Falta sustentação jurídica em processo contra Lula

A audiência em que Lula prestou depoimento é um fato histórico. Pode- se dizer que nunca antes na história deste país um ex-presidente da República sentou-se no banco dos réus, acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. A primeira acusação que pesa sobre ele é a de receber vantagens indevidas, como um apartamento tríplex no Guarujá. A segunda é a de receber da OAS valores para estocagem do acervo da Presidência.

O conhecimento do processo e a presença na sala de audiências geram perspectivas diferentes de assistir os frames cortados e editados dos jornais televisivos, seguidos de conclusões e comentários.

Sobre a segunda acusação em relação ao acervo, o juiz Sergio Moro não fez nenhuma pergunta. Disse como última frase de seu roteiro que deixaria as indagações para as partes. Tal omissão é mais que relevante. Já percebeu que toda a fúria que empregou quanto ao acervo presidencial e a sua apreensão não se sustenta. Regulado por lei própria, o acervo, apesar de privado, é de interesse histórico e público. Ninguém menos que Fernando Henrique Cardoso testemunhou a Moro relatando as dificuldades para manutenção de um acervo presidencial.

A Procuradoria da República, perante o Superior Tribunal de Justiça, foi a favor de trancar a ação contra o presidente do Instituto Lula, Paulo Okamotto, e do próprio ex-presidente da República por entender que falta justa causa e vantagem ilícita.

Os depoimentos do executivo da Granero e de Léo Pinheiro são uníssonos sobre a irrelevância quanto ao detalhe que se apega os promotores. Estes afirmam que no contrato foi ocultado o real objeto da estocagem ao contar “material de escritório da OAS” em vez de acervo presidencial. Ocorre que a OAS já tinha vários contratos com a Granero e simplesmente foi impresso o contrato padrão. Lula nunca recebeu qualquer valor sobre o serviço prestado pela Granero.

A lógica dos promotores, ocultada atrás da instituição do Ministério Público, foi perguntar por que posteriormente o Instituto Lula e a empresa de Lula não passaram a pagar pela armazenagem já que tinham condições financeiras. Lula respondeu: Porque nunca trataram do assunto. O presidente do instituto e testemunhas relatam várias tentativas de se retirar o acervo para universidades e exposições. É visível que, apesar de não haver sustentação jurídica nem fática no processo, promotores à frente do caso não se desapegaram da acusação já rechaçada pela Procuradoria da República. Sequer os bens de valor estavam na armazenagem de responsabilidade da Granero, mas no Banco do Brasil, que também não foi pago por Lula ou pelo instituto.

A primeira acusação quanto ao tríplex também não se sustenta. É visível, no entanto, que abandonando as amarras técnicas Sergio Moro já pré-julgou a causa. Mesmo não havendo crime, mesmo Lula provando sua inocência, sua sentença será condenatória. A não ser que Moro se libertasse. Desde de 2006 o juiz projetou seu ideal do ego na figura que faria a operação “mãos limpas” no Brasil em seu texto de considerações sobre a operação manupolite. Mas no seu espelho narcísico midiático do ego ideal, que se vê nas capas de revista, a imagem é de quem condenará Lula.

O juiz respondeu que julgará de acordo com a lei e as provas dos autos, ao presidente, quando este fez uma estatística do massacre das notícias jornalísticas contra ele. Resposta típica do jurista, como se diferente dos outros seres humanos e imune às influências midiáticas e desconhecedor do subconsciente.

A base da acusação é a de que o tríplex é de Lula e este ocultou a propriedade recebendo a vantagem correspondente a diferença do valor do apartamento menor (tipo) na construção e as reformas. Ainda, que estes valores saíram de uma tabela de propina da OAS junto a Vaccari advindo dos contratos da Petrobras.

