A morte e a punição de seu desejo

Por Guilherme Lobo Marchioni e Pedro Augusto Simões da Conceição

Aristóteles dizia que a tragédia era a “mímese não de homens, mas das ações e da vida”.
Não parece por acaso, portanto, que narrar a história de um suicídio possa ser facilmente vista como uma tragédia, tanto no sentido vulgar quanto no aristotélico: trata-se da mimese absoluta da vida em uma reviravolta única que implica seu fim.
Trata-se, também, da última ação de homem, a qual impede todas as demais, e impede também o próprio homem.
A carga emocional e os paradoxos morais que emergem de qualquer história de suicídio já parecem sinalizar o pesar que paira em torno do tema. Esse pesar, contudo, não é capaz de afastar o direito penal – fonte de ainda mais pesar – de estender seus braços neste assunto que deveria ser restrito, no âmbito político e legal, à saúde pública.
O acompanhamento sanitário não apenas existe como tem se mostrado cada vez mais relevante, sendo que a Organização Mundial da Saúde (“OMS”) divulgou, em 2016, que morrem mais jovens por meio de suicídio que por causa de AIDS.
Há séculos, porém, pensadores e políticos têm falhado na missão de afastar de vez o direito penal de regular não apenas a morte desejada como também todos os aspectos que a envolvem, sendo que apesar de não existir previsão de punição para o suicida, todos os aspectos que orbitam em volta do suicídio são alvo da extravagante tutela penal.
É justamente porque a realidade da legislação brasileira não respeita o princípio da subsidiariedade do direito penal – o qual deveria ser silente em uma matéria que, por si só, já traz dor e perda, sendo que a pena somente soma mais dor nessa equação – que cabe à dogmática organizar as categorias da lei penal para evitar o agigantamento da dor e o excesso punitivo.
Categorias dogmáticas do suicídio
O suicídio resulta, direta ou indiretamente, de uma conduta positiva ou negativa, realizada pela própria vítima, a qual sabe produzir um resultado de privar sua própria vida. O traço marcante dessa renúncia suprema, independentemente das formas pela qual se realiza, “o ato que o consagra ser realizado com conhecimento de causa; é a vítima, no momento de agir, saber o que resultará de sua conduta, seja qual for a razão que a levou a assim se conduzir”.
Segundo Durkheim, um dos primeiros a estudar extensamente o suicídio como fenômeno social em sua célebre obra O suicídio de 1897, as causas do autoextermínio têm, também, fundamento social e não apenas individual. O autor descreveu três tipos de suicídio: o egoísta, em que o indivíduo se afasta dos seres humanos como quem que se separar da raça humana; o anômico, referente a um desajuste e antagonismo entre as regras sociais os valores do suicida, o qual crê que a estrutura da sociedade desmorona-se em torno de si; e, por fim, o suicídio altruísta, pelo qual o suicida abdica da vida por causa nobre ou lealdade a ideal.
O impulso suicida não é incomum ao ser humano, sendo os motivos que levam os indivíduos a optarem pelo suicídio objeto de estudo da psicologia. O direito penal, um tanto quanto desconectado da diversidade de pensamentos sobre a psyché, se prende à visão segundo a qual os motivos de um suicídio podem ser divididos em quatro grupos: escapismo, em que o suicida pretende se subtrair de situações consideradas insuportáveis ao sentir-se sem qualquer esperança; agressão, quando motivado pela provocação de remorso em outros ou por sentimento de vingança; auto-sacrifício, pelo qual o suicida age em nome de causa nobre; e lúdico, em que o suicídio ocorre em contexto de jogo ou teste com risco de morte.
Durkheim discorre, também, sobre a imoralidade do suicídio, a qual estaria além das motivações do suicida e se coloca como uma valoração social desse ato, asseverando que é necessário que o suicídio seja considerado imoral, pois ele nega, em princípio, a comunhão humana. Para o sociólogo, “diz-se que o homem que se mata só faz mal a si próprio e que a sociedade não tem de se imiscuir nesse assunto, pois, segundo o velho axioma Volenti non fit injuria. É um erro. A sociedade é lesada porque o sentimento sobre o qual assentam atualmente as máximas morais mais respeitadas, e que funcionam quase como o único elo de ligação entre os membros, foi ofendido e poderia perturbar-se se essa ofensa se produzisse livremente”.
