O país assistiu perplexo à tragédia em um colégio de Suzano (SP), no qual ventos do norte importam atos terríveis como o massacre de Columbine. Já tivemos tragédias semelhantes, como na igreja de Campinas, em 2018, e há oito anos na escola de Realengo, no Rio. Pouco depois, notícias internacionais trouxeram o ataque a uma mesquita na Nova Zelândia e, agora, o ataque na cidade de Utrecht, na Holanda.
Há cinco anos os brasileiros assistem, com frequência quase semanal, aos carros da Polícia Federal em grandes operações: viaturas pretas, muitas vezes acompanhadas de um aparato de imediata transferência de presos de avião para Curitiba. Operações gigantes com homens trajados como militares, membros do Grupo de Pronta Intervenção (GPI), como os que fizeram a condução coercitiva de Lula ou levaram-no ao enterro do neto. Não foi mera coincidência o sr. Danilo Campetti portar um emblema da Swat de Miami, mas, sim, fruto da história de formação de nossas polícias pelos americanos.
Em 2016, seguindo a pauta internacional que já havíamos iniciado com a importação das leis de lavagem de dinheiro, organização criminosa, agentes infiltrados e delação premiada, finalmente tipificamos o terrorismo, previsto constitucionalmente no artigo 5º, inciso XLIII da Carta Magna.
A lei traz uma importante definição de competência em seu artigo 11: “Para todos os efeitos legais, considera-se que os crimes previstos nesta Lei são praticados contra o interesse da União, cabendo à Polícia Federal a investigação criminal, em sede de inquérito policial, e à Justiça Federal o seu processamento e julgamento, nos termos do inciso IV do art. 109 da Constituição Federal” (grifo nosso).
Essa definição de competência provocou críticas doutrinárias; algumas em temas específicos, como em relação à ausência de motivação política[1] dos ataques orquestrados pelo PCC em São Paulo, após manifestação do ministro Gilmar Mendes de que seriam atos terroristas[2]. O tema da competência chegou a ser apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça quanto à conexão, mantendo na Justiça Federal um segundo processo de uma operação denominada hashtag[3]. Sempre necessário o registro das críticas às prerrogativas dos advogados no caso[4].
O WikiLeaks[5] revelou a participação do ex-juiz Sergio Moro em um encontro desenvolvido pela embaixada americana para treinamento de juízes e promotores brasileiros, parte do Projeto Pontes. Tal “encontro” foi parte da estratégia de influência americana e, em 2009, como um “guarda-chuva” de um “novo conceito de treinamento”, com a presença de juízes federais de 26 estados da federação, 50 agentes da polícia federal, bem como 30 autoridades estaduais, entre promotores e juízes.
Tal treinamento, conforme relato na mensagem oficial vazada, “foi realizado na capital regional do Rio de Janeiro e financiada pelo Coordenador do Estado para Contraterrorismo [orig. State’s Coordinator for Counter Terrorism (S/CT)]”. O documento destaca “que [os brasileiros] historicamente sempre evitaram qualquer treinamento que tomasse por objeto o terrorismo, preferindo terminologia mais genérica como crimes transnacionais”. No documento constam referências às palavras da “Vice-coordenadora para Contraterrorismo na S/CT, Shari Villarosa”, que “está elogiando juízes e policiais brasileiros, que militam na direção oposta à do governo eleito e seu Ministério de Relações Exteriores”. O ex-juiz federal Sergio Moro esteva presente e falou sobre lavagem de ilícitos.
A metodologia indiciária[6] na pesquisa sociológica torna “elementar meu caro Watson” que a influência americana se alastrou em nossas forças policiais e judiciarias e, através, delas possibilitou a “lava jato”. Esse não é, contudo, o foco de preocupação deste artigo, mas, sim, a omissão da Polícia Federal e das autoridades federais diante de crimes que são claramente atos terroristas em nossa pátria.
O presidente Bolsonaro afirmou em diversas ocasiões que o viés ideológico deveria ser abandonado[7]. Nesse mesmo sentido, seu nomeado para as relações exteriores, Ernesto Araújo, também defendeu[8] que “uma política externa brasileira, sem ideologias, seja também um propósito no mundo liderado por essas ideologias”[9].
