O advogado Fernando Augusto Fernandes relançou em 2020 o livro “Voz Humana: A defesa perante os Tribunais da República” em versão digital. O livro foi publicado originalmente em 2004, sete anos depois de Fernando ter descoberto os arquivos secretos dos julgamentos de presos políticos no Superior Tribunal Militar (STM) durante a ditadura. É a história de resistência dos advogados perante os tribunais da República, e de Fernando que, por mais de uma década, lutou para que esse material viesse a público.
Assista, a seguir, entrevista concedida por Fernando Augusto Fernandes e Guilherme Lobo Marchioni ao jornalista Alexandre Secco a respeito da obra, autoritarismo, o papel dos advogados na sociedade, a Lava Jato, a Justiça em tempos de isolamento social e julgamentos virtuais.
Para acessar a versão digital de “Voz Humana” e ouvir alguns dos áudios dos julgamentos do STM, clique aqui. E para conhecer o novo livro de Fernando Augusto Fernandes, “Geopolítica da intervenção: A verdadeira história da Lava Jato”, clique aqui.
Leia, a seguir, alguns dos principais trechos da entrevista:
OS ÁUDIOS DA DITADURA
Alexandre Secco: Você fez uma descoberta importante, que ajudou a revelar os meandros da ditadura…
Fernando Augusto Fernandes: Em 1997 eu descobri os arquivos sonoros de julgamentos de presos políticos no STM, o Superior Tribunal Militar. O projeto “Tortura nunca mais” já havia rastreado os processos físicos, o que gerou o livro “Brasil: Nunca Mais”, mas os áudios ainda não haviam aparecido. Eu encontrei fazendo pesquisas. Com a ajuda de um advogado chamado Lino Machado, consegui uma autorização para iniciar uma pesquisa. Porém, assim que meu trabalho começou os arquivos foram lacrados e o meu material de pesquisa foi apreendido.
Aí começa uma saga pela liberação desse material, certo?
Sim, em parte contada no filme “Sobral o homem que não tinha preço”. Eu mostro como consegui esconder parte daquelas gravações para fugir da repressão do STM, o mais curioso, já em pleno regime democrático. Obtive um mandado de segurança para reaver o material, que foi negado pelo STM. A corte argumentou que o arquivo deveria permanecer secreto em nome da intimidade, o que permitia classificá-lo como sigiloso por cem anos. Recorri ao Supremo Tribunal Federal (STF) com participação do Evandro Lins e Silva e uma carta do Barbosa Lima Sobrinho, ambos pedindo pela abertura dos arquivos. Sobrinho tinha 102 anos. Em sua carta, disse que não poderia esperar mais cem pela abertura dos arquivos.
Os apelos foram ouvidos?
As coisas pioraram. Logo depois o STM me intimou. Queriam apagar 100% daquele arquivo, apagar todo o acervo histórico. Nós entramos com uma medida cautelar no STF. À época, o ministro Maurício Corrêa, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), deferiu uma liminar, garantindo a preservação do arquivo. O julgamento do pedido chegou a ser marcado para o pleno do STF, mas foi retirado da pauta e mandado para a turma. Então, o Maurício Correia votou contra a abertura dos arquivos.
Qual foi o próximo passo?
O ministro Nelson Jobim pediu vista dos autos e o processo ficou parado em seu gabinete por dez anos. Uma década depois, exatamente no último julgamento antes da aposentadoria de Jobim, ele colocou o pedido em julgamento e votou favoravelmente a abertura. Todos os votos foram favoráveis, exceto do ministro Maurício Corrêa, que já estava aposentado.
Os arquivos foram finalmente abertos?
Não. O STF deferiu a abertura dos arquivos, mas o STM descumpriu a ordem. Nisso já estamos em 2006, mais de uma década já havia se passado desde a descoberta do arquivo. Nós então ingressamos com uma reclamação pelo descumprimento do julgamento do STF…
E finalmente o STM teve que acatar…
Não. Passaram mais dez anos até a matéria ser julgada. Chegamos a 2011. A ministra Carmem Lúcia foi a relatora. Um pouco antes do julgamento, vendo que não tinha mais condições de manter o arquivo fechado, o STM comunicou que iria abrir. No final, em 2017, o julgamento do STF determinou o comprimento da ordem.
No livro “Voz humana” você detalha essa história?