Com efeito, as considerações sobre a imoralidade do suicídio contribuem para compreender a razão pela qual o direito penal é chamado para tutelar indiretamente a ocorrência do fato, ainda que lhe reste tão somente reprimir a conduta de quem contribuiu ao evento suicida.
Embora o presente estudo não tenha como objetivo aprofundar a matéria do ponto de vista da sociologia e da psicologia – diferentemente dos demais textos desta coletânea – as classificações básicas dos tipos e causas do suicídio são importantes porque a indução e a instigação ao suicídio, elementos da descrição do crime de participação em suicídio, se utilizam da dinâmica dos motivos elencada acima para construir os respectivos núcleos típicos.
No campo jurídico, o significado da palavra suicídio não apresenta diferenças significativas quando comparado ao campo moral. Suicidar-se tem o sentido de matar-se, de auto executar-se, da eliminação da vida pelo próprio suicida. Importante ressaltar que apenas se configura o suicídio com a fatídica superveniência do resultado morte produzido pelo próprio suicida.
Nas legislações mais modernas, o suicídio e a tentativa de suicídio não são considerados condutas delitivas, embora a participação em atos dessa natureza seja punível segundo grande parte das legislações penais, inclusive na legislação brasileira.
Na atualidade da lei penal brasileira, por exemplo, o ato consumado do suicida não é punido pelo direito criminal. A razão da não incriminação é evidente, por motivos utilitaristas. Do ponto de vista repressivo não se pode infligir pena contra um cadáver; do ponto de vista preventivo, seria inútil a ameaça da pena contra quem já não sente, sequer, o instintivo medo da morte.
A simples tentativa de suicídio também não é punida, inclusive por razões de política criminal, afinal tal punição apenas importaria aumentar no indivíduo seu desgosto pela vida. Frisa-se que não se poderia sequer aplicar pena que atinja apenas os herdeiros inocentes do suicida, haja vista que a Constituição estabeleceu o caráter pessoal da pena conforme artigo 5º, inciso LXV, ao dispor que nenhuma pena passará da pessoa do condenado.
No entanto, a ausência de criminalização do suicídio não se traduz como conferência de licitude ao comportamento. O fato de não ser considerado crime não significa que o suicídio seja indiferente para o direito, não sendo punível pela absoluta inutilidade e injustiça de pena, mesmo que na forma tentada. Na verdade, o suicídio é ato ilícito para o qual se convencionou não incidir o direito penal para o principal agente.
Interessante notar que a lei penal brasileira indica que o suicídio é fato ilícito ao não condenar como constrangimento ilegal a coação exercida para impedir que se produza o resultado desejado por um suicida. Nesse sentido, o artigo 146 do Código Penal brasileiro dispõe que constranger alguém a não fazer o que a lei permite ou a fazer o que ela não manda é infração criminal, excetuando deste tipo penal quem comete o fato típico para impedir suicídio. Ao constranger alguém a não fazer o que a lei não permite, no caso, suicidar-se, o agente que impede o suicídio mesmo mediante violência ou grave ameaça não comete o crime do artigo 146, simplesmente porque o suicídio é considerado um ilícito.
Bem jurídico protegido
O bem jurídico tutelado pelo quadro geral da ilicitude do suicídio é a vida, colocando-a sob uma perspectiva paternalista, a qual parte do pressuposto de que quem se suicida enfrenta situação pela qual resta comprometida sua concepção de sobrevivência, traço elementar da humanidade, punindo-se o terceiro que, “aproveitando-se” dessa fraqueza, incentiva a prática desse terrível ato.
