Doutrina de Segurança Nacional, lawfare e PsyOps
Fernando Augusto Fernandes, advogado e pesquisador
Artigo publicado no site Conjur, na sexta-feira (27), em https://www.conjur.com.br/2022-mai-27/fernando-fernandes-doutrina-seguranca-nacional-psyops
É fundamental para o direito entender o que há de novo no uso da tecnologia nos ataques a democracia e as eleições, e ficarmos atentos às raízes ideológicas desses movimentos ilegais. A análise precisa ser histórica, cirúrgica e a geopolítica de controle da América Latina, em nosso caso, por exemplo, podemos destacar a doutrina de segurança nacional.
A segurança nacional formulada pelos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial deturpa a fórmula de Clausewitz ao transformar a política em uma continuação da guerra por outros meios. Um dos pontos aqui alertados foi o grande investimento americano em influência nas forças armadas dos países latinos americanos e em especial ao brasileiro.
Os Estados Unidos saíram fortalecidos em 1945, com o fim da guerra, sem destruição das suas cidades, sem campos de batalhas dentro do seu território e devido ao seu protagonismo e força assumiram o poder na geopolítica mundial. Os militares brasileiros, antes influenciado pela escola militar francesa, passaram a seguir o pensamento militar norte-americano e pelo Pentágono[1] de uma forma explícita.
É necessário, segundo a doutrina de segurança nacional, detectar todos os membros da subversão, utilizando técnicas variadas e “a presença permanente em toda parte: nos locais de trabalho, de transporte, de recreio; prisões rápidas e informações”.[2] A tortura é a regra do jogo. “Inimigo bom é o inimigo morto. Adversário definido é inimigo disfarçado.”
Por fim, Joseph Comblin define:
No primeiro plano da política interna, é a segurança nacional que destrói as barreiras das garantias constitucionais: a segurança não conhece barreiras; ela é constitucional e anticonstitucional; se a Constituição atrapalha, muda-se a Constituição. Em segundo lugar, a segurança nacional destrói, desfaz, a distinção entre política externa e interna. O inimigo, o mesmo inimigo, está ao mesmo tempo dentro e fora do país; o problema, portanto, é o mesmo. Dependendo das circunstâncias, os mesmos meios podem ser empregados tanto para inimigos externos quanto internos. Desaparece a diferença entre polícia e Exército: seus problemas são os mesmos (…).
Em terceiro lugar, a segurança nacional apaga a distinção entre a violência preventiva e a violência repressiva (…).
Para a doutrina de segurança nacional, a Guerra Fria não era uma guerra absoluta, um embate específico, mas uma nova modalidade de guerra. Para os doutrinários da segurança nacional, como o general Golbery do Couto e Silva[3], não se concebe de outra maneira a guerra contra o comunismo, pois a Guerra Fria é permanente, travada em todos os planos — militar, político, econômico e psicológico —, evitando-se, porém, o confronto armado da invasão territorial por tropas estrangeiras.
A guerra psicológica e a manipulação de informação no campo virtual são um desdobramento de controle geopolítico iniciado pelo criador do marketing Paul Joseph Goebbels de que, ao contar uma mentira um milhão de vezes, ela se transforma na mais absoluta verdade. Tem raiz na doutrina de segurança nacional, que controlou as força armadas e gerou o golpe de 1964, se desdobrou em um controle das polícias e recentemente do judiciário.
A guerra cognitiva e o uso e operações psicológicas (PsyOps) é de fato formas modernas da mesma doutrina, como aponta Zanin e Ambrosio em artigo aqui na ConJur. Quando George Orwell escreveu “1984” e imaginava o mundo de controle pela teletela, a ficção previu um modelo, mas não conseguiu prever que a teletela não seria uma televisão na qual nos observasse o Grande Irmão, mas um celular que tudo vigia, numa relação quase intrínseca com o seu dono. Mas “1984” já previa a manipulação da informação e a falsificação da história, as atuais e perigosos cápsulas antidemocráticas, chamadas fake news.
Quem iria imaginar, ainda mais Orwell, que os Estados Unidos teriam a capacidade de, por meio da troca de informações transmitidas por cabos subaquáticos, interceptar milhares de mensagens de e-mails, escutar milhões de ligações telefônicas, abrir documentos em computadores, espiar microfones e câmeras por toda a terra? Sim, isso todo foi possível e divulgado em 2013, por Edward Snowden, ex-agente da CIA. O acervo incluía os documentos relacionados ao Prism, que detalhavam acordos secretos entre a NSA e as maiores empresas de internet do mundo, como Facebook, Yahoo!, Apple, Google, e com importantes esforços da Microsoft para proporcionar à agência acesso as suas plataformas de comunicação, como o Outlook.[4]
Mas a questão não fica na vigilância, mas transborda para a manipulação de informação como mostra o uso de 87 mil contas do Facebook pela empresa Cambridge Analytica bem relatado também no filme The Great Hack, que foi fundamental para a eleição de Donald Trump nos EUA.
São formas de manipulação terríveis, em especial quando o próprio poder judiciário utiliza de informações incorretas da mídia tradicional para desdobrar na doutrina de segurança nacional, que nada mais é a guerra jurídica assimétrica (lawfare). Merece destaque nessa análise os três volumes organizados por Larissa Ramina intitulado “Lawfare e a América Latina — A guerra Jurídica no Contexto da Guerra Hibrida” em homenagem a Carol Proner.
