Artigo do advogado e pesquisador Fernando Augusto Fernandes publicado em 16/08/2022 no Conjur
No último dia 8 de agosto, o ex-presidente Donald Trump divulgou um documento a imprensa, afirmando que sua casa recebera uma busca e apreensão determinada pela justiça americana e executada pelo FBI (Federal Bureau of Investigation), que teriam recuperado ao menos 15 caixas de registros da Casa Branca [1].
Não houve nenhuma notícia oficial pela Procuradoria de justiça dos Estados Unidos, a busca não teve imagens vazadas à imprensa, nenhuma autoridade envolvida participou de uma coletiva de imprensa. A porta-voz da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, afirmou que o presidente Joe Biden “não foi informado” sobre a ação do FBI, na casa de seu antecessor, em Mar-a-Lago, na Flórida.
A operação feita merece ser destacada como comparação às operações espetaculosas e midiáticas, em especial da “lava jato” e de suas franquias, como a do Rio de Janeiro.
Lula sofreu uma condução coercitiva que parou o país. As imagens de sua casa foram vazadas pelas autoridades. Helicópteros da imprensa sobrevoavam o imóvel desde a madrugada.
Após a condução do ex-presidente Lula em 4 de março de 2016, o petista foi preso em 7 de abril de 2018 quando as imagens dele embarcando no avião da Polícia Federal e após, sendo transportado de helicóptero para a carceragem de “guantánamo” de Curitiba, foram exaustivamente veiculadas pela imprensa brasileira.
Em 21 de março de 2019, a franquia lavajatista conduzida pelo juiz Marcelo Bretas forneceu ao país as vergonhosas imagens do presidente Michel Temer sendo preso na rua e imagens da busca na sua residência também foram vazadas.
Fica clara a diferença de tratamento de como os judiciários, agências de polícia, e também a imprensa dos dois países tem radical diferença no tratamento do sigilo e na exposição das pessoas investigadas, em especial do mundo político, em destaque ex-presidentes da República.
É de se recordar o acórdão do TSE no HC nº 0602487-26.2016.6.0.0000, que fui impetrante em favor do ex-governador Anthony Garotinho. O país se chocou com a violência por ordem direta do juiz Glaucenir Oliveira, arrancado de um hospital e exposto a toda imprensa nacional.
O mesmo magistrado chegou a atacar o ministro Gilmar Mendes em um grupo de WhatsApp e foi punido posteriormente. A ministra Luciana Lóssio deu o voto condutor da revogação de injusta prisão.
Há no caso o único voto vencido, do ministro Herman Benjamim, que, no entanto, foi acompanhado por todos na parte da dignidade da pessoa humana. Com as memoráveis palavras:
“A despeito de divergir da e. Relatora quanto ao fundamento de conveniência da instrução processual, para assim manter o decreto prisional em desfavor de Anthony Garotinho, afiguram-se necessárias duas reflexões de extrema importância.
A primeira é que não podemos nos ofender com a violação da dignidade da pessoa humana — princípio fundamental da República Federativa do Brasil, a teor do art. 1º, III, da CF/88 — somente em casos particulares.
Em suma: agente político que comete ilícito, de qualquer natureza, não possui prerrogativa em detrimento de quem comete qualquer outra espécie de delito em outras circunstâncias.
Então, é hora, sim, de nós, não apenas na Justiça Eleitoral, mas na Justiça como um todo, dizermos claramente que é inadmissível, no Estado de Direito, que qualquer investigado seja exposto na televisão, nos jornais.
É a morte pela imagem fotográfica e televisiva.
(Voto divergente do Exmo. Min. Herman Benjamin no HC 0602487-26.2016.6.0.0000).
Anos depois da condução de Lula, o STF julgou inconstitucional a condução coercitiva. Dentre outros motivos, a patente violação à dignidade da pessoa humana, à presunção de inocência e a indevida espetacularização da investigação foram destaque:
Dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88). O indivíduo deve ser reconhecido como um membro da sociedade dotado de valor intrínseco, em condições de igualdade e com direitos iguais. Tornar o ser humano mero objeto no Estado, consequentemente, contraria a dignidade humana (NETO, João Costa. Dignidade Humana: São Paulo, Saraiva, 2014. p. 84). Na condução coercitiva, resta evidente que o investigado é conduzido para demonstrar sua submissão à força, o que desrespeita a dignidade da pessoa humana.