Pode-se traçar, também, um paralelo com os crimes que imputam a um agente o beneficiar-se de uma situação de vulnerabilidade ou de inimputabilidade de outrem,
O delito é diverso do homicídio, pois na participação em suicídio o agente não suprime a vida de outra pessoa, mas promove, pelas formas descritas no tipo penal, a autodestruição da vítima. A participação em suicídio foi desvinculada do suicídio em si, para contemplar como crime o ato de quem induz, instiga o auxilia o suicida justamente com o fim de promover a proteção da vida humana – bem jurídico de incontestável magnitude e que justifica a tipificação penal desse delito.
Participação em suicídio
Atendendo ao valor excepcional da vida, pune-se rigorosamente a participação no comportamento suicida de outra pessoa. A criminalização da participação em suicídio resolve a necessidade de proteger a vida, enquanto bem jurídico agredido, sem que seja sancionado o suicida, mas se voltando contra quem tenha de algum modo contribuído com a decisão do suicida ou com a prática do ato.
No Brasil, o Código Criminal do Império já tipificava o auxílio ao suicídio (artigo 196) e o Código Penal de 1890 passou a prever também como criminosa, além da conduta de auxiliar, a de induzir (artigo 299). A Consolidação das Leis Penais de 1932 manteve a punição da indução e do auxílio (artigo 299), sendo que a ação de instigar foi inclusa pelo Código Penal de 1940.
O crime de quem participa ativamente no suicídio de outrem é crime comum e pode ser praticado por qualquer pessoa. Igualmente, nenhuma restrição há quanto a quem pode ser vítima do delito, desde que tenha discernimento para se autodeterminar – caso contrário, ou seja, caso a vítima seja absolutamente vulnerável, está-se diante de um homicídio. Requer-se, todavia, que a prática criminosa seja endereçada a pessoa determinada, ou seja, que a vítima possa ser identificada e constatada como influenciada ou auxiliada pelo agente. Assim, o delito de participação em suicídio não inclui a conduta de quem induz genericamente a prática do suicídio (a “apologia” ao suicídio, por exemplo, não é crime).
 Exige-se, para configurar o crime de participação em suicídio, que a vítima seja capaz de praticar o atentando contra a própria com vontade livre, sendo que a contribuição do participe seja distante de atos ativos.
Assim, o delito de participação em suicídio depende de a vítima entender a natureza do ato de tirar a própria vida. Ademais, se o suicida agiu por erro quanto à ação que pretendia ou é coagido a tanto, o crime igualmente será de homicídio.
O concurso de pessoas no crime em comento é plenamente possível, tanto em coautoria como em participação (no sentido de participar dos atos de instigação, induzimento ou auxílio a suicídio). O concurso se verifica, no caso da coautoria, quando duas pessoas prestam auxílio para que outra se suicide; de outro lado um agente é participe do autor quando aquele, por exemplo, induz o autor do delito a induzir a vítima a suicidar-se. Ressalta-se que para a legislação brasileira, os agentes, sejam eles coautor ou participe, respondem igualmente na medida da sanção e adequação ao tipo penal.
Participação Moral: Induzimento e Instigação
A punição se dá para o induzimento, a instigação ou o auxílio ao suicídio, nos termos do artigo 122 da lei penal brasileira.
As condutas no tipo penal dizem respeito a diversas situações em que o agente participou de modo determinante para a prática do suicídio.
O induzimento de alguém ao suicídio consiste em inspirar, incutir ou sugerir o desejo de tirar a própria vida na mente de alguém. Induzir pessoa ao suicídio é a forma mais sutil de cometimento do crime, pois nela as ações do suicida se originaram das sugestões do agente e sem que elas tivessem existido o suicida não teria atentado contra a própria vida.
Trata-se de prática sutil, porque a consumação ocorre com a influência na vontade do suicida, o induzimento deve ter sido cometido pelo agente com dolo sendo que a inspiração de suicídio em pessoa específica constitui elemento do tipo subjetivo.
Vale ressaltar que o agente que jocosamente sugere a prática ao suicida não pode ser punido, pois não há dolo na conduta jocosa.
