Neste 7 de dezembro, lembremo-nos da Panair do Brasil

Por Fernando Augusto Fernandes, Rodrigo Duarte, Rodrigo Siqueira Jr. e Guilherme Lobo Marchioni

 

O caso Panair Brasil, recentemente discutido pela Comissão de Anistia, mostra como durante o Regime Militar de 1964 interesses se voltaram contra o livre mercado e realizaram a falência forçada da empresa para beneficiar concorrentes. O presente estudo de caso desmonta as teses nostálgicas sobre o autoritarismo a falsificar a história de que “no tempo dos militares” não ocorriam casos emblemáticos de corrupção ou violência.  O projeto Voz Humana, que reúne os julgamentos do STM entre 1975 e 1979, identificou inúmeros casos de corrupção, sempre com punição de patentes menores e proteção pela descriminalização secundária de oficiais, provas de torturas e desaparecimento de pessoas.

No célebre livro de Yves Lacoste “A Geografia, isso serve em primeiro lugar para fazer a guerra”, pode-se dizer que a primeira função do avião foi a utilização bélica, a partir da Primeira Guerra Mundial, tendo sua maior expressão na Segunda grande guerra. Com o desenvolvimento tecnológico das aeronaves criou-se um mercado para o transporte aéreo de correspondências, cargas e pessoas. Desenvolvendo-se inicialmente na Europa e nos Estados Unidos, mas também no Brasil e por consequente na América Latina. Na França, o brasileiro Alberto Santos Dumont, desbravou os céus decolando a primeira aeronave com propulsão própria – o icônico 14 Bis – no Campo de Bagatelle, em Paris, no dia 23 de Outubro de 1906. Nos tempos atuais, o Brasil se tornou um dos poucos países do mundo a dominar a tecnologia de construção de veículos aéreos, possuindo fabricantes nacionais de Aviões e Helicópteros como também de peças, componentes e formação de mão de obra altamente capacitada e especializada. Outras nações que detém o ciclo completo para construir esse tipo de aeronave são os EUA, França, Alemanha, Reino Unido e China.1

Em 1927 foram criadas duas primeiras empresas de aviação civil do Brasil: O Sindicato Condor, que realizou o primeiro voo de passageiros do Brasil e a Varig, com auxílio técnico e operacional da empresa alemã Condor Syndikat.2  Em 1929 a Nyrba do Brasil S.A. é criada, como subsidiária da New York-Rio-Buenos Aires Line (NYRBA), companhia posteriormente absorvida pela Pan American World Airways, uma das maiores transportadoras aéreas internacionais, em 1930, após dificuldades de financiamento com crash da bolsa de Nova Iorque. A Pan Am, também é fundada em 1927, como um serviço regular de correio aéreo e transporte de passageiros, e que operava entre Key West, Flórida, e Havana, Cuba.

Sob o controle da Pan Am, a NYRBA teve sua razão social alterada para Panair do Brasil, e ao longo do tempo a empresa recebeu concessão para diversas rotas domésticas e internacionais. A Panair operava com aeronaves mais modernas que as das congêneres europeias e oferecendo requintado serviço de bordo. Nos anos 1950 a Panair foi se desligando da Panam, e seu capital paulatinamente nacionalizado até 1961, quando os empresários brasileiros Mario Wallace Simonsen e Celso da Rocha Miranda adquirem as ações para nacionalizar integralmente a companhia.3

No dia 10 de fevereiro de 1965, por determinação direta do então Presidente Castello Branco (na fase de implementação do regime, com predomínio do capital estrangeiro associado a politicas monetaristas4) sem qualquer processo judicial ou administrativo, foram suspensas as concessões das linhas aéreas nacionais ou internacionais outorgadas à Panair do Brasil S.A, e feita transferência das concessões à Varig5, empresa Rio Grandense que possuía proximidade com o regime ditatorial constituído – ainda que (assim como ocorre nos dias atuais) dificilmente qualquer empresa aérea sobreviveria sem o forte apoio governamental – e que viria a se tornar a maior companhia aérea brasileira6.

No dia seguinte, conforme relatório da CNV7, em 11 de fevereiro de 1965, o juiz da 6ª Vara Cível da Justiça recebeu a visita do ministro de Estado da Aeronáutica, brigadeiro Eduardo Gomes, sob acusações de que o grupo de Mario Simonsen usava a empresa como instrumento de corrupção, publicadas pelo O Globo e O Estado de S. Paulo, no dia 15 de fevereiro, deferiu a falência da Panair do Brasil, em razão do decreto Presidencial e alegações do Ministério da Aeronáutica sobre situação econômico-financeira irrecuperável da empresa. Informações estas que viriam a ser desmentidas depois pelo próprio economista que elaborara o relatório, Dr. Fragoso Pires8.

