A recente decisão do STF e a consagração do direito ao contraditório

Em sessão plenária do dia 26/09/2019, o Supremo Tribunal Federal proferiu seis votos pelo entendimento de que o réu delator não pode ser equiparado aos comuns para fins de aplicação do direito disposto no artigo 403 do CPP[1]. Deste modo, já há maioria formada no sentido de que configura nulidade processual a exigência de apresentação de alegações finais conjuntas entre delatores e demais corréus. Noutra oportunidade, no dia 28/08/2019[2], a Segunda Turma já havia decidido por maioria nesta mesma direção, anulando o processo desde a sentença condenatória em caso no qual o magistrado de primeiro grau indeferira o direito à apresentação das alegações finais em prazo sucessivo, primeiro os delatores e, por último, os outros réus.

Ao assim proceder, a mais alta Corte do país impõe limites e mantém o vigor dos direitos fundamentais à ampla defesa e ao contraditório[3] diante da Lei 12.850/2013, no ponto em que instituiu o regime da colaboração premiada, em decisão cujos contornos inconstitucionais erga omnes ainda serão integralmente apreciados.

A valorização destes dois princípios basilares não é novidade para o STF, que por diversas vezes já os consagrou, como, por exemplo, em diversos acórdãos que conferiram à dita “testemunha” o direito ao silêncio durante inquirição em CPI (v.g.: HC 100.341/AM, Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, un., j. 04.11.2010; HC 80.420/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, por maioria, j. 28.6.2001; MS 23.652/DF, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, un., j. 22.11.2000), bem como em decisões monocráticas específicas (HC 127.538-MCExtn-segunda/DF, rel. Ministro Teori Zavascki, e no HC 128.390-MC/DF, rel. Ministro Celso de Mello, HC 169.595/DF, rel. Ministra Rosa Weber). É evidente que não é somente o nome, ou status jurídico, que determinam na prática se se trata de investigado ou testemunha. A verossimilhança e os direitos assegurados dependem muito mais do papel desempenhado pelo ator jurídico do que de sua caracterização dada pela autoridade.

É exatamente aí onde reside a problemática: o delator não seria, na prática, uma verdadeira testemunha de acusação, fragilizada por figurar no polo passivo da ação? Testemunha pode mentir em prol de benefícios próprio? Qual o real grau de confiabilidade? E, mais especialmente, qual a necessidade de proteção dos demais réus em face das versões apresentadas por ele?

De acordo com a redação do texto fundamental, a Constituição protege o direito à ampla defesa e ao contraditório de acordo com “os meios e recursos a ela inerentes”. Ou seja, o sistema judicial é incumbido de oferecer, aos litigantes em processos em geral, as ferramentas necessárias ao efetivo exercício dos direitos, acrescidos, também, do correto entendimento sobre a validade normativa de cada uma destas ferramentas, de modo a não gerar inconsistências entre dispositivos legais e constitucionais.

A redação do artigo 403 do CPP prevê que as alegações finais “serão oferecidas […], respectivamente, pela acusação e pela defesa, […], proferindo o juiz, a seguir, sentença”. Adiante, o parágrafo segundo prevê especificamente que o assistente do Ministério Público apresentará as suas alegações “após a manifestação desse”, logo, também antes da Defesa.

Ou seja, o referido dispositivo não faz qualquer distinção entre os atores processuais quando trata de “acusação”. O legislador poderia ter delimitado a ordem aos titulares de ações penais – o Ministério Público nas ações penais públicas e o querelante nas privadas – mas optou por previr de o conceito abrangente de “acusação”. Tendo em mente a análise evolutiva das garantias no processo penal, isso denota que a intenção do mandamento legal é de garantir que a defesa, quando se manifeste em alegações finais, já se encontre munida de todo o aparato acusatório, a fim de poder contradizê-lo com a maior efetividade possível, evitando surpresas com novos elementos dos quais não tivera a chance de se defender de forma específica.