O termo terrorismo é carregado de conteúdo ideológico. Foi amplamente empregado para classificar grupos dissidentes pelo governo Floriano Peixoto em 1893[10], bem como pela ditadura militar nos decretos de segurança nacional[11], durante a Guerra Fria. Essa elasticidade jurídica e ideológica viabilizou manobras como a relatada no documento da embaixada americana: “para encarcerarem suspeito de terrorismo é acusar o suspeito pela prática de algum outro crime que lhe será atribuído, como tráfico de drogas ou lavagem de dinheiro”.
A busca de uma objetividade legal no termo é fundamental. A Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/83) prevê uma série de atos terroristas, como “devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas” ou “Praticar sabotagem contra instalações militares, meios de comunicações, meios e vias de transporte, estaleiros, portos, aeroportos, fábricas, usinas, barragem, depósitos e outras instalações congêneres”.
No HC 73.451-1[12], em que era impetrante Evaristo de Moraes Filho, o Supremo Tribunal Federal definiu que a aplicação da Lei de Segurança Nacional exige a combinação dos artigos 1º e 2º da Lei 7.170/82, isto é, os elementos “perigo de lesão à soberania nacional” e “motivação e os objetivos do agente”.
Ainda que os ataques ao colégio em Suzano e à igreja de Campinas careçam dos elementos para a aplicação da Lei de Segurança Nacional, não é possível dispensar de pronto a Lei Antiterrorismo, que define os atos de “usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa”; “sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento”; e finalmente “atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa”.
A lei limita a aplicação de acordo com uma motivação e finalidade: “O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”.
Evidente que a lei possui imperfeições, objeto de críticas e censuras que excedem o escopo da presente análise. Traz em seu texto uma vacina contra a tentativa de criminalização por terrorismo dos movimentos sociais, a exemplo dos sem-terra: “O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei”.
Ocorre que não é possível, à primeira vista, desclassificar ou tratar de incompetência, ou afirmar falta de atribuição da Polícia Federal para investigar os crimes de Suzano e de Campinas. Da mesma maneira, também não é possível dizer que a morte de Marielle Franco não seja terrorismo. Todos parecem direcionados a “provocar terror social generalizado” incutindo medo na população. É cediço que as ações de milícia chacinando a população causam medo generalizado direcionado às classes sociais em “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”.
A omissão da Polícia Federal em investigar esses atos — não somente os praticados no colégio e na igreja, mas os fóruns de internet nos quais participavam seus autores e motivadores; bem como as milícias e os atentados contra defensores de direitos humanos (como Marielle), negros e pobres — se pauta em um viés ideológico de direcionar o termo terrorismo aos movimentos de esquerda.
A omissão do ex-juiz e hoje ministro de Justiça, Sergio Moro, na determinação de cumprimento da legislação antiterrorismo revela uma visão distorcida e ideológica do termo terrorismo. Se persistente, tal omissão pode transbordar em prevaricação.
O projeto “anticrime” do governo federal resvala no que argumentou o ministro Gilmar Mendes, no julgamento do Inq 4.435. Para o ministro, em uma discussão sobre competência, o que se trava é “uma disputa de poder (…) constranger, amedrontar as pessoas”. Além de partes sofríveis com tentativas de diminuição de defesas, recursos e prerrogativas de advogados, no que diz respeito a “XVIII – Medidas para aprimoramento a investigação de crimes altera o Banco Nacional de Perfil Genético e cria o Banco Nacional de Perfis Balísticos o Banco Nacional Multimétrico e de Impressões Digitais”, vinculando-os ao Ministério da Justiça, como se somado ao Cofen percorresse uma fantasia de uma grande Gestapo ou KGB.
É necessário que todos esses dados sejam alocados em um centro nacional de polícia forense[13], dentro da Polícia Federal, e não do Ministério da Justiça. Nesse mesmo sentido, não basta que sejam cadastrados somente os dados dos “condenados por crimes dolosos, mesmo sem trânsito em julgado”, dos “registros biométricos, de impressões digitais, íris, face e voz dos presos provisórios ou definitivos quando não tiverem sido extraídos por ocasião da identificação criminal”, bem como os “registros de elementos de munição deflagrados por armas de fogo relacionados a crimes”. O cadastramento deve ser de todos que ingressarem ou estiverem no território nacional, ilimitado a todas as armas registradas e apreendidas, a fim de possibilitar que qualquer arma envolvida em crime ou material genético sejam identificados, diminuindo a cifra oculta.