(Trecho do acórdão da ADPF 395 — que julgou inconstitucional a condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório)
Vale relembrar que o juiz responsável por boa parte destas condutas de espetacularização, como a condução coercitiva de Lula — o ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sergio Moro — foi considerado parcial pelo STF no HC 164.493. Naquela oportunidade, dentre as razões para o resultado do julgamento, o fatídico dia da condução coercitiva foi citado de forma expressa:
O primeiro fato indicador da parcialidade do magistrado consiste em decisão, de 4.3.2016, que ordenou a realização de uma espetaculosa condução coercitiva do então investigado, sem que fosse oportunizada previamente sua intimação pessoal para comparecimento em juízo, como exige o art. 260 do CPP. Foi com o intuito de impedir incidentes desse gênero que o Plenário do STF reconheceu a inconstitucionalidade do uso da condução coercitiva como medida de instrução criminal forçada, ante o comprometimento dos preceitos constitucionais do direito ao silêncio e da garantia de não autoincriminação. (ADPF 444, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 14.6.2018, DJe 22.5.2019). No caso concreto, a decisão que ordenou a condução coercitiva não respeitou as balizas legais e propiciou uma exposição atentatória à dignidade e à presunção de inocência do investigado.
(…)
O terceiro fato indicativo da parcialidade do juiz traduz-se na divulgação de conversas obtidas em interceptações telefônicas do paciente com familiares e terceiros. Os vazamentos se deram em 16.3.2016, momento de enorme tensão na sociedade brasileira, quando o paciente havia sido nomeado Ministro da Casa Civil da Presidência da República. Houve intensa discussão sobre tal ato e ampla efervescência social em crítica ao cenário político brasileiro. Em decisão de 31.3.2016, o Min. Teori Zavascki, nos autos da Reclamação 23.457, reconheceu que a decisão do ex-Juiz que ordenou os vazamentos violou a competência do STF, ante ao envolvimento de autoridades detentoras de foro por prerrogativa de função, e ainda se revelou ilícita por envolver a divulgação de trechos diálogos captados após a determinação judicial de interrupção das interceptações telefônicas. O vazamento das interceptações, além de reconhecidamente ilegal, foi manipuladamente seletivo.
(…)
O sexto fato indicador da violação do dever de independência da autoridade judiciária consiste na decisão tomada pelo magistrado, em 1º.10.2018, de ordenar o levantamento do sigilo e o translado de parte dos depoimentos prestados por Antônio Palocci Filho em acordo de colaboração premiada para os autos da Ação Penal 5063130- 17.2016.4.04.7000 (instituto Lula). Quando referido acordo foi juntado aos autos da referida ação penal, a fase de instrução processual já havia sido encerrada, o que sugere que os termos do referido acordo nem sequer estariam aptos a fundamentar a prolação da sentença. Além disso, os termos do acordo foram juntados cerca de 3 (três) meses após a decisão judicial que o homologou, para coincidir com a véspera das eleições. Por fim, tanto a juntada do acordo aos autos quanto o levantamento do seu sigilo ocorreram por iniciativa do próprio juiz, isto é, sem qualquer provocação do órgão acusatório. A Segunda Turma do STF, no julgamento do Agravo Regimental no HC 163.493, reconheceu a ilegalidade tanto do levantamento do sigilo quanto do translado para os autos de ação penal de trechos de depoimento prestado por delator, em acordo de colaboração premiada (HC 163.943 AgR, Redator do acórdão Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, DJe 10.9.2020).
(Trecho do Acórdão do HC 164.493, que reconheceu a suspeição do ex-juiz Sergio Moro, com a consequente anulação de todos os atos decisórios praticados pelo magistrado, no âmbito da Ação Penal 5046512- 94.2016.4.04.7000/PR – Triplex do Guarujá).
A espetacularização do direito penal é matéria sabidamente perigosa aos direitos fundamentais, tanto é assim que tem sido tratado como questão passível de tutela nas proposições legislativas que objetivam a reformulação do Código de Processo Penal. O deputado federal Paulo Teixeira (PT- SP), ao ser indicado como relator parcial na Comissão Especial Destinada a Proferir Parecer ao Projeto de Lei nº 8045, em 30/5/2017, sugeriu a seguinte redação para os parágrafos do artigo 594[2]:
Art. 594. As pessoas presas provisoriamente ficarão separadas das que já estiverem definitivamente condenadas.