Assim, é tão somente a sugestão do agente que tenha sido realizada com a finalidade de incutir a ideia de suicídio na vítima que perfaz o delito.
A instigação, por sua vez, significa a estimular ou incitar alguém ao suicídio. Nessa forma de participação a ideia suicida já existe e o agente atua encorajando a vítima. A estimulação do instigador deve corresponder a um elemento decisivo na concretização do suicídio.
É indiferente o meio utilizado para o induzimento ou a instigação, desde que persuadam ou animem o suicida a atentar contra a própria vida. Para que transcorra a participação moral “é necessária uma influência na vontade da vítima, abrangendo os aspectos volitivos. Afastam-se, assim, o erro e a coação: aquela suprime a consciência e esta a liberdade ”.
Enfim, o induzimento e a instigação são espécies de participação moral em que o agente age sobre a vontade da vítima, quer provocando para que surja nela o intento de cometer o suicídio, quer estimulando a ideia já existente, mas, de qualquer modo, influindo moralmente para a prática do ato.
Participação material: auxílio
Na última forma de participação, o agente presta auxílio ao suicídio de outrem. Trata-se da forma mais concreta e ativa de agir, pois essa colaboração se realiza pelo fornecimento de meios necessários para que a vítima pratique o suicídio ou a instrua em técnicas e procedimentos para alcançar com sucesso a interrupção de sua vida.
O auxílio deve dizer respeito tão somente a um apoio secundário. O agente não pode tomar parte ativa na ação de tirar a vida, caso o faça responde por homicídio. No exemplo da doutrina brasileira o agente que fornece a arma utilizada pelo suicida comete auxílio ao suicídio, enquanto aquele que aperta o gatilho da arma já apontada para a cabeça da vítima pelo próprio suicida comete homicídio, eis que seu comportamento foi ativo, inclusive em uma relação direta de causalidade que gera o resultado morte, o que pode compor o tipo objetivo do homicídio.
Por outro lado, o auxílio, para ser caracterizado, deve ser efetivo e ter contribuído ao resultado para que o agente responda pelo crime. Nesse sentido, “se a vítima, por exemplo, não usou o veneno que lhe foi entregue, matando-se por outro meio, não se configura o delito.”.
O auxílio pode ocorrer desde a fase da preparação até a fase executória do crime. Assim, pode ocorrer antes ou durante o suicídio, desde que não haja intervenção nos atos executórios, caso em que o agente comete homicídio em função da contribuição direta ao evento.
Questão controvertida na aplicação da legislação penal em comento é a distinção entre o auxílio a suicídio e o homicídio praticado como eutanásia. Se distinguindo pela observância quanto aos atos executório, se são realizados pela própria vítima, perfaz-se o delito de participação em suicídio. Porém, se o agente realiza atos de execução, mesmo que com o consentimento do sujeito passivo, resta caracterizado o delito de homicídio, hipótese em que pode incidir causa de diminuição de pena em razão de relevante valor moral (consoante estabelecido no art. 121, § 1°, do diploma penal brasileiro).
Admite-se, ainda, o auxílio a suicídio por omissão em casos em que o omitente ocupa posição de garante. Aquele que conscientemente omite a ação a que estava obrigado em razão da posição que ocupa ou circunstância perante a vítima também contribuiu para o advento do suicídio, eis que não o impediu acaso possuísse capacidade concreta para tanto. Entretanto, frisa-se que a posição de garante “não existe ou desaparece a partir do momento em que o suicida recusa a ajuda para impedir o ato suicida ou manifesta sua vontade nesse sentido”, de modo que nesse caso o delito não se configura.
Apesar da descrição no tipo penal apresentar condutas diversas no cometimento do delito, é possível que o agente pratique mais de uma, ou mesmo as três formas de participação, fato que não implica na cumulação de delitos subsistindo a comissão de crime único.
A vontade do agente criminoso
Para a configuração do crime de participação em suicídio é necessária a presença do dolo, elemento subjetivo do tipo penal que consiste na vontade livre e consciente de provocar a morte da vítima por meio do suicídio ou, no mínimo, assumir o risco de levá-la a atentar contra sua vida.