A conclusão é que o ministro da Justiça e a Polícia Federal estão sendo omissos em abrir investigações quanto aos verdadeiros atos de terrorismo que estamos testemunhando, deixando de aplicar a lei, investigar e, essencialmente, prevenir futuros atos. O Ministério Público Federal vai agir?
O projeto a ser aprovado pelo Congresso Nacional precisa se direcionar a dar solução real às estruturas necessárias para a investigação de homicídio e terrorismo, em um país que soluciona tão somente 8% dos crimes contra a vida e no qual apenas se concluiu parte da investigação do assassinato de Marielle em razão da tecnologia em uma polícia sucateada. Essa tarefa deve ser empreendida não como parte de um projeto de poder e empoderamento do Ministério da Justiça, mas através de um órgão que possa auxiliar todas as investigações de homicídio. As polícias estaduais devem ser capazes de cruzar dados entre diversos estados da federação com o auxílio da Polícia Federal, que, por sua vez, precisa identificar quais homicídios podem ser caracterizados como atos de terrorismo.
[2] https://www.brasil247.com/pt/247/sp247/85315/Gilmar-aponta-atos-de-terrorismo-em-So-Paulo-Gilmar-aponta-atos-terrorismo-So-Paulo.htm
[3] RHC 98.349/RS, DO 26/10/2018, Min. Laurita Vaz, 6a Tu, impetrante Defensoria Pública da União. https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1751540&num_registro=201801183630&data=20181026&formato=PDF
[4] https://www.conjur.com.br/2017-mai-04/presos-operacao-hashtag-sao-condenados-lei-terrorismo
[5] https://wikileaks.org/plusd/cables/09BRASILIA1282_a.html, tradução em http://www.patrialatina.com.br/da-vergonha-mas-e-preciso-ler-o-telegrama-moro-wikileaks
[6] Ginsburg, Carlo. Sinais: RAÍZES DE UM PARADIGMA INDICIÁRIO”. IN: GINSBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 143-179. Ver Gisálio Cerqueira Filho.
[7] https://istoe.com.br/bolsonaro-devemos-buscar-parcerias-com-mundo-todo-sem-vies-ideologico; https://amazonasatual.com.br/sem-vies-ideologico-e-sem-vies-ideologico-explica-bolsonaro
[8] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/01/23/interna_politica,732424/ernesto-araujo-defende-em-almoco-libertacao-das-ideologias.shtml
[9] O texto não debate a ilusão do discurso “sem ideologia” e suas perseguições ideológicas https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/385762/Ernesto-Arajo-inicia-perseguio-ideolgica-no-Itamaraty.htm; https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/16/opinion/1547664512_125565.html
[10] NEDER, Gizlene, Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1994. pag 66.
[11] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lei de Segurança Nacional – Uma Experiência Antidemocrática. Sérgio Antônio Fabris Editor : Porto Alegre, 1980 Terrorismo e Criminalidade Política. Forense : Rio de Janeiro, 1981.art. 28 da Lei 898/69.
Fernandes, Fernando Augusto , Voz Humana: A defesa Perante os Tribuais da República, Ed. Revan 2004; Poder e Saber Campo Jurídico e Ideologia, Ed. Revan 2012.
“Art. 28 – Devastar, saquear, assaltar, roubar, seqüestrar, incendiar, depredar, ou praticar atentado pessoal, ato de massacre, sabotagem ou terrorismo. Pena: reclusão, de 12 a 30 anos. Parágrafo único – Se da prática do ato, resultar morte. Pena: prisão perpétua, em grau mínimo, e morte, em grau máximo.”
[12] http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=74514. Fernandes, Fernando Augusto , Voz Humana: A defesa Perante os Tribuais da República, Ed. Revan 2004.
[13] Fernando Augusto Fernandes; “Cadastro de DNA não basta sem um projeto de identificação de armas e projéteis”, ConJur 19/9/2018.https://www.conjur.com.br/2018-set-19/fernando-fernandes-cadastrar-dna-criminosos-nao-basta