Sistema penal de eliminação e não proteção de vidas

Sistema penal de eliminação e não proteção de vidas

Por Fernando Augusto Fernandes, advogado e pesquisador, publicado em 03/06/2022, no Conjur, em https://www.conjur.com.br/2022-jun-03/fernando-fernandes-sistema-penal-eliminacao

A brutalidade das cenas que o país presenciou na semana que passou, tanto do sergipano que foi morto asfixiado por ação de dois policiais rodoviários federais, quanto pelo absoluto exagero na ação da Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, demonstra uma sociedade adoecida pelo extermínio constante da população pobre e um sistema de justiça policial que não serve ao bem comum.

Bem analisou o professor Juarez Tavares em entrevista concedida à ConJur, ao se referir ao seu último livro “Crime – Crença e Realidade [1]“: a polícia não serve para proteger a população de atos antissociais mas é “um instrumento brutal de contenção de liberdade e solidificação da exclusão, até mesmo por meio do extermínio”.

É possível ir mais longe nas razões econômicas que movem essa máquina de extermínio para compreender o que vivemos e buscar novos caminhos para nossa sociedade.

Toda a história da pena e das formas de intervenção do estado estão diretamente ligadas às razões econômicas. O livro “Cárcere e Fábrica”, de Dario Melossi e Massimo Pavarini [2], que retoma o trabalho de Georg Rusche e Otto Kirchheimer em “Punishment and Social Structure” (1939), demonstra que o sistema de punição corresponde às suas relações produtivas.

O livro indica que a prisão como conhecemos hoje tem uma história de cerca 200 anos. Na Idade Média, a prisão era um lugar de aguardo da pena de morte ou de tortura. A prisão como pena autônoma inicia com o próprio sistema capitalista já que passa a ser prejuízo matar mão de obra. Naquele momento, na Holanda, começam a surgir as prisões com trabalhos forçados.

A aula magna de Nilo Batista no concurso para professor titular de direito penal foi composta de um caso peculiar. Um dono de escravo se opunha à pena de morte a um de seus escravos para proteger sua propriedade. O incrível livro de Michael Foucault “Vigiar e Punir” inicia com a dantesca cena de um condenado sendo amarrado por cada membro a um cavalo, que disparados o despedaçam [3]. Após, demonstra a complexa formulação de poder e de arquitetura que vão formar os presídios, colégios, manicômios e as instituições de disciplinamento, que posteriormente formam o Panóptico.

Todo esse esquema de vigilância e disciplinamento se sustentava em um discurso de recuperação do preso à sociedade, o que será profundamente alterado. Zigmunt Bauman, em “Conseqüências Humanas da Globalização”, desvenda uma nova forma de punição e organização do mundo ao se perguntar se as câmeras em presídios que tudo veem substituíam o sistema panóptico. O sistema agora é o sinóptico, sendo substituído com dois efeitos: na sociedade e no presídio.

Do ponto de vista da sociedade, o grande irmão de “1984” de Orwell [4] que tudo vigia pela teletela é substituído por uma inversão na qual o indivíduo quer ser observado. Daí a diferença do Big Brother da TV Globo e os programa de reality shows para o grande irmão de 1984.

No presídio, mais especificamente quanto à segurança nos tempos pós-modernos, há uma diferença clara. O panóptico acreditava na recuperação, enquanto a prisão de hoje, ainda mais na realidade brasileira, significa apenas a retirada de circulação do indivíduo. Para o “consumidor falho [5] — o menino do morro, do tráfico — é reservado o Direito Penal do ‘Terror’ [6], com regime de pena integralmente fechado, desumano e cruel” [7].

Destacamos que, mesmo com réu preso por tráfico, apesar da pena de dois anos [8], há precedentes de manutenção da prisão. Mas, como se verá, com o aumento do encarceramento há uma opção de extermínio e não proteção da vida desinteressante para o mercado.

Enquanto isso as inovações constantes e descriminalizadoras são para os consumidores.  A Lei nº 9.099/95 trouxe uma innovatio no sistema brasileiro, permitindo a composição penal, na tentativa de encaminhar-se ao Direito Penal mínimo [9]. Hipótese a mais recente foi apresentada pela Lei 13.964/19 e diz respeito à possibilidade de penas alternativas quando a pena máxima não passa de quatro anos.

