Alguns aspectos criminais da repatriação de ativos

Por Maria Luiza Gorga
Muito se vem falando dos aspectos tributários da anistia propiciada pelo Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária. Já os aspectos penais, abordados em menor escala, geralmente focam na possibilidade ou não de o indivíduo se ver efetivamente anistiado, ou se tais informações poderiam ser utilizadas para dar início a procedimentos penais contra si.

Compactuamos com a posição de que as informações fornecidas pelo contribuinte não podem dar azo a processo crime contra si, ao menos não para a persecução dos ilícitos mencionados na norma e caso a origem dos bens seja lícita – condição essa estabelecida na própria lei.

Cabe esclarecer, contudo, quais seriam algumas dessas condutas anistiadas[1].

Trabalhar-se-á com a hipótese de valores no exterior com origem definida e lícita (ex: herança remetida a contas offshore), podendo-se, ainda, subdividir a questão em duas possibilidades: Valores não declarados, originados no exterior (ex: pagamento de serviços prestados no exterior, aluguéis de imóveis localizados no exterior); e valores não declarados e oriundos do Brasil (remessa de capitais sem declaração).

Pois bem, de início cabe pontuar quais seriam as normas aplicáveis às hipóteses delineadas[2].

Lei de Lavagem de Capitais (n. 9.613/1998)

A lei prevê, como criminosa, a conduta de “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.”

 É importante ter em mente que os verbos da conduta definida como crime presumem que o delito é permanente, ou seja, ele começa com a ocultação e continua ocorrendo enquanto ela durar. Assim, não é possível se falar em cálculo de prescrição.

Por outro lado, sendo possível a comprovação de que a origem não é ilícita, pode-se excluir a incidência deste crime.

Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (n. 7.492/1986)

Essa norma busca proteger o sistema financeiro nacional, ou seja, a estabilidade econômica, o câmbio. A conduta que nos interessa é a seguinte:

“Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País:

Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.”

Também aqui se está diante de delito considerado permanente, na hipótese da manutenção de valores, o que exclui qualquer possibilidade de cálculo prescricional.

Por outro lado, a efetuação de operação de câmbio ou a promoção da saída de moeda – ambas sem autorização – são fatos que se consumam em momento temporal único, sendo possível trabalhar-se com a prescrição dos fatos (na hipótese mais conservadora, estariam prescritas todas as operações de câmbio ou de saída de moeda realizadas nos últimos doze anos).

 A hipótese legal que se amoldaria à conduta fática seriam a promoção, sem autorização legal, da “saída de moeda ou divisa para o exterior” e a manutenção de “depósitos não declarados à repartição federal competente”.

Enquanto a Lei de Lavagem de Capitais incide potencialmente apenas no caso de valores sem origem, a norma acima pode incidir nas seguintes hipóteses:

1. Valores no exterior com origem definida e lícita (ex: herança remetida a contas offshore).

a. Valores não declarados, porém originados no exterior (ex: pagamento de serviços prestados no exterior, aluguéis de imóveis localizados no exterior); e

b. Valores não declarados e oriundos do Brasil (remessa de capitais sem declaração).

2. Valores no exterior sem origem determinada.

Na hipótese 1.a., a incidência se dá por ter havido a manutenção de depósitos não declarados à autoridade competente[3]. Já na hipótese 1.b., a incidência se dá tanto pela remessa do capital sem a autorização devida (evasão de divisas) quanto pela manutenção dos valores sem declaração à autoridade nacional.

A hipótese 2, a princípio, receberia tratamento semelhante à hipótese 1.a., sendo que, caso se comprove que os valores se originaram no exterior, esta se assemelharia ao tratamento da 1.b.

 Na prática, todas as três hipóteses configuram um único delito, sendo que a diferenciação se daria na determinação do quantum da pena a ser aplicada e da multa a ser definida, com a hipótese 1.a. sendo a mais leve e as hipóteses 2 e 1.b. sendo as mais severas.

O que importa nesse caso é que se aplica a Resolução n. 3.854/2010 do BACEN, que regula a declaração que deve ser prestada ao Banco Central quando da existência de capitais brasileiros no exterior (inclusive investimentos brasileiros alocados no exterior), cominando a aplicação de multas.

 Pois bem. Em primeiro lugar, não há que se falar em prescrição, posto esta Resolução não ser norma penal. Ainda, não se pode falar em extinção de punibilidade pelo pagamento já que o que se exige é mera declaração. Assim, o fato de possuir valores não declarados já enseja a incidência da norma e, consequentemente, das multas nela previstas para o descumprimento.

As multas por descumprimento enquadram-se em dois tipos de interesse às hipóteses consideradas: por atraso na declaração e por não declaração. Pode-se entender que a declaração espontânea, a qualquer momento, enquadra-se em hipótese de atraso, sendo que a não declaração seria evidenciada caso a autoridade financeira verificasse, por si, a existência dos valores não declarados.