A sindicância da massa falida não seguiu as regras dispostas na lei Nº 859 de 1902 (Art. 43 § 3º, item f, sobre os deveres do síndico de conservar a massa patrimonial do fallido), que disciplinava, juntamente ao código comercial de 1850 (arts. 277, 387 e 453), o direito de falência. Houve total desrespeito pelos procedimentos de consulta, avaliação; dispensa de realização de concorrência, levando a dilapidação do patrimônio da empresa com transferência dos contratos e venda de bens a preços irrisórios por agentes do Banco do Brasil e do Sistema de Justiça. Alinhados ao regime de 64. Inclusive ferindo há época supostos direitos de credores, conforme a melhor doutrina9. Por fim o governo vedou empresas aéreas de solicitarem recuperação judicial por meio do Decreto Lei nº 669, de 03 de julho de 1969. Deixando milhares de trabalhadores desempregados e soçobrando importante empresa nacional.

A suspensão de contratos com a administração do qual depende determinada empresa, sob abuso de poder, e sua posterior quebradeira, nos lembra o ocorrido recente no mercado de infraestrutura e engenharia pesada brasileira. Na Lava Jato, empresas de relevância nacional e internacional – foram declaradas inidôneas para contratação com o Estado e impossibilitadas de usufruir dos benefícios dos acordos de leniência, uma vez que houve “disputa” entre a CGU, AGU e o MPF da Força Tarefa, a frustrar a efetividade dos acordos celebrados, mantendo punições fatais às grandes companhias de engenharia pesada10. Ademais, visou, como denunciamos no Geopolítica da Intervenção11, atacar a empresa brasileira de petróleo, Petrobrás, que havia descoberto naquela altura importantes reservas de petróleo em águas profundas.

Recordamos neste sentido, a entrevista do então Presidente do Grupo Andrade Gutierrez, à Folha de São Paulo, em 2017, após celebração de acordo de leniência com o MPF:

“Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. De qualquer forma, morro. Que banco vai me emprestar dinheiro? Se eu tenho essa faca no pescoço, de o TCU poder cobrar o que quiser? Achamos que conseguiremos mostrar isso com a ajuda do Ministério Público. Não vamos para o confronto.

O risco é, na prática, eles acabarem não recebendo. Porque não vamos conseguir [se a empresa quebrar]. Se esse é o objetivo, há outras formas de fazer. Diz então “ó. Vocês viraram persona non grata”. Não podemos jogar a leniência no lixo. Já pagamos mais de R$300 milhões em troca de absolutamente nada. Nem imagem, nem algo prático. O BNDES não pagou, a Petrobras não tirou da lista negra. Só é penitência. O Brasil está muito confuso.”12

A formação econômica colonial, legou ao brasil estruturas que buscaram desorganizar e bloquear qualquer tentativa, não só de contornar o monopólio da demanda por bem importados pela metrópole, mas também sua produção na colônia. Sendo continuadamente obstruída qualquer produção alheia a divisão colonial da produção de valor, havendo o exemplo bastante representativo do Alvará de 5 de janeiro de 1785, da Rainha D. Maria que decretava “extinção e abolição de todas as fábricas do Brasil”13. Por meio da coerção Estatal, mantinham-se as estruturas subdesenvolvidas, impedindo uma organização autônoma de produção de bens e serviços que conflitem com os interesses econômicos hegemônicos internacionais. O abuso de poder, o poder punitivo informal, autoritarismo, a violência e a exceção têm sido ferramentas encarregadas de preservar o subdesenvolvimento e colonialidade da economia e na sociedade na América Latina14. E a justiça de transição surge, a partir desta perspectiva, como uma importante política de Estado para o desenvolvimento.

A justiça de transição é “o conjunto de ferramentas ou protocolos que devem ser implementados nas sociedades a partir do Estado, de maneira que haja consenso e consciência sobre a postura democrática. Nas relações entre o Estado e a Sociedade e relações sociais propriamente ditas. O objetivo é atingir um nível de confiança e solidariedade tal que viabilize a reconciliação nacional e cura das veias abertas decorrentes dos traumas de um período de exceção e/ou conflito armado.”15

Este conjunto de protocolos possui uma divisão de 4 eixos: i) o binômio memória e verdade –  como a que promovemos no projeto Voz Humana, que reúne os arquivos sonoros dos processos de perseguidos políticos no STM, durante o regime de 64  –  ii) a reparação integral pelos danos advindos das violações de direitos fundamentais; iii) a reforma das instituições que promoveram tais abusos; bem como iv) a responsabilização ou justiça, e que também pode ser explicitado na expressão persecução aos violadores de direitos humanos. Não existe hierarquia entre estes mecanismos e eles são interdependentes entre si. É importante frisar que se algum deles não for implementado, dificilmente o objetivo da reconciliação nacional e não repetição virão a ocorrer.