Conforme os ditames da Lei 12.850/2013, a colaboração premiada se reveste de negócio jurídico celebrado internamente entre interessado e Ministério Público, que delimitam cláusulas contratuais aptas a satisfazer mútuos objetivos, e celebram acordo com o fim de produzir provas em face de coinvestigados ou corréus. A proximidade de interesses é estampada em vários dispositivos da legislação, dos quais destacam-se os parágrafos 2º e 4º do artigo 4º, que preveem possibilidades de não persecução em face do delator, a depender da relevância de seu depoimento ou de sua posição dentro da suposta organização criminosa, e os parágrafos 6º e 7º, que preveem que o procedimento de delação pode ser feito integralmente entre parte e MP, suscitando apenas posterior homologação judicial.

Se a negociação pode ser tecida em sua integralidade com o órgão ministerial, e até mesmo ensejar o abandono da condição de réu, é fato que o colaborador no processo penal faz parte do conjunto acusatório, uma vez que as suas versões servirão aos interesses da acusação. Não há diferenciação dessa condição considerando que, desde o momento da concretização do negócio jurídico até todo o curso de processamento da ação, os desígnios de ambos permanecem necessariamente interligados.

Entre delator e delatado, contudo, a situação é inversa. Conforme apontado pelo Ministro Alexandre de Moraes no bojo do julgamento do HC 166.373/PR, é “impossível […] falarmos materialmente na existência de litisconsórcio passivo entre delator e delatado, uma vez que o sucesso da delação e, consequentemente, a obtenção das vantagens premiais oferecidas pelo Ministério Púbico ao delator, depende da condenação do delatado” (grifos nossos).

As aspirações processuais dos dois réus – ainda que compartilhem desta condição – são diametralmente opostas, de modo que a versão de um deve importar no prejuízo do outro. O que o colaborador sustentar, se estiver em consonância com o restante do arcabouço probatório, fatalmente resultará em situação desfavorável a seu corréu, que deve ter oportunizada a chance de contradizer o que lhe foi imputado. Tanto o é, que o artigo 5º, VI da Lei 12.850/2013 previu o direito de o colaborador cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais réus, denotando clara intenção de protegê-los dentro de uma situação de adversariedade.

Não é difícil imaginar situação na qual o Ministério Público, na condição de detentor do poder acusatório, estimule o colaborador a incluir em suas alegações finais fato prejudicial à defesa de certo corréu, ainda que o seu prazo tenha esvaído antes. Além de denotar ofensa à boa-fé processual, acaba exprimindo situação de clara disparidade de armas, uma vez que, desde o início da investigação, a acusação está imbuída de aparatos muito mais abrangentes do que a defesa, perpetuando-se até o momento da sentença caso a situação exposta seja possibilitada.

Também é cabível a projeção de outra situação processual, na qual o réu negocia ocultamente um acordo com o Ministério Público e se torna delator ou, pelo menos, tem aspiração de se tornar. O MP sabe, o juiz sabe, o delator sabe, mas os corréus não. Todo o processamento transcorre sem a figura formal de um delator, mas, ao final, ele acaba trazendo elementos prejudiciais a seus corréus, sem que a eles tenha sido oportunizada chance de contra argumentá-los, ou ao menos tenha sido exercido o correto balizamento legal de sua condição de delator durante os atos do processamento.

Neste enfoque, a OAB formulou proposta de emenda substitutiva ao PL 882/2019 (“Pacote anticrime”), no qual prevê a criminalização da conduta acusatória de esconder provas que possam importar na absolvição ou redução de pena do réu, incluindo o artigo 319-B e um parágrafo único no Código Penal, cujas redações seriam:

“Art. 319-B. Direcionar, juiz, promotor ou qualquer outro funcionário público ou juiz arbitral, o Direito para decidir com parcialidade contra qualquer uma das partes.

Pena – detenção de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa.

Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre o membro do Ministério Público que, na forma do artigo 54, a, do Decreto-Lei nº 4.388, de 2002 – Estatuto de Roma, omitir dados, depoimentos e quaisquer meios de prova que possam beneficiar o réu e a defesa” (grifos nossos).

