Introdução: O depoimento especial no cenário pátrio atual
O aumento da repulsa social aos crimes praticados contra menores, principalmente aqueles que envolvem violência sexual, provocou um maior enfoque nesse tipo de ocorrência, o que mostra-se natural em uma sociedade que ainda vislumbra a pena como mecanismo de repressão e prevenção de novos atos delituosos.
Devido a esse fato, o Conselho Nacional de Justiça, adotando uma política de redução de danos, e em boa parcela propulsionado pelo respeitável magistrado José Antônio Daltoe Cezar1, emitiu a Recomendação 33/2010 para estimular “a implementação de sistema de depoimento vídeogravado para as crianças e adolescentes, o qual deverá ser realizado em ambiente separado da sala de audiências, com a participação de profissional especializado para atuar nessa prática”2.
A adoção desse posicionamento do CNJ, externado por meio da recomendação supramencionada, a despeito da inexistência de legislação processual penal que regule a matéria, desencadeou uma mobilização considerável dos Tribunais de Justiça Estaduais, sendo ascendente a adoção deste método.
Trata-se, como bem elucidado pelos doutrinadores Aury Lopes Junior e Alexandre Morais da Rosa, de uma medida bem intencionada, em que se visa, simultaneamente, reduzir a vitimização secundária e aumentar a credibilidade dos fatos narrados pelo menor.3
Contudo, essa modalidade de depoimento, apesar de sedutora devido a suas finalidades, é, além de questionável no que se refere à redução de danos para o ouvido, também incompatível com o Estado Democrático de Direito e o sistema acusatório, bem como de grande forma ineficaz, dado que a forma de coleta dos depoimentos não se atenta para a contaminação da vítima bem como não leva em consideração diversas questões psíquicas que influem no testemunho.
A seguir, analisaremos de forma breve tais questões.
Questões psicológicas de relevo
É de se ter em mente que o testemunho da vítima é o relato de um fato, tal como percebido e memorizado pela pessoa, ou seja, não se trata de um relato, necessariamente, de como o fato efetivamente aconteceu.
Dessa forma, entende-se que as chamadas falhas do testemunho podem ser propositais (mentiras, um relato que conscientemente difere daquilo que foi percebido e memorizado) ou não propositais, sendo certo que o grau de consistência e coerência do testemunho não se correlaciona ao seu grau de veracidade.
Esta dissociação entre o relato e a realidade dos fatos ocorre porque a percepção é um processo interior, pelo qual o indivíduo organiza os sinais obtidos pelos sentidos, atribuindo-lhe significado. Assim, além da limitação natural dos sentidos humanos, tal processo passa por condições modificadoras da percepção, que podem ser objetivas – duração do estimulo, grau de iluminação, silêncio, etc. – ou subjetivas – emoção, experiência prévia, valores, projeção, a busca de coerência, a atribuição de causalidade e a busca de relações, bem como as ilusões ou alucinações.
Após percebido, através dos filtros dos sentidos e das “armadilhas” da percepção, o acontecimento deve ser memorizado, sendo a memória a capacidade de fixação, conservação e evocação (relato) dos fatos, sendo que também nesse aspecto existem condições modificadoras, que são: a atenção, a emoção, artifícios de associação, sugestão, e imaginação.
Verifica-se, portanto, que entre a ocorrência de um fato e sua consolidação na mente do indivíduo, e entre a obtenção desta memória e seu relato, diversos eventos ocorrem e que podem alterar a versão relatada, seja de forma insignificante, seja de maneira relevante.
Ora, no momento em que a vítima ou testemunha presta seu relato, todas as etapas acima já se concretizaram, sendo necessário que o profissional busque identificar, através de inconsistências ou outras falhas da narrativa, indícios de ocorrência dos modificadores acima descritos, bem como evitar a inserção de novos agentes de modificação, principalmente a sugestão.
Com essa breve exposição dos processos da memória, passamos ao próximo ponto.
A sugestionabilidade infantil
É da natureza humana a vontade de responder e relatar aquilo que se imagina que o interlocutor quer ouvir, e com crianças tal impulso é ainda mais forte. Assim, é necessário que se ouça a vítima sem deixar transparecer qual seria a resposta “correta” ou que tipo de narrativa se busca encontrar, devendo o profissional instar a criança a relatar os fatos de forma livre e sem direcionamentos.
Tal cautela com a expressão do testemunho se aplica para adultos e crianças, mas sempre com maior rigor nos infantes, devendo como regra o julgador intervir o mínimo possível no depoimento, pois toda resposta ou é imantada pelas tendências afetivas do interrogado ou é produto de lembranças fragmentadas, preenchidas por deduções lógicas do indivíduo, ou, ainda, é equivocada em razão do medo sentido pela testemunha com a pergunta. Ainda, também afetam a expressão do fato, o ambiente do interrogatório, os tipos de perguntas e a linguagem usada.4
Para ilustrar, no tocante à necessidade de se evitar questionamentos que conduzam a testemunha, tem-se o clássico estudo de Loftus e Palmer5, no qual se verificou que as perguntas formuladas têm o condão de distorcer os testemunhos e levar a um efeito confabulatório, ou seja, as respostas se adequam às deixas das questões, levando a um testemunho que não se coaduna com a realidade.