Nada impede que o dolo orientador da conduta configure-se em sua forma eventual, ou seja, o agente não quer diretamente a ocorrência do suicídio, mas aceita como possível ou provável o resultado e mesmo assim assume o risco. Alguns exemplos colhidos na doutrina brasileira podem aclarar essa espécie de vontade do agente, que está presente no pai que expulsa filha de casa dizendo-a desonrada, mesmo havendo fortes razões para acreditar que se suicidará; o marido que investe moralmente contra a esposa e conhecendo a intenção desta de vir a suicidar-se, reitera as agressões.
Não há previsão da forma culposa dessa infração penal. Ante a ausência de previsão da modalidade culposa da participação em suicídio, a provocação com culpa como elemento subjetivo do agente constitui conduta atípica e não pode ser apenada.
Resultado naturalístico: morte e lesões corporais de natureza grave
O crime de participação em suicídio consuma-se no momento em que a vítima efetivamente se suicida. Conforme pensamento majoritário da doutrina brasileira, o delito em tela só é punível quando sobrevém o resultado morte ou lesão corporal grave. Estas operam como condição objetiva do crime de participação em suicídio.
Assim, só após a vítima praticar atos com a finalidade de tirar a própria vida e advindo o evento morte ou lesão corporal grave poderá ser aplicada pena ao agente. A punibilidade dependerá de uma condição objetiva de punibilidade, qual seja, a realização do suicídio ou à sua realização sem sucesso da qual decorra lesão corporal de natureza grave como condição à imposição da respectiva sanção.
É importante mencionar uma segunda corrente acerca da consumação do delito, sintetizada por Bitencourt, para quem a morte e as lesões corporais graves não podem ser consideradas como condições objetivas de punibilidade, pois tais resultados integram a descrição legal do crime de participação em suicídio e, por conseguinte, devem ser abrangidas pelo tipo. A morte e as lesões graves no delito comentado representam o objetivo e o propósito a que se direciona o intento do agente, tratando-se, portanto, do resultado naturalístico ou tipológico do crime. Nesse sentido, o autor referido aponta que a infração penal em exame corresponde a um crime material e como tal o resultado integra o próprio tipo penal, ou seja, para a sua consumação é indispensável que o resultado ocorra. “Por isso, no crime de participação em suicídio, a não ocorrência da morte ou da lesão corporal grave torna a conduta atípica e não constitui simplesmente causa impeditiva da punibilidade”.
Nessa mesma linha orienta-se Damásio de Jesus, para quem “a morte e as lesões corporais de natureza grave devem estar no âmbito do dolo do terceiro participante. Logo, constituem o tipo e não se revestem dos caracteres das condições objetivas de punibilidade ”.
Sanção
A sanção estabelecida para o crime foi elaborada de forma distinta, a depender do resultado do comportamento da vítima. Acaso a vítima induzida, instigada ou auxiliada efetivamente cometa o suicídio, o crime resultará na pena quantificada entre dois a seis anos de prisão em reclusão. Enquanto que, se do comportamento da vítima adveio tentativa de suicídio que lhe causou lesão corporal de natureza grave, a pena de prisão terá como balizas o mínimo de um ano e o máximo de três anos.
No caso de o agente induzir, instigar ou auxiliar a vítima a matar-se, mas da prática transcorra apenas uma lesão corporal leve, não há delito.
Tentativa
A forma tentada do crime em análise escapa à regra geral estabelecida pela legislação penal, razão pela qual sua justificativa e configuração é um tanto mais complexa, se comparada aos demais crimes, o que não quer dizer que não é possível.
A definição e a punibilidade da tentativa estão sistematizadas no Código Penal de modo que a tentativa é punida com a mesma pena do crime consumado, sofrendo redução de um a dois terços (teor do artigo 14, II, da lei penal). E ao dispor sobre a regra da tentativa, o Código Penal dispõe que a legislação pode ressalvar formas diferenciadas de punir a tentativa, sem que essas formas especiais deixem de corresponder à condição de crime tentado.