§ 2º É vedado, conforme o art. 1º, III, e o art. 5º, X e LVII, da Constituição Federal, o art. 10, 1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a cláusula 1ª das Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Presos, e o art. 41, VIII, da Lei de Execução Penal, o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos da imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade civil, administrativa (disciplinar e por improbidade) e penal (abuso de autoridade).
§ 3º Por meio de regulamento, as autoridades deverão disciplinar, em cento e oitenta dias, o modo pelo qual as informações sobre a realização da prisão e a identidade do preso serão, de modo padronizado e respeitada a programação normativa aludida no parágrafo anterior, transmitidas à imprensa, asseguradas a efetividade da persecução penal, o direito à informação e a dignidade da pessoa submetida à prisão.
Essa espetacularização não acontece no caso americano. O ex-presidente dos Estados Unidos recusou-se a falar sobre a operação, apoiou a divulgação do mandado e inclusive considerou como invasão a ida do FBI em sua residência, disse estar sendo perseguido por “democratas” e ataques dos esquerdistas. O FBI divulgou na sequência o mandado dizendo que ele está sob investigação e que o ex-presidente estava em poder de documentos ultrassecretos.
No livro Geopolítica da Intervenção — A verdadeira história da Lava Jato, de minha autoria, cito que os Estados Unidos, como forma da guerra hibrida, (lawfare) exportou para o mundo uma fórmula de combate aos nossos políticos, utilizando como chave de acesso de dominação a ideia de combate a corrupção. Substitui-se o combate ao comunista inimigo interno da lei de segurança nacional ou da doutrina de segurança nacional, depois do traficante e a influência do Drug Enforcement Administration (DEA; Administração de Fiscalização de Drogas — Departamento Entorpecentes Americano) pelo combate a corrupção.
A “lava jato” e o judiciário brasileiro, influenciados pelo projeto de pontes de dominação e doutrinação, acabaram servindo para um ataque às nossas forças políticas, com inúmeras invasões ao Congresso e essas duas lastimáveis prisões, de Temer e Lula — este último, que é o principal candidato à presidência em 2022 e não responde a nenhuma ação penal.
Recorda-se que Temer foi absolvido das acusações quando o juiz identificou que a gravação ambiental e ilegal, que também foi divulgada pela imprensa, tinha sido editada (ConJur — MPF adulterou diálogos de Joesley e Temer, diz juiz federal) , e este sistema os Estados Unidos nunca utilizaram internamente para eles. Já havia apontado aqui na ConJur a ilegalidade da gravação (ConJur — Fernandes: Gravação de Temer viola direito de não se autoincriminar).
O caso de Trump faz o precedente do primeiro presidente americano que sofre uma busca e apreensão. O jornalista[3] Glenn Greenwald, responsável pela divulgação da vaza jato e também pelo material de Snowden, escreveu um livro crítico quando ao sistema americano, demonstrando uma alta proteção a classe política.
[4] No livro Geopolítica da Intervenção, demonstro como os Estados Unidos exportaram para o mundo a ideia de que “a lei é para todos” e gerou prisão de políticos em todo o planeta enquanto preservou sua classe política e as suas empresas envolvidas em ilícitos.
A comparação quanto a discrição das operações nos EUA e a proteção de suas próprias empresas chama a amadurecimento nosso sistema de justiça, quanto a mudança da utilização do direito penal como um “coliseu de Roma”, que legitima um direito penal simbólico em um país que é o terceiro no ranking das nações que mais se prendem no mundo.
Precisamos aperfeiçoar nossas leis para impedir espetacularização do processo penal, a utilização política do processo penal e as divulgações de imagens dos acusados, suas residências e punir os vazamentos feitos por agentes públicos que visam a promoção pessoal.
[1] https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/08/12/justica-divulga-mandado-que-motivou-operacao-do-fbi-na-casa-de-trump-ex-presidente-tinha-posse-de-documentos-confidenciais.ghtml
[2] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2139364
[3] Greenwald, Glenn. With Liberty and justice for some – How the law is used to Destroy Equality and Protect the Powerful. (Nova York: Picador, 2011)
[4] Fernandes, Fernando Augusto, Geopolítica da Intervenção – A Verdadeira História da Lava Jato (Geração Editorial, 2020)
Deixar um comentário