Artigo publicado no Consultor Jurídico.
O momento de pandemia que estamos vivendo, com necessidade de isolamento físico, mortes em inúmeros locais do mundo e a imediata suspensão das atividades de inúmeros tribunais reflete um cenário que deve servir para pensarmos o que se pode mudar no Judiciário brasileiro. E em especial garantir a ininterrupta prestação jurisdicional conforme previsto na Constituição Federal da República, em seu artigo 93, inciso XII[1], e, também, como resultado do exposto em seu artigo 5º, inciso XXXV[2].
O acesso aos tribunais está limitado, quando não impedido. O Supremo Tribunal Federal alterou seu regimento interno nesta quarta-feira (18/3), majorando a possibilidade de julgamento virtual e, também, de participação dos advogados pelo mesmo meio[3]. Em alguns pontos a alteração é um avanço, em outros um retrocesso, sabendo-se que essas alterações vão além da crise de saúde pública que vivemos.
No texto publicado na ConJur intitulado “Julgamentos virtuais são inconstitucionais e devem ser extirpados do mundo real”[4], defendi que há afronta direta ao artigo 93, inciso IX da Constituição Federal, que determina que os julgamentos sejam públicos. Afronta a cidadania a e advocacia, que é parte integrante do julgamento, nos termos do artigo 133 da Constituição Federal.
Nesse mesmo sentido escreveu o desembargador José Muiños Piñeiro Filho, que, em artigo de livro em homenagem ao ministro Luiz Fux, afirma que “não é apenas ilegal; mais do que isso, é inconstitucional a realização de julgamentos eletrônicos e/ou virtuais de recursos criminais, ao menos os que admitem sustentação oral, não apenas por falta de norma disposta em lei que o autorize expressamente, mas também por ofender, diretamente, o princípio constitucional da publicidade dos julgamentos.” [5]
Contudo, é possível pensar em outra forma constitucional de julgamentos virtuais públicos e democráticos. Um grande exemplo é o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que anuncia em sua página na internet que “os advogados do Sul do Brasil com audiência em outra cidade que não a sua de origem ou que precisam fazer sustentação oral em processos no tribunal (…) não precisam viajar até outro município ou à sede do tribunal em Porto Alegre. É possível fazer por videoconferência”[6]. O TRF-4 ainda anuncia que “tem permitido a realização de diversas iniciativas como mutirões de conciliação entre diferentes subseções e conciliações virtuais “. E que “desde março de 2013, o Conselho da Justiça Federal adotou o sistema de videoconferências criminais, desenvolvido pela Justiça Federal do Rio Grande do Sul, como o sistema nacional de audiências por videoconferência em processos criminais no âmbito da Justiça Federal de todo país”.
O STF, por sua vez, na emenda regimental aprovada no último dia 18, determinou a inclusão do parágrafo 5º ao artigo 131 de seu Regimento Interno, criando a possibilidade de sustentações nos julgamentos presenciais por videoconferência[7]. Nesse ponto democratiza o acesso à justiça, pois permite que o advogado participe ativamente da sessão de julgamento em tempo real, ainda que não presente fisicamente.
As inovações tecnológicas são importantes, e, em especial, as iniciativas. É de se lembrar da iniciativa da juíza Tamara Gil Kemp, da 1ª Vara do Trabalho de Gama, que realizou a primeira conciliação via WhatsApp, com negociação dos advogados via o aplicativo de mensagens.[8] O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª região também homologou acordo de R$ 3,2 milhões realizado pelo WhatsApp[9].