Nesse sentido, o crime da participação em suicídio traz uma forma especial de punição da tentativa, que decorre do próprio texto do tipo penal, pois a descrição da pena estabelece que esta será de “1 (um) a 3 (três) anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave”. Ora, se o preceito secundário do tipo penal aponta possível a ocorrência de tentativa, então a possibilidade desta é inquestionável.
De fato, a cominação prevista para a tentativa de suicídio, quando sobrevier lesão corporal grave, configura uma forma especial de crime tentado. O fato de que a forma tentada requer a ocorrência de lesão grave não lhe retira a condição de crime tentado, tampouco a regra especial de que a punição se dá em balizas pré-determinadas pelo tipo, ao invés da aplicação de diminuição de pena.
Teoricamente essa previsão é importante, pois reforça que a forma tentada dos crimes de auxílio (lato sensu) ao suicídio refletem uma estrutura de “tentativa” do próprio suicídio, o qual é eivado de valor jurídico de ilícito no nosso ordenamento.
Do mesmo modo, a atipicidade da participação em suicídio no caso de a vítima ter sofrido lesões leves ou não produzir qualquer resultado relevante representa mais um elemento da especificação da forma tentada nesse delito. Isso porque a punição da tentativa está condicionada à exigência exposta na descrição da pena do tipo penal, e não há sanção sem que a exigência tenha sido satisfeita, ou seja, para que a tentativa perfeita seja punível é necessário que se produza, pelo menos, lesão de natureza grave.
Causas de aumento da pena
O tipo penal de participação no suicídio estabelece duas causas especiais de aumento de pena. A ocorrência de qualquer uma das hipóteses descritas faz com que a pena ao criminoso seja duplicada.
A primeira hipótese refere-se ao cometimento do induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio por motivo egoístico do agente. Optou o legislador brasileiro por conferir maior reprovabilidade na conduta criminosa em razão de elemento pessoal na vontade do agente, que demonstra desprezo pela vida alheia.
Assim, para incidir o aumento deve restar constatada a finalidade do criminoso de obter uma vantagem pessoal ou a satisfação de interesse próprio, seja ele material, como o recebimento de herança ou eliminação de concorrente, ou material, como a satisfação de sentimento de vingança.
A hipótese de aumento de pena seguinte corresponde à participação em suicídio vitimando menor de idade ou contra quem tenha a capacidade de resistência diminuída. Trata-se de aumento de pena baseado em circunstâncias relativas à vítima, a fim de incrementar o desvalor da ação quando for maior a propensão do sujeito passivo às sugestões do agente.
No aumento de pena em razão da vítima menor ou com resistência diminuída importa a qualidade da vítima, correspondendo a situação em que essa não esteja apta a resistir adequadamente à persuasão do agente, tornando maior a probabilidade de produção do resultado almejado pelo criminoso.
A resistência diminuída pode se configurar por fases críticas de doenças, tanto físicas quanto mentais, abalos psicológicos e quadros depressivos, ingestão de álcool ou sustâncias alteradoras de consciência, entre outras, desde que a pessoa experimente menor condição de resistência à ideia do suicídio em função de circunstâncias vivenciadas.
Quanto à segunda agravante especial, deve-se entender que o menor a que se refere o texto legal é aquele que já possui capacidade de discernir um ato suicida, pois, do contrário o agente estaria cometendo o crime de homicídio. Essa interpretação é confirmada pela última parte do inciso, que fala em pessoa que tem diminuída a capacidade de resistência, ou seja, de resistência moral.
Em relação à idade da vítima menor, entende-se corresponder a pessoa entre 14 e 18 anos, porque o menor de 14 anos, na sistemática penal brasileira, não tem capacidade para se auto determinar completamente e, portanto, não é considerada capaz de decidir sobre eliminar a própria vida. A respeito, explica Hungria que o infante não tem capacidade alguma de resistência moral, equiparando-os aos loucos, os sonâmbulos e adoentados.  Desse modo o agente que induz, instiga ou auxilia o suicídio de pessoa menor de 14 anos comete homicídio. Enquanto que o participe de suicídio de pessoa entre 14 e 18 anos responderá pelo delito comentado com a pena em dobro.