Tal resolução é importante posto que a conduta punida pelo art. 22 da Lei n. 7.492/1986 é a manutenção/ocultação de valores no exterior sem a realização da declaração à autoridade competente. Assim, caso seja realizada a declaração ao BACEN e seja quitada a multa correspondente, nos termos da resolução acima, o crime deixaria de existir.

A declaração e pagamento de multa acima descritos encerrariam a questão em caso de valores originados no exterior. Contudo, para valores originados no país – e caso não incida a prescrição já mencionada neste tópico – questiona-se: A declaração e o pagamento de multa extinguem o crime relativo à manutenção dos valores. Tal declaração e pagamento estendem seus efeitos também para as condutas relativas às operações que efetivaram a saída dos capitais do país?

A resposta não é certa. Note-se, contudo, que caso o responsável pelo envio de tais valores ao exterior – por operações de cambio não autorizadas ou por outro meio – seja terceiro, diferente do titular dos valores mantidos no exterior sem declaração, estaremos diante apenas da conduta de “manter sem declaração”, a qual se extingue nos termos já aduzidos acima.

Lei de Crimes contra a Ordem Tributária (n. 8.137/1990)

Essa é uma norma que busca proteger a ordem tributária nacional, ou seja, a arrecadação de tributos devidos ao Estado brasileiro. Assim sendo, como a proteção visa a um valor distinto daquele protegido pela lei acima, haveria concorrência de incidência de ambas as normas.

As condutas que se aplicariam às hipóteses levantadas são:

“Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzirtributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:             

 I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;

Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:

I – fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;

II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.” (destacamos)

Os delitos se consumam, neste caso, ano a ano, posto que as condutas se enquadram no não pagamento do Imposto de Renda (por omissão), que é anual. Assim, pode ser aplicada a prescrição, em teoria (para condutas inseridas no art. 2º da lei, qualquer conduta anterior aos últimos quatro anos não pode ser penalizada, já para aquelas do art. 1º consideram-se prescritas as condutas anteriores aos últimos doze anos – conforme art. 109 do Código Penal).

Inobstante, a incidência dessa norma pode ser completamente afastada caso seja realizado o pagamento de todo o tributo devido, acrescido de seus acessórios (como, por exemplo, eventuais multas), sendo esse afastamento possível em todas as hipóteses aqui consideradas. Nesse caso, haverá extinção da punibilidade com base no art. 9º, §2º, da Lei n. 12.382/2003.

Percebe-se, mesmo se pressupondo que se estará lidando com ativos lícitos, que as possíveis questões penais – as quais não foram exauridas –, possuem defesa possível, porém mais complexa do que a opção pela anistia propiciada pela adesão ao RERCT.

O que se pode ter em mente, tratando-se de bens de origem comprovadamente lícita, é que mesmo sem a anistia, de pronto, poder-se-ia excluir a aplicação da Lei de Lavagem de Capitais. Ademais, o pagamento dos tributos devidos afastaria completamente a aplicação da Lei de Crimes contra a Ordem Tributária, sendo também possível excluir a incidência, na prática, dos crimes ali previstos.

A questão que subsistiria, portanto, é a incidência da Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Em se tratando de valores originados no exterior, a simples declaração de tais valores ao BACEN e o recolhimento da multa devida afastariam a incidência de qualquer punição criminal. Por outro lado, caso os valores sejam oriundos do país, deve-se verificar quem foi o responsável pela retirada dos valores do país – em sendo indivíduo que não se confunde com o atual detentor dos valores, bastaria a declaração destes ao BACEN e o recolhimento da multa.

Contudo, caso o indivíduo responsável pela retirada dos valores do país seja também o titular dos bens mantidos no exterior, seria necessária a realização do cálculo prescricional e, caso este não tenha decorrido, poderia haver a deflagração de persecução criminal.

Percebe-se, portanto, que a adesão ao RERCT proporciona uma maior segurança na esfera criminal, bem como otimiza os pagamentos a serem feitos ao poder público a título de impostos e multas, devendo ser fortemente considerada por todos aqueles que consigam comprovar documentalmente a origem dos valores, bem como realizar as declarações exigidas pela norma.

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[1] A lista completa encontra-se no art. 5º, §1º e incisos da Lei n. 13.254/2016.

[2] Observa-se que, em todos os casos que serão colocados, as condutas devem ser dolosas, isso é, deve haver a intenção de ocultar os valores – ainda, a lei n. 8.137/1990 exige que essa intenção seja com o específico fim de suprimir o pagamento de tributos. Tal observação, contudo, é de pouca consequência preventiva, sendo apenas possível linha de defesa em caso de processo judicial.

[3] A doutrina entende que, para a configuração do crime do art. 22, seria necessário que a origem dos valores fosse brasileira, caso contrário estar-se-ia diante de conduta sobre a qual incidiria apenas a lei n. 8.137/1990 (sendo a omissão de declaração dos valores apenas crime contra a ordem tributária, devido ao não pagamento dos tributos devidos).

Artigo publicado originalmente no Linkedin.

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