O sistema é direcionado à defesa do patrimônio e não da vida. A entrevista de Juarez traz uma das distorções da lei. A pena de um a quatro anos para furto simples e de dois a oito anos se mediante destreza, mostra que um furto do celular no bolso de alguém pode gerar uma pena de oito anos! Ou ainda, uma empregada doméstica que furta uma joia pode vir a ser condenada a oito anos por abuso de confiança. Um evidente exagero e uma ofensa ao princípio da proporcionalidade constitucional.

Evidente que o furto simples deveria estar incluído entre os crimes de menor potencial ofensivo, com pena máxima de dois anos, enquanto o furto qualificado jamais poderia passar do teto da pena alternativa (quatro anos).

Em 2019 fui um dos convidados para discutir o projeto do ex-juiz declarado parcial no caso Lula pelo Supremo Tribunal Federal, à época ministro atingido pela “vaza jato”. Destaquei que, segundo dados do CNJ em 2018, os presos por furto representavam 8,83% e receptação, 2,31% do total de detidos, enquanto presos por homicídio representavam 13%.

Enquanto isso, em relatório divulgado pela Anistia Internacional em fevereiro de 2015, o Brasil foi colocado no topo dos países mais violentos do mundo. São pelo menos uma média de 130 homicídios por dia.

O relatório aponta que a sensação de impunidade é um incentivador, já que 85% dos homicídios não são solucionados no Brasil, e cita como os principais fatores para a crise brasileira, dentre eles a violência policial, registros de tortura e a falência do sistema prisional.

A reincidência e as condições desumanas das unidades prisionais também são fatores preocupantes. Segundo a Anistia Internacional, sete em cada dez presos voltam a praticar crimes [10].

Dados do Ministério da Justiça mostram que o número de pessoas presas no Brasil aumentou mais de 400% em 20 anos. De acordo com o Centro Internacional de Estudos Penitenciários, ligado à Universidade de Essex, no Reino Unido, a média mundial de encarceramento é 144 presos para cada 100 mil habitantes.

No Brasil, o número de presos sobe para 300. A população carcerária cresceu 83 vezes em 70 anos, e já somos o quarto país que mais encarcera no mundo (607,7 mil) — atrás de Rússia (673,8 ml), China (1,6 milhões) e Estados Unidos (2,2 milhões). Atingimos em 2018 o número de 791.060 presos [11] , número exato emitido em outro documento do CNJ em 2018 é de 602.217 [12]. Mas a nossa maior opção está pelo assassinato, já que matamos mais que prendemos e não descobrimos a autoria dos homicídios.

De 62 mil homicídios, somente 8% são desvendados, ou seja, o número de casos que chegam a um tribunal de júri é uma fração dos 8%, diminuindo os casos de condenação. Somente 13% dos presos provisórios são por homicídio e 2% por latrocínio. Os dados de 2018 mostram 11,27 % de presos por homicídio e de latrocínio de 0,78%. Ou seja, temos mais de homicídio do que de latrocínio.

O crime de organização criminosa que tanto está em voga corresponde a 0,79% dos presos. Crimes de trânsito em um país que mata 41.069 (2021) pessoas por ano representam 0,75% dos presos. O roubo representa 27% dos crimes cometidos pela população carcerária. O tráfico de drogas corresponde a 24% do total de tipos penais atribuídos aos presos brasileiros. O terceiro artigo do Código Penal que mais motivou prisões — o homicídio — vem atrás, com 11%.

Diante disso, enquanto Loïc Wacquant, sociólogo da Universidade da Califórnia em Berkeley, no livro Prisões da Miséria, demonstra que a penitenciária é uma forma de contenção do desemprego nos Estados Unidos, o nosso sistema econômico está direcionado ao desvalor da vida e à não inclusão de parte da população no sistema produtivo — sendo delegada ao desemprego abaixo do exército industrial de reserva e direcionada ao extermínio constante.

As mortes não são indesejadas, são incentivadas. Engana-se quem acha que ela é somente direcionada à classe pobre. O sistema não protege a vida de forma geral porque as verbas estão direcionadas ao combate do tráfico e aos crimes contra o patrimônio. Não precisamos majorar penas, mas investigar. É preciso investir em um sistema que esteja voltado à proteção da vida, com controle de armas, projéteis, sistema integrado de investigação nacional — como já defendi — um sistema mais eficiente, inclusive com a integração da Polícia Federal em investigações de homicídio.

