Prendemos demais e prendemos mal

É senso comum e pretensão de operadores do Direito na Justiça Criminal achar que, por sua experiência diária, sem base científica, têm condições de analisar todo o sistema judicial-carcerário. As afirmações defendendo a culpabilidade e o grau de periculosidade de criminosos dentro do sistema carcerário estão desassociadas das estatísticas. O próprio número de detentos é um indício disso.

O Brasil é o terceiro país que mais prende no mundo. Em 2014, estávamos com 563.526 pessoas encarceradas, com um “déficit” de 206.307 vagas. Se colocarmos nessa soma as 147.937 pessoas em prisão domiciliar, e ainda 373.991 mandados a serem cumpridos, teríamos um sistema carcerário com 1.085.454 presos. Alcançaríamos a proeza de ultrapassar a Rússia, que tem 676.400 presos, ficando somente atrás da China 1.701.344 e dos USA, campeão da história da humanidade com 2.228.424 detentos.

Isto é indício que algo anda errado. Por conta disso, estamos reproduzindo algo que não funciona. Dispensamos verbas e esforços em formas equivocadas. Prendemos demais e mal. É certo que precisamos colocar os homicidas e latrocidas na cadeia, mas não é exatamente isso que estamos fazendo.Vejamos: o último senso penitenciário foi de 2014, não havendo dados atuais de encarceramento por tipos penais. Essas estatísticas deveriam ser automáticas, com fornecimento de dados pelos juízes ao Ministério da Justiça.

A vida deve ser a principal preocupação no Brasil, que conta com 59 mil assassinatos ao ano. E apenas 8% dos crimes de homicídio são solucionados. Ou seja, 92% dos casos não passam pelo sistema judiciário ou carcerário. Com esse percentual, fica claro que não há investigação. Logo, não há diminuição de homicídios.

De acordo com dados de 2014, somente 14% dos presos tiveram a imputação de homicídio e 3% de latrocínio. Outros 14% de presos estão reclusos por crimes sem violência, como furto (11%), receptação (3 %) e, sim, poderiam estar cumprindo penas alternativas.

A estatística conta 38.731 presos por crimes contra a pessoa. Desse total, seriam necessários mais estudos e atenção aos dados de 770 presos por aborto, 2.559 por violência doméstica e 1.004 não classificados. Será que todos estes condenados precisariam ser afastados do convívio em sociedade?

No entanto, existem 94.972 detidos por crimes contra o patrimônio e, mesmo subtraindo desse total, crimes que de fato podem ter sido contra a vida – latrocínio (6.639) e sequestro (601) -, ou potencialmente contra a pessoa – roubo (16.449) e roubo qualificado (33.563) -, teríamos 57.252 pessoas que possivelmente ofenderam a integridade de outra. Isso se considerássemos todos os roubos como ocorridos com ameaça à vida, o que é improvável.

Com esse cálculo, chegamos à conclusão de que 37.720 pessoas estavam presas por crime contra o patrimônio – sem violência – em 2014. O número é próximo aos de presos por homicídio.

Presos por tráfico de drogas foram 59.154 (27%), sendo 6.823 por associação ao tráfico. Desse total de presos, é necessário separar o tráfico armado, o pequeno tráfico, e milhares de situações envolvendo posse de pequenos portes de drogas, que acabam sendo classificados como tráfico. Por mais aversão que se tenha às drogas, o enfrentamento a esse problema é questionado desde o governo FHC até os mais recentes, de esquerda humanista.

Dos crimes contra o patrimônio, 37.720 detentos poderiam estar soltos. Dos 59.154 presos por tráfico e dos 16.449 por roubo simples, sem qualificação, deveria haver estudo de cada caso para penas alternativas.

De outro lado, em um país com quase 50 mil mortes no trânsito, é surpreendente 557 presos por crimes de trânsito em 2014, sendo somente 117 por homicídio culposo em acidente de trânsito. A punição desses tipos penais precisa ser mais efetiva, rápida e representar uma porcentagem equivalente à gravidade do problema.

Além disso, as estatísticas mostram que 8 em cada 10 presos estudaram, no máximo, até o ensino fundamental, e 2 em cada 3 presos se intitulam negros. A maior porcentagem de presos é jovem.

O professor Loïc Wacquant, aponta a prisão como forma de controle do desemprego. As prisões, de fato iniciaram com o sistema capitalista e os trabalhos forçados. O sistema da prisão, escola, fábrica e manicômios foram forjados pela vigilância panóptica. Estamos em meio a uma crise econômica, com 13 milhões de desempregados. Se não tomarmos cuidado, vamos investir em penitenciárias, promotores, juízes e suas “10 medidas”, majorando o Estado Burocrático dos Bacharéis. Mas não em escolas, médicos, habitação, geração de empregos. Não há verba para tudo.

Darcy Ribeiro dizia, na década de 80, que se não investíssemos em escola faltaria dinheiro para os presídios. O custo de um preso na cadeia, fora todo o sistema de repressão a ele acoplados – Polícia, Judiciário, Ministério Público, armas, carros, intercepções – é muito maior que o de sistemas sociais como o “bolsa família” ou o “renda mínima”, que tendem a evitar que se cometa crimes contra o patrimônio, o tráfico de drogas, os furtos e os estelionatos.

Chega-se à rápida conclusão de que existe, sim, uma quantidade surpreendente de presos que não deveriam estar ocupando as prisões. E milhares de crimes contra a vida sem solução. E temos condições de mudar a legislação para deixar fora da cadeia uma gama de acusados de crimes sem violência e para classificar melhor os roubos e o tráfico, para reprimirmos toda a ofensa a vida.

Precisamos investir também em um sistema investigativo sério quanto a homicídios, para inverter a lógica para 98% de solução nas investigações. A força dos procuradores federais e da Polícia Federal precisa ser usada nas investigações de homicídio, sendo interesse da União a vida humana, como dito na Lei Antiterrorismo (Lei 13260/06), criar centros de inteligência nacional para combate a crimes contra a vida, com competência estadual e federal é a saída. Não há outra forma, já que as polícias estaduais estão envolvidas nos extermínios.

Fora isso, também precisamos repensar o que gastamos com educação e saúde. Não é possível um professor ou um médico ganhar menos que um juiz ou um promotor, carreiras com bons salários já no início.

Precisamos prender melhor, qualitativamente. Nossas verbas precisam ser aplicadas na solução dos crimes de homicídio e de acidentes de trânsito. Temos de investir em programas sociais, que movimentam a economia. E a Polícia Federal deve passar a ter papel fundamental nas investigações de homicídio.

Fernando Augusto Fernandes é advogado criminalista, doutor em ciência política, sócio do Fernando Fernandes Advogados.

Artigo publicado originalmente no Estadão.

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