A sugestão da Ordem dos Advogados do Brasil tem o condão de inibir tais comportamentos disparitários dentro de uma ação penal, uma vez que obrigaria a colação da integralidade do material probatório, abarcando até mesmo o procedimento de celebração do acordo de colaboração premiada. Desta forma, não haveria ingratas surpresas à defesa ao final do processamento quando verificasse que um dos réus passou a ser instrumento de acusação – como ocorreu no caso tríplex com o então acusado Léo Pinheiro. Alinhado ao recente entendimento sobre o momento das alegações finais, pode significar um grande avanço na compreensão prática do direito à ampla defesa e ao contraditório dentro da sistemática procedimental da delação premiada.

Os críticos da possibilidade de o delatado apresentar suas alegações finais por último podem recorrer a uma suposta literalidade da lei, aventando que não há dispositivo legal que preveja especificamente essa situação, contudo, duas são as razões que invalidem este argumento. Primeiramente, é princípio processual que, se não há norma negativa específica, a hipótese pode se tornar real desde que esteja em consonância com o ordenamento constitucional – como já se viu que é o caso.

Em segundo lugar, ainda mais patente, é fato que cabe ao Supremo Tribunal Federal conciliar os instrumentos processuais com os preceitos da Constituição. Como aqui exposto, a legislação que regula a colaboração premiada foi promulgada mais de duas décadas após a atual sistemática constitucional, de modo que deve ser interpretada conforme a mesma, atualizando-a. Aliás, se recorrêssemos à estrita literalidade, caberia o questionamento: foi o mesmo Supremo Tribunal Federal que decidiu pela regularidade da execução prematura da pena em segundo grau de jurisdição, hipótese não prevista pela literalidade do artigo 283 do CPP[4], que regula as possibilidades de prisões no ordenamento jurídico pátrio. Logo, não parece crível assumir que a literalidade seria uma barreira no caso das alegações finais, ainda mais em situação na qual o entendimento guarda plena consonância constitucional.

Sobre a modulação dos efeitos da decisão para a aplicação erga omnes, é necessário observar o requisito instituído pelo artigo 27 da Lei 9.868/99, que exige maioria qualificada (dois terços) do quórum do tribunal para limitar os efeitos da decisão ou amoldar o início de sua eficácia – o que, no caso do Plenário do STF, exige a prolação de oito votos pela modulação. Esse ponto, inclusive, foi abordado no voto do Ministro Celso de Mello durante o julgamento do HC 166.373/PR que aqui se aduz. Conforme leciona Lenio Streck [5], “o direito ao decido processo legal (ampla defesa substantiva e não ficta) não depende e não pode depender de quem pedir. Ora, se um HC deve ser dado de ofício, uma garantia como a de falar por último não deve depender de um pedido”.

Contudo, em se tratando de norma constitucional, sequer seria necessário esse debate. Há de se lembrar, se a nulidade é absoluta, os efeitos de sua declaração são ex tunc. Neste caso, a nulidade sempre existiu, somente está sendo declarada, de modo que não há que se falar em limitação de sua eficácia. Assumir que somente agora, a partir da decisão, é que podemos ter nulidades por inobservância de princípios constitucionais como a ampla defesa e o contraditório é desconhecer que a Constituição já estava em vigor desde muito antes do início do processo, e que ele é quem deve se moldar aos preceitos fundantes do Estado brasileiro.

Adequar os novos procedimentos à ordem jurídico-constitucional vigente é função precípua do STF, e conferir aos réus o direito a contradizer as imputações que lhe são dirigidas – seja pelo titular da ação penal, seja por corréus delatores – é a expressão mais digna dos princípios fundamentais da ampla defesa e, em especial, do contraditório. Se compreendida ofensa a tais pilares fundadores do Estado Democrático, como está procedendo o Supremo Tribunal Federal, se impõe a anulação dos processos nos quais não tenha sido observado o direito de apresentação de alegações finais do delatado em prazo sucessivo ao do delator, reabrindo-se prazo para tal, a fim de que possa contradizê-lo de forma realmente efetiva, e não apenas simulada.


[1] Ref.: HC 166.373/PR.

[2] Ref.: HC 157.627/PR

[3] Art. 5º, LV, CRFB/88.

[4] Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

[5] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-28/streck-supremo-nao-restringir-garantia-falar-ultimo

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