O livro é um relançamento. Relembramos o trabalho feito há vinte anos, complementado com informações mais recentes, a partir do cumprimento da ordem do STF pelo STM. Obtivemos a cópia integral do julgamento de presos políticos. Estamos fazendo uma pesquisa gigante, com três alunos de história coordenados pelo professor Gisálio Cerqueira Filho, que foi titular de ciência política da UFF (Universidade Federal Fluminense) e a professora titular de história Gislaine Neder. Estamos analisando a integralidade do arquivos sonoros. Essa pesquisa gerou o lançamento de dois livros, o “Voz humana” e uma tese de doutorado chamada “Poder & Saber – Campo jurídico e ideologia”, que analisa a formação dos advogados brasileiros. Em breve a nova pesquisa gerará um novo trabalho.
O VÍRUS DO AUTORITARISMO
A ditadura acabou em 1984. Por quê essa demora na abertura dos arquivos, em pleno regime democrático?
Existe um termo em história chamado “permanência histórica de longa duração”. Fala-se, escolasticamente, que a escravidão acabou em 1888. Mas ela não acabou em 1888. Ela se prolonga no tempo. Por quê essa demora na abertura dos arquivos? É por que, de fato, quando falamos de autoritarismo, nós estamos falando de um vírus, como o da Covid-19. Em nossa história, não fomos imunizados pelo vírus do autoritarismo.
Não vivemos uma democracia?
Quando imaginávamos estar vivendo o curso normal de um regime democrático, enfrentamos um retrocesso, a ponto de se negar que a ditadura existiu. Elegemos um presidente que pregou a tortura. É inacreditável que voltamos a uma retórica da guerra fria, um presidente que procura o inimigo comunista. A luta pela abertura dos arquivos de 64 é compatível com esse momento histórico que vivemos. Mostra que não vencemos plenamente a ditadura. De fato, ainda não enterramos os nossos desaparecidos. Muitas famílias continuam vivendo essa dor.
E o judiciário? Não tem feito seu papel em defesa das garantias constitucionais?
Recentemente eu fiz uma palestra em um encontro sobre prerrogativas profissionais de advogados. Ponderei que um dos setores da sociedade que menos se democratizou é exatamente o Poder Judiciário. O Poder Judiciário permanece inalterado.
LAVA JATO
De alguma forma a ditadura deixou registros, que nos permitem reconstituir a história para saber o que aconteceu. Algum dia conheceremos os bastidores da Lava Jato?
Essa é uma pergunta essencial. Por mais que o regime militar tenha apagado e destruído, minha pesquisa só foi possível porque muitos documentos foram preservados, porque os registros foram feitos. O Michel Foucault disse que se conhece a história de um país pesquisando seus processos criminais. A Lava Jato busca destruir, ocultar os seus próprios documentos. Vimos recentemente uma tentativa da procuradoria-geral em acessar documentos e os procuradores da lava-jato reagiram, como se fossem de uma república independente, a de Curitiba.
O registro histórico da Lava Jato está em risco? Então nunca saberemos o que aconteceu?
Há uma preocupação de que esses documentos da lava jato possam ser destruídos. Muitos não são físicos, são digitais. De certa forma, é mais fácil desaparecer com eles. Precisam ser preservados para que se possa contar a história das arbitrariedades que foram cometidas nessa operação. Quando se permite a destruição de documentos que estão sob seu poder, você destrói essa ideia de accountability. Na verdade não é penas a preservação dos documentos históricos e dos registros processuais. Nesse caso, compreende documentos virtuais, inclusive os registros feitos fora dos autos, em forma de mensagens. Tudo isso faz parte desse processo, que na verdade virou uma malha de informações que está inacessível.
Você se refere às trocas de mensagens conhecidas pela “Vaza Jato”?
Foram tomadas decisões fora dos autos, em comunicações por mensagens e aplicativos. Isso não significa que não façam parte do processo. Nós entramos com uma petição em nome do Paulo Okamotto no Superior Tribunal de Justiça, requerendo o material na busca e apreensão realizada na casa dos hackers fosse compartilhado, caso o juiz Sérgio Moro e o Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Lava Jato, não entregassem as suas mensagens.
Por quê? O material já não é conhecido?
Porque as mensagens trocadas entre os juízes e os promotores, mesmo fora dos autos, são atos processuais e atos processuais têm que ser registrados. Não podem ser destruídos. São de interesse da defesa. Na verdade, é obrigação do Estado preservar esse material, essencialmente porque mesmo que o acesso àquelas mensagens obtidas pelos hackers tenha sido por meio ilícito, a prova ilícita pode ser usada pela defesa. O que ocorreu é que o juiz e o promotor de justiça dolosamente apagaram mensagens, que são atos processuais e que precisam ser restaurados.