Ainda, inobstante os cuidados que devem ser tomados no momento da colheita do depoimento, existem questões de extrema importância que se cristalizam antes da ida da criança à delegacia, sendo estas a possibilidade de sugestionabilidade do infante por seus pais e terceiros (ex: terapeuta), sobretudo com o alto risco de criação e consolidação de falsas memórias.
De fato, é bem sabido que a idade da testemunha influencia no processo de memória, chegando-se a afirmar as crianças não são testemunhas dignas de confiança, posto serem extremamente sugestionáveis.6
A esse respeito, as algumas observações do caso State of New Jersey v. Michaels (1994) trazem pontos esclarecedores.7 Nestas, foram levantados estudos que sugerem que crianças expostas a um evento potencialmente ambíguo podem, a depender do que o entrevistador acredita ter ocorrido e como tal crença se exterioriza nas perguntas, relatar o acontecimento como positivo ou negativo.
Também o questionamento repetido pode levar a criança a alterar suas respostas. Isso porque, o infante raciocina que, se a pergunta foi repetida, sua resposta deve ter sido insatisfatória ou errada, devendo ser alterada, ou, ainda, a alteração pode ocorrer pela incorporação, na memória da criança, de sugestões implícitas ou explícitas do responsável por sua oitiva.8
Realmente, a incorporação de dados errôneos em testemunhos futuros é questão de relevo, podendo levar a fabricações que divergem não somente do ocorrido, como mesmo das (des)informações transmitidas à criança, que, alimentada por dados conflitantes, cria sua própria versão do evento.
Como bem apontado em outro estudo9, não apenas as circunstâncias mais evidentes dos depoimentos podem alterar os relatos infantis, mas também deve-se levar em consideração que crianças agem de acordo com os tons emocionais dos ambientes em que se encontram. Assim, por exemplo, caso haja um tom acusatório, as crianças tenderão a fabricar eventos, até mesmo criando relatos de cunho sexual.
Nesse mesmo estudo, também foi indicado que crianças, especialmente as mais novas, são especialmente sensíveis ao status ou ao “poder” daqueles que as ouvem, e assim podem vir a se alinhar às expectativas explícitas ou implícitas de tais indivíduos, o que indica que tanto o local no qual o depoimento é tomado, como aquele que toma o depoimento, devem ser escolhidos e preparados com cuidado.
Ademais, diversos estudos indicam que é relativamente fácil sugerir a uma criança que, por exemplo, um toque que ela realmente vivenciou tenha uma natureza distinta – por exemplo, um carinho afetuoso pode tornar-se uma carícia lasciva –, sendo a nova percepção incorporada como real e repetida em questionamentos futuros. 10
É fácil perceber que em uma situação real de questionamento de uma criança existem altos níveis de estresse. Ainda, as crianças geralmente são questionadas e requestionadas, sob circunstâncias emocionalmente carregadas, e via de regra na presença de seus pais, elementos esses que podem levar algumas crianças a exarar depoimentos que simplesmente se coadunam com as expectativas dos ouvintes e da situação, em uma busca de aprovação ou visando esquivar-se rapidamente da situação estressante.11
Pelo exposto, é evidente que o depoimento especial deve ser cercado de inúmeros cuidados, sendo tomado por profissionais bem preparados, e sempre levando em consideração a possibilidade da sugestão da criança em momento anterior ao de sua oitiva, evitando não apenas a cristalização de falsas memórias dolorosas, como também a má aplicação da justiça com base em testemunhos inverídicos12.
Feitas estas considerações, importante também nos debruçarmos sobre a (in)compatibilidade do atual modo de obtenção do depoimento especial com sistema processual penal que vige em nosso ordenamento penal.
O depoimento especial e o sistema acusatório: é possível a conciliação?
Resta evidente que a implementação do depoimento especial, nos moldes que ocorre na atualidade (ou seja, por meio de recomendação do Conselho Nacional de Justiça), carece de validade formal13, tratando-se de violação ao devido processo legal pela inexistência de previsão no CPC14.
Entretanto, a leniência dos tribunais com relação à existência de “desvios” materiais na produção normativa, devido a falta de clareza dogmática da anacrônica legislação processual penal pátria15, cumulada com a “boa intenção” da proposta, fez com que esse “vício” fosse “deixado de lado” pelo judiciário, de modo que o procedimento é adotado em quase todos os estados16.
Ocorre que, a despeito de sua carência de validade formal, mais do que isso, a adoção do procedimento é clara ofensa ao sistema acusatório, pois não se coaduna com o núcleo fundante desse sistema adotado pela nossa Constituição, motivo pelo qual, o depoimento especial – ao menos nestes moldes atuais – deve ser descartado de nosso ordenamento jurídico17.