De fato, 11 tribunais de Justiça já regulamentaram o uso do aplicativo de mensagens nos trâmites processuais, o uso da ferramenta pelo magistrado do PCA, Gabriel Consigliero Lessa, juiz da comarca de Piracanjuba, começou em 2015 e lhe rendeu destaque no Prêmio Innovare.[10]
O Plenário do Conselho Nacional de Justiça aprovou a Resolução 227/2015, que regulou o teletrabalho, chamado de home office. Nesse contexto, a ministra Nancy Andrighi sugeriu obrigatoriedade de “processo administrativo disciplinar contra o servidor em regime de teletrabalho que receber em sua casa advogados das partes, além da suspensão automática da permissão para teletrabalho”. Com efeito, a resolução, no artigo 9º, parágrafo 2º, veda o recebimento de advogados, em afronta ao artigo 133 da Constituição Federal. Claramente derramando sobre a nobre classe dos advogados uma suspeição. De outro lado, a Associação dos Magistrados Brasileiros se manifestou a favor do teletrabalho dos magistrados, garantindo que “possibilidade de regulamentação desse atendimento por programas de telefonia com vídeo pela internet, disponibilizados na própria unidade jurisdicional, o que permitiria o contato direto e em tempo real do advogado com o juiz, sem violação à norma do artigo 7º, VIII, do Estatuto da Advocacia“[11]. O fato é que, se devidamente regulado e permitido o acesso presencial e digital dos advogados e partes com o magistrado, se democratiza o acesso ao juiz. Nesse momento, é urgente essa regulamentação.[12]
Por sua vez, o Conselho da Justiça Federal, em sua Resolução 570/2019, regula o teletrabalho caso de magistrados em caso de deficiência ou por motivo de saúde e no parágrafo 3º determina que “o magistrado em regime de teletrabalho deve atender às partes e a seus patronos por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico, por meio de equipamentos próprios ou, se possível, com equipamentos fornecidos pela unidade jurisdicional em que atua.”
Recordamos, ainda, a Lei 11.900/2009, que permitiu excepcionalmente “realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência”. Evidente que o acusado tem o direito de contato pessoal com o juiz para os fins de poder interagir de todo modo com o julgador. Aliás, a tentativa do ministro Sergio Moro de introduzir no seu projeto de lei a regra da teleconferência para audiência de custódia foi rejeitada e muito bem se pronunciou a nota técnica no Ibccrim que o projeto aprofundava a “desumanização das cerimônias já degradantes do processo”[13]
Assim, o momento exige que o Judiciário se utilize das regulamentações já emitidas para que os magistrados trabalhando de casa atendam as partes e advogados e que os julgamentos virtuais sem participação das partes sejam extintos, se substituindo de imediato pela experiência de julgamentos por teleconferência.
A vida humana precisa ser protegida, e a Constituição de igual forma. Esta garante as funções sociais do Judiciário do qual os juízes e funcionários são servidores e, como tal, devem atender ao jurisdicionado e aos advogados. Sobral Pinto propagou que “todo poder emana do povo” durante discurso pelas Diretas Já, tendo prenunciado o elemento fundante da atual Constituição Federal democrática, pela qual o jurisdicionado – o povo, representado por advogado, – tem ao seu dispor um sistema Judiciário ininterrupto e que deve estar pronto a atender as demandas que receber.
Se pelo vírus se mudou de “o show não pode parar” para “o show precisa parar”, o Judiciário não pode parar. Afinal, o momento é mais do que propício para o Judiciário ampliar a forma de participação nos julgamentos virtuais e utilizar de todo o tipo de tecnologia para garantir acesso e atendimento do público à justiça.
Todavia, mesmo com a alteração no regimento interno do STF, continua-se a pecar ao dar poderes ao relator a resolver sobre os julgamentos em ambiente presencial ou eletrônico, sem propiciar ao advogado o destaque para o julgamento presencial (conforme novo artigo 23-B do Regimento Interno do STF). Apesar de ter se tornado recorrente decisões de ministros pelo julgamento virtual ignorando pedido expresso pelo julgamento presencial.