Há uma percepção de que a Lava Jato impôs uma série de barreiras para o trabalho dos advogados. Que paralelo você faz entre o trabalho dos advogados hoje, nesse contexto de Lava Jato, com o trabalho de advogado antes, durante a ditadura?
Na verdade, as dificuldades impostas aos advogados pela força-tarefa da Lava Jato resultaram em dificuldades para preservar as garantias constitucionais do cidadão e, por conseguinte, as prerrogativas dos advogados. Eu não digo que há um paralelo entre a ditadura militar e o que aconteceu na lava jato, há uma continuidade. Há uma continuidade em relação à falta do amadurecimento de um estado democrático de direito,
O judiciário entende essa relação, entre prerrogativas profissionais e garantias individuais?
O ato fundador da nossa democracia, nossa Constituição de 1988, se origina de uma constituinte cidadã, que não foi absorvida suficientemente, mesmo após tantos anos. Nós não conseguimos ainda fazer com que os membros do Judiciário se entendam como servidores públicos, como servidores do cidadão. Que os membros do Ministério Público se entendam como servidores públicos. Que não se entendam como acusadores, mas como os fiscais da Lei. E com a responsabilidade que têm em relação às garantias dos cidadãos, do indivíduo. Note que estou generalizando. Claro que temos grandes juízes, grandes desembargadores, grandes ministros.
Sérgio Moro, os procuradores, eles não se viam como servidores públicos?
O que aconteceu na operação Lava Jato é que nós estávamos a caminho de um amadurecimento democrático. De repente, as pessoas passam a se sentir confortáveis diante de certos atos e vem à tona um sentimento latente de admiração pelo torturador. Veja que questão interessante. Ao mesmo tempo que elegemos um presidente da república que defende tortura, ficaram absolutamente claros os abusos cometidos pelo ex-juiz Sérgio Moro. E durante esse processo inteiro da lava jato, que desemboca no processo eleitoral, ele vai sendo cada vez mais admirado, como super-homem. Na verdade, houve um desencapsular de sentimentos autoritários.
Moro era um juiz de primeiro grau, estava sujeito a instância de controle. Por quê não foi barrado?
Eu falei na sustentação oral que fiz junto ao TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3º Região), no curso do processo do ex-presidente Lula, que o STF se omitiu. Deixou de dizer que a jurisdição não é um poder do juiz, mas uma limitação do poder do juiz. Permitiu que Sérgio Moro conectasse processo com processo com processo, fazendo seis anos de conexões inexistentes, sob os olhos de todos.
Então as pessoas compreenderam que houve abusos na Lava Jato e concordam com eles?
Eu digo que uma parcela relevante da população brasileira, especialmente a classe média dominante, concorda com os abusos. Para certas pessoas, pouco importa o devido processo legal. Algumas acham que o Lula tinha que ser preso, não por qualquer fato, ou por qualquer acusação que pesava contra ele, mas apenas pelo que ele é. Assim como uma parcela do Poder Judiciário, que, na verdade, sustentou os abusos da operação Lava Jato. Nós não podemos admitir ataques fascistas ao Supremo Tribunal Federal, como os propagados em fake news, mas também não podemos ficar encabulados de criticar o STF.
Durante esses anos de profissão, e já se vão duas décadas, eu já vi muitas pessoas chorando, chorando na minha sala de reunião e dizendo o seguinte: eu achei que o sistema funcionava, eu vi as notícias do jornal e apoiava. Agora eu estou sendo vítima de uma injustiça. Em um julgamento no STF o então ministro Eros Grau disse uma vez que as pessoas só compreendem quando é com seu pai, quando é com sua mãe, quando é com seu filho.
O PAPEL DOS ADVOGADOS
E o papel dos advogados nessa história toda? Parece que a sociedade não os vê da forma mais positiva. Quando eles perderam esse link com a sociedade?
Antes de responder eu faço uma pergunta. A pergunta é: quando os advogados tiveram esse link? Nunca! Essa distorção a respeito do que são as prerrogativas profissionais dos advogados é importante. Podemos comparar com a prerrogativa dos juízes e promotores de andarem armados, ou de suas prerrogativas de função, mesmo em relação a crimes comuns.
Eles gozam de prerrogativas quando batem na mulher, quanto atropelam alguém no trânsito. Advogado não tem isso, tem algo parecido, que é não ser preso senão em flagrante delito por crime inafiançável no exercício da função. Há uma diferença entre prerrogativas e privilégios.
Perdeu-se o respeito pelos advogados?