A nova ordem constitucional vigente, alicerçada na adoção do sistema acusatório18, trouxe novos contornos ao processo penal brasileiro, de modo que tanto o CPC de 1941, como todos os procedimentos a ele relacionados, devem guiar-se conforme os princípios norteadores do sistema jurídico adotado19.
Conforme define Aury Lopes Junior, visando o processo penal, dentre suas diversas finalidades, buscar a reconstituição do fato jurídico, constata-se que com relação à gestão da prova esta é a pedra angular do sistema processual adotado20.
Assim, leciona o festejado processualista Jacinto Coutinho que, caso a gestão da prova esteja exclusivamente na mão das partes, sendo o juiz mero espectador, trata-se de um sistema acusatório, fundado no princípio dispositivo; enquanto, em contrapartida, caso a gestão da prova esteja nas mãos do julgador, sendo o juiz não mero espectador mas um ator na apuração dos fatos (inquisidor), trata-se de um sistema fundado no princípio inquisitivo, ou seja, um sistema inquisitório21.
O depoimento especial, como hoje adotado, consubstancia-se em método especifico de inquirição de vítima/testemunha, por meio do qual um psicólogo/assistente social/psiquiatra é inserido como instrumento de comunicação entre magistrado e vítima, cabendo ao magistrado encaminhar ao psicólogo as perguntas que achar convenientes, bem como filtrar aquelas formuladas pelas partes.
Ao utilizar terceiro como instrumento para questionamento da testemunha e, novamente, determinar que o magistrado seja responsável pela formulação de todas as perguntas encaminhadas à pessoa que está em contato com o inquirido, além de se reavivar o “finado” sistema presidencialista (tardiamente abandonado pela reforma imposta pela lei 11.690/08), rompe-se com o princípio nuclear e fundante do sistema acusatório, pois, novamente, confere-se ao magistrado a posição de ator, quebrando-se assim a gestão da prova pelas partes.
Isso demonstra uma incompatibilidade insanável no método adotado, o que faz ceder o belo e sedutor discurso que respalda a adoção desse modelo, evidenciado que não há qualquer possibilidade de conciliação entre o sistema atualmente adotado para o depoimento especial e aquele que rege o processo penal, sendo necessária uma completa reforma do primeiro.
O depoimento especial como fonte única de prova
Além da problemática existente entre a completa incompatibilidade do instituto com o sistema acusatório, o que gera a necessidade de sua imediata descontinuação, sob pena de subversão da ordem processual penal e das garantias processuais e constitucionais, também outro problema ronda o tema.
Face às questões psicológicas já levantadas, percebe-se que o testemunho infantil, ainda quando cercado de cuidados em sua tomada oficial, pode ser contaminado e até mesmo manipulado, sendo de especial relevo para os casos penais os incidentes de falsas memórias ou de ressignificação de um evento sob uma ótica perversa.
Dessa forma, nos parece de rigor que apoiar a convicção condenatória tão somente no depoimento especial abre espaço para condenações dúbias e mesmo completamente equivocadas.
Não se trata de menosprezar a palavra da potencial vítima, mas tão somente de não se dar total credibilidade ao relato sem que os fatos circundantes sejam investigados, sem que incongruências sejam sopesadas, e sem que sejam realizados exames complementares, como laudos de corpo de delito, por exemplo.
Ao fortalecer as evidencias que circundam um relato, não apenas se respeitam as garantias da defesa, como também se fortalece a posição da vítima, e reflexamente se garante maior seriedade ao procedimento, de maneira que possui reflexos positivos na aplicação da justiça de forma individual e também na forma com que tais casos são vistos pela sociedade, dado que uma acusação bem fundamentada afasta questionamentos e dúvidas que servem como reforço da vitimização secundária.
Assim sendo, entende-se que, caso o depoimento da criança seja a única prova disponível, não podendo ser embasada por qualquer outro elemento, este deve ser tomado e valorado com extrema cautela, inclusive para que se evite a cristalização de falsas memórias na mente infantil, vitimando psicologicamente e de forma evitável a criança.
Conclusão
A complexa temática que envolve o depoimento especial, decorrente de sua relação interdisciplinar entre direito e psicologia, demonstra o perigoso terreno nos quais transitam os tribunais ao adotarem essa medida.
A possibilidade de indução e cristalização de falsas memórias, decorrente de questionamentos mal formulados pelo magistrado por meio do psicólogo, quando corroborada com a incompatibilidade desse método com o sistema acusatório adotado pela constituição, denota um possível (e esperado) abandono dessa medida no futuro, tendo em vista que seria cabível a sua substituição por um laudo22, no qual a criança deixaria de ser inquirida, mas passaria apenas a ser ouvida, afastando assim a figura inquisitiva do juiz.
Porém, independente da manutenção do depoimento especial (o que consideramos inconstitucional), ou sua substituição por elaboração de um laudo, deve-se ter em mente que a valoração dessa prova sempre deve ser respaldada por um consistente arcabouço probatório indiciário para possibilitar a condenação do acusado. Somente assim será possível equilibrar a insegurança decorrente do depoimento prestado pelo infante com a presunção de inocência, mantendo-se a coerência de um Estado que se denomina de direito.