O Wikileaks revelou a participação do ex-juiz federal Sergio Moro em um encontro promovido pela embaixada americana para treinamento de juízes e promotores brasileiros, parte do Projeto Pontes. Tal “encontro” foi parte da estratégia de influência americana e, em 2009, como um “guarda-chuva” de um “novo conceito de treinamento”, ao utilizar a presença de juízes federais de 26 estados da federação, 50 agentes da Polícia Federal, bem como 30 autoridades estaduais, entre promotores e magistrados[5].
O resultado disso foi uma mistura de criação de falsas realidades, desinformação e perseguições através do poder judiciário misturado com a divulgação de falsas notícias (fake news). Ao manipular a e destruir a democracia de países, em especial quando o nível de leitura cai de forma abismal, e ainda é acompanhada pela alienação das notícias das mídias tradicionais e cooptação dos seus profissionais.
Agrava-se quando ao fato das notícias falsas são somadas as notícias manipuladas. Pierre Bourdieu, catedrático de sociologia no Collège de France até sua morte em 2002, relata, na obra Sobre a Televisão, a censura invisível, onde o assunto a ser abordado é imposto pela pressão econômica dos anunciantes e dos conglomerados que são donos das emissoras e onde há limitação do tempo, censura consciente e autocensura.
Bourdieu proclama: “desejaria, então, demonstrar uma série de mecanismos que fazem com que a televisão exerça uma força particularmente perniciosa de violência simbólica”[6]. Perceba-se aqui o emprego da palavra violência em significado muito mais amplo.
Zanin traz nesse artigo na Conjur uma análise aprofundada das técnicas de manipulação dessas informações e criações de sensos comuns. A consequência dessa manipulação gerou a prisão e a quase destruição política do presidente Lula, que teve sua inocência devolvida pelo STF, em duas decisões históricas advogadas pelo próprio Zanin.
As instituições e em especial a justiça eleitoral, precisam se preparar para os ataques realizados por diversos meios, criando defesas as fragilidades intituladas “Insuficiência Imunológica Psíquica”[7] de nosso sistema eleitoral. A ação precisa ser preventiva e reação em tempo hábil e de imediato porque às consequências nos afastam por décadas do futuro que desejamos como nação.
A vigência do artigo 326 A§ 3º do Código Eleitoral[8] e o abuso no uso indevido de informações falsas previstas no artigo 22 da Lei Complementar nº 64/1990 precisam gerar consequências rápidas e reais contra as candidaturas que usarem e/ou se beneficiarem das redes de comunicação falsas. Mas também a retirada do ar dos aplicativos que permitirem a circulação dessas falsas notícias são essenciais para a democracia brasileira e para colocar barreiras reais aos gabinetes do ódio que alimentam de materiais apócrifos uma grande parte de nossa sociedade. Afinal, estamos vivendo no meio de tantas guerras, a guerra hibrida e psicológica ferem a nação, a democracia e o nosso futuro.
[1] FERNANDES, Fernando Augusto. Voz Humana – A Defesa Perante os Tribunais da República, pág. 173.
[2] COMBLIN, Padre Joseph. Ideologia da Segurança Nacional – O Poder Militar na América Latina. Tradução de A. Veiga Fialho, Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1978, p. 71.
[3] Golbery do Couto e Silva (1911-1987), general e geopolítico brasileiro, um dos principais teóricos da doutrina de segurança nacional, elaborada nos anos 1950 pelos militares brasileiros da Escola Superior de Guerra (ESG), sendo um dos criadores do Serviço Nacional de Informações (SNI). Ocupou ainda os cargos de Chefe da Casa Civil nos governos militares de Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo até 1981.
[4] No Place to hide – Edward Snowden, The NSA & the surveillance State, Edward Snowden, a NSA e a Espionagem do Governo Americano Tradução Fernanda Abreu, GMT Editores, 2014.GMT, pág. 89. Oliver Stone também fez um filme com roteiro dele e de Kieran Fitzgerald, chamado Snowden, lançado em 2016.
[5] FERNANDES, Fernando Augusto. O Futuro (Passado e Presente) na Guerra Híbrida e a Insuficiência Imunológica Psíquica da América Latina Frente ao Big Brother. In: Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida, vol. 1. RAMINA, Larissa (coord). Curitiba: Íthala, 2022, p. 159.
[6] BOUDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Tradução de Maria Machado. Rio de Janeiro: Josrge Zahar Ed., 1998.
[7] BERLINCK, M. T. (1997). A insuficiência imunológica psíquica. Boletim de Novidades da Livraria Pulsional, 10(103), 5-14. Berlinck que, neste texto, analisa a colonização espanhola e a resistência guerrilheira ao regime de 1964, afirma que “o aparelho psíquico é, desde os começos da psicanálise, uma construção que responde à violência primordial que ameaça a existência física do sujeito e da espécie e, ao mesmo tempo, é insuficiente para proteger o sujeito de ataques virulentos tanto internos como externos”. Quanto às suas características, ensina que “observa-se, também, que pacientes com insuficiência imunológica têm uma estrutura psíquica muito semelhante à dos índios centro-americanos descritos por Frei Bartolomé de las Casas. Não só revelam uma grande incapacidade de se proteger contra ataques virulentos externos, como há uma disponibilidade a ataques virulentos endógenos que frequentemente levam à destruição”.
Disponível em: <http://egp.dreamhosters.com/EGP/insuficiencia_imunologica.shtml>.
[8] § 3º Incorrerá nas mesmas penas deste artigo quem, comprovadamente ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral, divulga ou propala, por qualquer meio ou forma, o ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído. (Incluído pela Lei nº 13.834, de 2019)
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