Há uma confusão. O advogado tem que ser respeitado, mas isso não se demonstra garantido a ele uma vaga especial para estacionar no fórum, não é permitindo que ele ande armado. O advogado tem que ser respeitado nas suas prerrogativas porque ele é o anteparo daquele indivíduo que está sendo acusado.
E o sujeito que matou John Lennon, ou o esfaqueou o Bolsonaro? Como se faz para justificar a defesa deles?
O livro “Voz Humana” não traz só o arquivo de 64, ele traz a história da defesa de presos políticos através da República. É o único livro que consegue trazer elementos desde do Rui Barbosa na ditadura florianista e vai seguindo a defesa de presos políticos, passa pelo regime do Estado Novo e chega ao regime de 64. O livro faz esse link entre nossa e o exercício da Advocacia. É interessante observar o exemplo de um sujeito de direita, religioso, a favor da censura que é o Sobral Pinto, que vai defender dois sujeitos que são absolutamente contrários a ele. O Luiz Carlos Prestes e o Harry Berger, dois comunistas.
E por quê, um católico, de direita, defendia ateus, comunistas?
É preciso entender o tamanho da humanidade, da religiosidade que tem que ter. Religiosidade do ponto de vista do cristianismo. Um advogado criminalista ter que entender, tentar estender a mão para escutar alguém que também assume o papel de vítima. Vítima de todas as raivas da sociedade. Em um determinado momento, precisa colocar o seu próprio corpo, seu próprio nome, a sua própria reputação em jogo para tentar articular voz desse sujeito frente a essa sociedade. É preciso ter uma formação pessoal clara, humanista. É preciso fazer com que as pessoas entendam que o advogado criminal não é o conexo do vagabundo. Não é o sujeito que é condescendente com o criminoso. Ele é um profissional que arca com o peso de uma grande responsabilidade. Tem a humanidade para escutar e também entender que há muita gente inocente, ou culpadas por crimes bem menores do que são acusadas.
Humanidade, mesmo nos casos mais graves…
Vamos a um caso de alguém que cometeu um crime absurdo, um assassinato triplamente qualificado ou um crime sexual. Como advogado, mesmo tendo ojeriza daqueles fatos, precisa elevar o seu grau de humanidade para escutar, para entender e para ser a voz daquele sujeito, que pode ser alguém que não tem condição nem de falar. É uma profissão que exige muito. Exige tanto que exige até compreender que se é incompreendido.
A JUSTIÇA POR TELECONFERÊNCIA
A Justiça está migrando para plataformas virtuais e digitais. Os advogados estão ficado mais longe. Isso é positivo?
Eu acho o seguinte: o julgamento virtual tal qual estava sendo realizado pelo Supremo Tribunal Federal e começou a se propagar por outras cortes, é inconstitucional.
Inconstitucional? Simples assim?
Sim. Estou dizendo sobre o julgamento virtual sem a presença dos advogados em sessões que não se escuta a proclamação dos votos, não se permite a participação dos advogados e nem mesmo do Ministério Público. É inconstitucional porque ofende o artigo 93 inciso nono da Constituição, que diz que os julgamentos são públicos.
Todo tipo de julgamento?
Não estou falando dos julgamentos por teleconferência, que estão ocorrendo agora. O julgamento por teleconferência é um grande avanço. Eu escrevi um artigo que foi publicado no ConJur, falando sobre o uso da tecnologia para democratização do acesso ao judiciário. Relembrei a experiência do Tribunal Regional Federal do Rio Grande do Sul, cuja sala de sessões físicas têm televisões para que os advogados que estão em subseções possam sustentar oralmente. Eu entendo que permitir que os advogados possam fazer sustentações orais no STF no STJ, de onde estiverem, isso vem democratizar o acesso ao judiciário, então eu sou plenamente favorável as sessões por teleconferência, sem a extinção das sessões presenciais.
É possível fazer um júri por teleconferência?
A questão do júri é um pouco mais delicada do que o julgamento normal. No júri você tem toda a questão dos jurados. No entanto, em que pese eu achar essencial a presença física no júri, também acho que a extensão de um isolamento social na Covid-19 não pode deixar o réu sem julgamento.
Depois da Covid-19, devemos voltar ao modelo anterior, presencial?
Acho que o avanço que nós obtivemos em relação a esse tipo de inter-relação, não deve acabar depois do isolamento social. Veja que coisa incrível, antes você era obrigado a pegar avião e ir a Brasília, esperar o ministro para conversar com ele, muitas vezes chegava lá e não era recebido. Hoje você pode aguardar uma ligação, consegue falar com ele na hora marcada. Acho, portanto, que democratiza, cria um respeito com o advogado e acho que é um avanço que nós não podemos perder.
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