sob prisão ilegal é prova ilícita e inválida a condenação nela fundada” (HC 70277, 1ª T. 14.12.93, Pertence, TRJ 154/58; Lex 187/295)”.

A ementa é a seguinte:

III Gravação Clandestina de “Conversa informal” do indiciado com policiais.

3. IIicitude decorrente — quando não da evidência de estar o suspeito, na ocasião, ilegalmente preso ou da falta de prova idônea do seu assentimento à gravação ambiental — de constituir, dita “conversa informal”, modalidade de “interrogatório” sub-reptício, o qual — além de realizar-se sem as formalidades legais do interrogatório no inquérito policial (C.pr. Pen., art. 6º , V) —, se faz sem que o indiciado seja advertido do seu direito ao silêncio.

4. O privilégio contra a autoincriminação — nemo tenetur se detegere —, erigido em garantia fundamental pela Constituição — além a inconstitucionalidade superveniente da parte final do artigo 185 C. Pr. Pen. — Importou em compelir os inquiridos, na polícia ou em juízo ao dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta de advertência — e da sua documentação formal — faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em “conversa informal” gravada, clandestinamente ou não.

O acórdão é um ensinamento àqueles que tentam não “apelar” para o princípio da proporcionalidade — que pressupõe a necessidade da ponderação de garantias constitucionais em aparente conflito. Isso precisamente quando, entre elas, a Constituição não tenha um juízo explícito de prevalência, em virtude da diferença da previsão expressa de nossa carta magna da inadmissibilidade da prova ilícita (artigo 5º, LVI), ao contrário da Alemanha, aonde a “solução do problema da admissibilidade, ou não, da prova ilícita no processo não arranca de norma constitucional específica mas, ao contrário, busca fundamento em princípios extremamente fluídos da Lei Fundamental, a exemplo daquele da dignidade da pessoa humana.”

Evidente que é uma gravação ambiental em que um dos interlocutores visa obter provas para o Ministério Público ou para qualquer membro das forças repressivas este age como uma extensão do estado, não podendo ser permitido uma forma de burlar a garantia contra autoincriminação. Quando o interlocutor faz a gravação ambiental com os fins de obter provas contra terceiro para os fins de fornecê-la aos agentes do estado, este fere a garantia do silêncio.

A gravação ambiental, portanto, não é ilícita em razão da garantia do sigilo constitucional (artigo 5º, XII, CF), ou mesmo da intimidade (artigo 5º, X, CF), mas em razão da ofensa ao nemotenetur se detegere, (artigo 5º, LXIII, CF). Assim, a gravação do presidente Temer está eivada de ilicitude.

Da mesma forma como ocorreu em caso anterior, de gravação do senador Delcídio do Amaral. É ilícita a utilização da referida prova no inquérito ou no processo, sendo inconcebível sua divulgação sem a análise prévia desta ilicitude. O Judiciário não pode se pautar por decisões monocráticas sem o devido cuidado e sem o devido processo legal. As consequências políticas são diversas e autônomas das jurídicas.


Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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