Pacto de morte ou suicídio a dois
O suicídio a dois corresponde ao pacto de morte feito entre duas pessoas que resolvem conjuntamente promover atos com o objetivo de extirpar a própria vida.
De acordo com a doutrina especializada, resolvem-se da seguinte forma os casos em que há sobrevivência de uma delas ou de ambas: se o sobrevivente praticou atos de execução da morte do outro, responderá pelo crime de homicídio. Se apenas auxiliou ou instigou, responderá pelo crime de participação em suicídio. Se ambos praticaram atos de execução, um em relação ao outro, e ambos sobrevivem, responderão os dois por tentativa de homicídio. Se se auxiliarem mutuamente e ambos sobreviverem, responderão pelo crime ora em comento, desde que tenha resultado lesões graves, caso contrário não há crime. Se um praticou atos de execução da morte de ambos, tendo sido por sua vez instigado ao suicídio, e se nenhum vier a morrer, o primeiro responderá por tentativa de homicídio e o segundo pelo crime de participação em suicídio, caso o executor tenha sofrido, em consequência da tentativa, lesões graves.
Mais que o famoso exemplo dos dois nadadores que lutam pelo mesmo pedaço de uma tábua do navio naufragado para sobreviver, essas elucubrações ignoram absolutamente o caos psicológico de uma realidade que pode ocorrer sobretudo entre adolescentes e jovens e já vem carregada com uma carga emocional absurda, onde certamente a atuação penal sobra.
Cabe aqui lembrar a pratica conhecida como “roleta russa”, mais famoso exemplo de suicídio motivado por impulso lúdico. Trata-se de um jogo de risco mortal desenvolvido para demonstração de coragem e desapego à vida por parte dos participantes. Coloca-se um cartucho no tambor de um revolver, que é girado, de modo que não se posa saber se o próximo disparo ocorrerá ou não. A cada lance um dos participantes aciona o gatilho com a arma voltada para a própria cabeça. Não havendo o disparo, a arma é repassada para o próximo jogador, que se arrisca da mesma forma. Havendo morte ou lesão grave, os sobreviventes respondem pelo crime de participação em suicídio. Havendo fraude ou desonestidade no famigerado jogo, de modo que um jogar seja atingido conforme planejamento do agente, o crime será de homicídio.
Ação Penal e Processo Judicial
A ação penal para apreciação de fatos correspondentes à participação em suicídio é de competência do Ministério Público e não está condicionada a qualquer manifestação de vontade por parte da vítima ou qualquer outra pessoa. Caberá suspensão condicional do processo nos casos correspondentes à tentativa de suicídio resultante em lesão corporal de natureza grave, eis que a quantidade de pena em abstrato delimitada para a hipótese se enquadra na condição fixada pela Lei dos Juizados especiais, nesse caso o acusado deixará de responder ao processo e, aceitando a proposta de suspensão, se submete a período de prova em que deve satisfazer condições como a reparação do dano e a proibição de frequentar lugares entre outras.
A competência para processo e julgamento desse delito é do Tribunal do Júri, por se tratar de crime doloso contra a vida, consoante estabelecido pelo artigo 5°, inc. XXXVIII, d, da Constituição Federal.
Percebe-se, aqui também, um segundo momento traumático para a vítima a qual sequer possui a possibilidade de se manifestar sobre a procedibilidade, tendo em vista que a internalização da vontade da vítima pelo órgão estatal é ato que mutila, novamente, a vítima que não desejaria transferir seu conflito psicológico para a esfera do processo.
Esperamos, contudo, que o panorama dos aspectos dogmáticos dos crimes aqui elaborados possam, ao menos, servir para diminuir a dor das muitas vítimas envolvidas.
Aristóteles. Poética. Edição bilíngue. São Paulo: 34, 2015, p. 80.