Nesse sentido, o artigo 21-B, parágrafo 2º, do Regimento Interno do STF, incluiu o que parece ser verdadeira anomalia, “permitindo” “à Procuradoria-Geral da República, à Advocacia-Geral da União, à Defensoria Pública da União, aos advogados e demais habilitados (…) encaminhar as respectivas sustentações por meio eletrônico”. É de questionar, o que seria isso? Uma gravação de vídeo da sustentação? Um memorial sonoro? Pode tal procedimento substituir uma sustentação oral como meio de defesa?
A sustentação se realiza perante o julgamento com interação com os julgadores. Não é admissível julgamento em que seja negada à parte ou sua defesa o devido acompanhamento das razões dos votos, nas sessões de julgamento a participação dos advogados e partes não podem ser impedidas ou minoradas para formas meramente simbólicas.
Ressalta-se que, quando do julgamento sobre a alteração no Regimento Interno do STF, o ministro Marco Aurélio votou contrariamente, advertindo que “significa um passo largo para não se ter mais sessões presenciais”. Ainda acentuou: “Não cabe ter-se julgamento em colegiado no campo virtual, porque colegiado pressupõe a troca de ideias (…) Nós nos completamos mutuamente”. De fato, o advogado compõe o julgamento e é parte integrante desse momento de convencimento, estabelecendo a possibilidade de diálogo com os ministros, por meio de perguntas, esclarecimento de dúvidas, e intervenções.
Evidente que as recomendações para controle da propagação do coronavírus exigem medidas para a manutenção do funcionamento do Judiciário, as quais devem contemplar o isolamento, a fim de reservar e proteger os servidores e jurisdicionados. Mas da mesma forma que não podemos culpar nacionalidades pela fatalidade, pois o vírus passa, e o preconceito, não, quando a crise passar o aparelhamento de procedimentos inconstitucionais persistirão e poderão ser continuamente utilizados para mitigar direitos. E se “ninguém está acima da lei”, nem ministros do Supremo estão acima da Constituição Federal.
[1] “A atividade jurisdicional será ininterrupta, sendo vedado férias coletivas nos juízos e tribunais de segundo grau, funcionando, nos dias em que não houver expediente forense normal, juízes em plantão permanente.” [2] “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” [3] http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=439661&ori=1 [4] https://www.conjur.com.br/2018-mai-01/julgamentos-virtuais-sao-inconstitucionais-extirpados [5] PIÑEIRO FILHO, José Muiños. A inconstitucionalidade dos julgamentos eletrônicos e/ou virtuais de apelações criminais por afronta ao princípio da publicidade. In: Alvim, Tereza Arruda; et al. O novo processo civil brasileiro: temas relevantes – estudos em homenagem ao professor, jurista e ministro Luiz Fux. Rio de Janeiro: editora GZ, 2018. [6] https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=noticia_visualizar&id_noticia=13193 [7] “RISTF, Art. 131 (…) § 5º Os advogados e procuradores que desejarem realizar sustentação oral por videoconferência, nas sessões presenciais de julgamento do Plenário e das Turmas, deverão inscrever-se, utilizando o formulário eletrônico disponibilizado no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal até 48 horas antes do dia da sessão.” [8] http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2015/12/juiza-elabora-primeira-conciliacao-trabalhista-whatsapp-no-df.html [9] https://www.conjur.com.br/2019-set-13/acordo-trabalhista-32-milhoes-feito-whatsapp [10] https://www.conjur.com.br/2018-jan-31/11-tribunais-justica-usam-whatsapp-envio-intimacoes [11] https://www.amb.com.br/amb-se-manifesta-perante-o-cnj-sobre-o-teletrabalho-por-magistrados/?doing_wp_cron=1584537121.6848089694976806640625 [12] Tema está em debate no CNJ no Procedimento de Competência de Comissão 0006711-84.2019.2.00.0000. Em que pese a OAB-RJ ter se manifestado contrariamente à proposta, conforme: https://www.oabrj.org.br/noticias/luciano-dirigentes-ordem-rechacam-ideia-home-office-juizes [13] https://www.ibccrim.org.br/docs/2019/Nota_Tecnica_Pacote_Anticrime.pdf
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