Basta uma revisão para que as investigações quanto a crimes contra a vida, liberdade sexual (estupros) sejam de competência concorrente a fim de usar o aparato nacional para a proteção da vida, com a identificação e prisão de bandidos ou policiais envolvidos. Por fim, ao mesmo tempo, se faz necessário o esvaziamento das prisões de todos os indivíduos imputados por tipos penais não violentos, desde tráfico desarmado a todo crime contra o patrimônio sem violência, todos podendo ser tratados por penas alternativas.

O número de mortes do Brasil ultrapassa a já chocante marca de 62 mil assassinatos por ano e 553 mil em dez anos, 30 vezes mais que a Europa e se somam com 40 mil mortes no trânsito (mesmo com a diminuição de 30 % [13]) que nos transforma no quarto país com mais mortes no mundo. Em dois anos perdemos 666.568 mil brasileiros para Covid em uma campanha anti saúde da própria União. Isso sem somar as mortes por uma política que mal alimenta, incentiva o fumo, e não atende adequadamente o cidadão. Somente de doenças cardiovasculares são 70 mil brasileiros que perdem a vida anualmente. Em suicídios tivemos um aumento de 43 % com 9.454 mortes em 2019.

Entre policiais civis no Estado de São Paulo o índice de suicídio (68) é o maior que de mortos em serviço (33). Em todo país em 2020, 198 policiais morreram em serviço e 5.660 foram mortas por policiais [14].

Tudo isso demonstra um problema cultural que o direito é um reflexo. Temos um país que para mudar precisa cultuar a vida, a inclusão social, políticas econômicas que permita o povo sair da fome que se encontra, atingir o emprego e a esperança. Um sistema que elimine as favelas com investimento em construções de moradia, reforma agrária em terras improdutivas. Isso não é contra o agronegócio, isso fortalece e inclui no agro. O país precisa voltar a incentivar a cultura e não às armas.

O Brasil precisa de afeto pelo outro e amor ao nosso povo. Pois o sistema econômico que estamos vivendo e por consequência todo o sistema de justiça e policial se direciona a eliminar vidas, perder policiais e executar brasileiros, normalmente pobres.

[1] TAVARES, Juarez. “Crime: Crença e Realidade”. 1ª Edição. Rio de Janeiro. Editora Da Vinci Livros. 2021

[2] MELOSSI, Dario e PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica — as origens do sistema penitenciário (séculos XVI — XIX). 2ª Edição, Rio de Janeiro. Editora Revan. 2006.

[3] O relato da condenação, que foi ultimada em 02 de março de 1757, finaliza com a narrativa de que o condenado foi esquartejado, a “operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas…” FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

[4] ORWELL, George. 1984. São Paulo: IBEP, 2003

[5] BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 485.

[6] BARANDIER, Antonio Carlos. As Garantias Fundamentais e a Prova, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997.

[7] STF, HC nº 69.603-1, Tribunal Pleno, voto vencido, ministro Marco Aurélio de Melo, 18.12.92, pp. 698 e segs.

[8] Consultor Jurídico — Condenado por tráfico de drogas pede substituição de pena. 13 de novembro de 2007.

[9] TAVARES, Juarez. “Critérios de Seleção de Crimes e Cominação de Penas”Revista Brasileira de Cências Penais — IBCCRIM, número especial de lançamento, p. 75, dez., 1992; BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 84; CERVINI, Raul. Os Processos de Descriminalização. 2ª ed., São Paulo: RT, 1995, p 192.

[10] http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/cidadania-nos-presidios

[11] http://cnj.jus.br/files/conteudo/destaques/arquivo/2015/07/577d8ea3d35e53c27c2ccc265cd62b4e.pdf

[12] http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/08/987409aa856db291197e81ed314499fb.pdf

[13] Estatísticas nacionais / Estatísticas / Os acidentes / Vias Seguras – Vias Seguras (vias-seguras.com)

[14] Número de policiais mortos cresce em 2020; o de pessoas mortas pela polícia tem ligeira queda no Brasil | Monitor da Violência | G1 (globo.com)

 

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