Do ponto de vista formal, a propriedade nunca foi de Lula. O apartamento permanece em nome da OAS, de posse dela e entregue em garantia em seu processo de recuperação judicial. Mas ultrapassando a formalidade e ingressando na tese de simulação e ocultação dos promotores, falta um elemento essencial na acusação, a posse! A posse juridicamente é um fato independente. É possível ter a posse de um bem sem ser proprietário e até através dela por muitos anos adquirir a propriedade pelo usucapião. A prova da ocultação de um patrimônio é a posse. Um infrator tem a posse de um apartamento, um carro, um barco ou aeronave, dele usufrui usando diretamente ou alugando e recebendo as vantagens do bem. Bingo. Apesar de não constar como dono, o comando do bem é seu.

Ocorre que o ex-presidente ou sua família nunca teve a posse do tríplex no prédio que somente passou a existir em 2013. Antes disso, era uma construção, não tendo sequer registro de imóvel separado. A acusação e o juiz tanto se apegam a história original que constroem que, em 2009 já era de Lula o apartamento, que em 2010 o jornal O Globo noticiava a propriedade. Esquecem que o apartamento não existia, pois havia um prédio em construção, sendo mero projeto. A expectativa de direito ainda era sobre a cota da construção.

Lembre-se que Lula deixou a Presidência em 2011. E o apartamento somente passou a existir em 2013 e foi visitado em 2014, ano das reformas. Léo Pinheiro diz que nunca conversou com Lula sobre o pagamento do apartamento. Depois de condenado e meses tentando uma delação premiada, em seu último depoimento disse que após as obras teria conversado com Vaccari como receberia o valor das obras e do apartamento e com este teria combinado sair do “caixa geral”. Ao fim afirmou: “Lógico que Lula sabia”.

O depoimento de Léo Pinheiro não salva a acusação de ocultação de um apartamento nunca entregue. Não há um combinado de ato de ofício de Lula na Presidência da República e nenhuma indicação disto.

O dono da OAS teria combinado com terceiros e não com Lula, apesar da agenda de encontros com o próprio. E se verdade existir na afirmação de que após as obras foi saber como receber, significa que até aquele momento não sabia como, portanto que não combinou com Lula quando era presidente. Após isto Lula não era funcionário público e poderia receber os agrados que qualquer um lhe concedesse. Mesmo que em razão de gratidão por seus atos na presidência, por sua gestão que beneficiou tantos brasileiros e empresas. Pois não houve solicitação ou promessa em razão do cargo. A frase de que: “É lógico que sabia”, é uma dedução, não afirmação fática de uma conversa direta ou uma informação do interlocutor.

Apesar de nem juridicamente, nem taticamente a acusação se sustentar, a aventura judicial dos jovens acusadores e do juiz implacável têm sua solução predefinida.

Moro perguntou se Lula achava correto processar o próprio juiz pelos vazamentos da gravação deste com a presidente e se esta decisão foi dele ou dos advogados. Demonstração de absoluta suspeição. Fez perguntas afirmando que apesar de Lula não ser acusado no mensalão, o que este achava da decisão do Supremo. O desejo era gerar um fato político e indispor Lula com o Supremo, e a decisão que Moro ajudou a construir como assessor de Rosa Weber. Insistiu várias vezes se Lula se sentia responsável pelos atos dos seus indicados no Petrobras, apesar da longa e repetida explicação de que as indicações foram dos partidos e não de Lula. Certa hora ainda acentuou — A indicação foi da Presidência da República, instituição.

Sergio Moro realizou uma audiência sem desvios de roteiro de perguntas e que esperou respostas que levasse Lula às contradições. Nervoso não soube improvisar. Sua peça não saiu como esperava. Lembrou o filme do O Grande Ditador de Chaplin quando preparou toda a sala para receber Mussolini, a cadeira mais baixa, perto do seu próprio busto, o longo corredor… e tudo sai errado. O visitante entra por outra porta, não gosta da cadeira e senta na mesa… Mas o final do roteiro de primeira instância já está redigido pelo juiz. Esquece que Lula advertiu, “a história não acaba”.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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