Dados disponíveis em: http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs398/en/ acessado em 12 de agosto de 2016.
Já dizia Beccaria: “Il suicio è um delito che sembra non poter ammettere uma pena propriamente detta, poiché ella non può cadere che o su gl’innocenti, o su di um corpo freddo ed insensibile”. In: Beccaria, Cesare. Dei delitti e dele pene. Einaudi: Milano, 1973, p. 87.
DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Martin Claret. 2005, p. 17
FILLOUX, Jean-Claude. Émile Durkheim. Trad: Celso do Prado Ferraz de Carvalho. Recife: Massangana, 2010, p. 142.
Cf. DAVIDOFF, Linda. Introdução à Psicologia. São Paulo: Makron, 2000.
DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Martin Claret. 2005, p. 369-370
Guilherme Nucci bem sintetiza a questão na seguinte frase: “O suicídio não é penalmente punido, quando consumado, por óbvio motivo: a morte tudo resolve” In: NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 13ª ed. São Paulo: RT, 2013.
A respeito, José Afonso da Silva: “vale dizer, a pena não passará da pessoa do delinquente, no sentido de que não atingirá a ninguém de sua família, nem a terceiro, garantia, pois, de que ninguém pode sofrer sanção por fato alheio, salvo a possibilidade de extensão aos sucessores e contra eles executadas, nos termos da lei, da obrigação de reparar o dano e da decretação de perdimento de bens, até o limite do valor do patrimônio transferido. In: Curso de Direito constitucional positivo, São Paulo: Malheiros, 2005, p. 440.
Anota-se que a vítima do crime de participação em suicídio, ainda que optado por ultimar tão gravoso ato contra si não pode ser considerada mentalmente debilitada ou como se não gozasse de faculdades mentais, isso porque se assim fosse o crime deixaria de corresponder a um suicídio, mas sim uma modalidade de homicídio. Nesse sentido: HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Arts. 121 a 136. Rio de Janeiro: Forense, 1978.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 104
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 13ª ed. São Paulo: RT, 2013, p. 662
FRAGOSO, Heleno C. Provocação ou auxílio ao suicídio. In: Revista de Direito Penal n. 11/12, São Paulo: RT, 1973, p. 35
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – vol. 2. São Paulo: RT, 2013, p. 110
Consciente no sentido de o agente ser capaz de prever o resultado de sua conduta, no caso, a morte do suicida.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 107.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro – vol. 2 São Paulo: RT, 2013, p. 113
BITTENCOURT, idem.
  JESUS, Damásio de. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 90
Há entendimento diverso, no sentido de afirmar de que o crime não admite a forma tentada por trata-se de delito condicionado. Para essa corrente a tentativa inexiste, porque vítima deve tentar o suicídio sofrendo lesões graves ou deve efetivamente suicidar-se, sendo que em ambos os casos tratar-se-ia de crime consumado. Cf. NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 13ª ed. São Paulo: RT, 2013 e DELMANTO, Celso; Et al. Código Penal Comentado. São Paulo: Renovar, 2002.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal – Vol. V. 238. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 238.
No exemplo de Nelson Hungria: Suponha-se que João e Joaninha, contrariados no seu recíproco amor, resolvam matar-se, instigando-se mutuamente. De acordo com o ajustado, João desfecha um tiro contra Joaninha e, em seguida, outro contra si próprio, mas acontecendo que um deles sobrevive. Se o sobrevivente é João, responde este por crime de homicídio; se, ao contrário, é Joaninha quem escapa, responderá esta por instigação a suicídio. Se João, ao invés de ter atirado contra Joaninha, limitou-se a fornecer a arma com que ela veio a matar-se, responderá por auxílio a suicídio. In: HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal – Vol V. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 237.
JESUS, Damásio de. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1979, p 67.
FUHRER, Maximilianus Cláudio Americo; FUHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Código Penal Comentado. São Paulo: Malheiros. 2007, p. 218
Lei 9.099. Art. 89: Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena.

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