Neste sentido, felicita-nos muito a decisão histórica, da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, que aprovou, durante sua 5ª Sessão Plenária realizada em 27 de setembro, o pedido de anistia política post-mortem do acionista da Panair do Brasil S.A, Celso da Rocha Miranda. Com reconhecimento oficial do Estado Brasileiro, após 58 anos, de que a Panair foi fechada devido a uma perseguição política contra seus principais acionistas16. Isso afetou não apenas a empresa e seus sócios como também os 5 mil funcionários e suas famílias e ainda afetou o desenvolvimento deste importante setor do país, o Aéreo.

O MDHC com base no artigo 8º do ADCT da CFRB/88 e pela Lei 10.599/02, conforme o parecer do Conselho da Comissão de Anistia de 2023, no processo de Anistia nº 2014.01.74151, de Celso Rocha Miranda, declara-o Anistiado Político, em razão de “perseguição política aos sócios e controladores, além de interesses ocultos e a busca por estabelecer um monopólio nas linhas internacionais de voo” (Relatório da conselheira Vanda Davi Fernandes de Oliveira).

Em depoimento durante a audiência, posteriormente incluído no relatório da CNV, a filha de Mario Wallace Simonsen, Marylou Simonsen conta que “no dia em que seu pai morreu, poucos dias após o fechamento da Panair, ela havia dito para ele que nunca mais voltaria ao Brasil, mas “ele olhou nos meus olhos, segurou minhas mãos e disse para que eu amasse o Brasil, pois os homens passam, mas o Brasil fica”. Importante mensagem sobre a as razões para não esquecermos jamais os abusos e absurdos cometidos nos períodos de exceção no país, e construção de uma democracia para o Brasil.

A partir da anistia concedida pelo poder público, abre-se um precedente para que a Panair e as famílias afetadas ingressem com pedidos de reparação financeira. Mas bem mais do que isso, avança-se em relação a justiça de transição, de forma geral. Beneficiando toda sociedade, inclusive aqui às empresas, que também sofreram violação de direitos, neste caso da faculdade ius utendi e ius fruendi, para destruí-la contra sua vontade (ius abutendi)17, propriedades suas, a partir de ação Estatal abusiva. A prática é incompatível com o Estado Democrático de Direito e deve ser – como foi – igualmente reparada se quisermos evitar que volte a ocorrer com outras importantes empresas nacionais o lamentável e infame fato ocorrido à Panair do Brasil.

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1https://www.cnnbrasil.com.br/economia/alem-da-embraer-conheca-outras-fabricantes-que-produzem-avioes-no-brasil/#:~:text=Outras%20na%C3%A7%C3%B5es%20que%20det%C3%A9m%20o,Alemanha%2C%20Reino%20Unido%20e%20China.

2 FERREIRA, Josué Catharino. Um breve histórico da aviação comercial brasileira. Josué Catharino, XII Congresso Brasileiro de História Econômica & 13ª Conferência Internacional de História de Empresas, p. 4.

3 https://panair.com.br/por/legado/

4 CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar:1964-1988, cit., p 332.

5 SASAKI, Daniel Leb; Pouso Forçado, edição ampliada. Rio de Janeiro: Record, 2015, p. 19.

6 FERREIRA, Josué Catharino Um breve histórico da aviação comercial brasileira

Josué Catharino, XII Congresso Brasileiro de História Econômica & 13ª Conferência Internacional de História de Empresas, p. 5

7 PROCESSO Nº 2014.01.74151 Comissão da Anistia, Celso Rocha Miranda.

8 SASAKI, Daniel Leb. Pouso Forçado, edição ampliada. Rio de Janeiro: Record, 2015, p. 200

9 TZIULNIK, Luiz, recuperação de empresas e falência, 5º ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2007, p. 195.

10 WARDE, Walfrido, SIMAO, Valdyr, Leniência, elementos do direito de conformidade. São Paulo: Contracorrente, 2019, p. 30.

11 FERNANDES, Fernando, Geopolítica da intervenção, 2ºed. São Paulo: Geração, 2020, p. 506.

12 NASSER, Mariva Virinia. Lava Jato: o interesse público entre punitivos e desgovernança, 2ºed. São Paulo: Lumen Juris, 2022, p. 98.

13 SALOMAO FILHO, Calixto. Teoria crítico estruturalista do direito comercial. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 74

14 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Colonização punitiva e totalitarismo financeiro, a criminologia do ser-aqui. Rio de Janeiro: Da vinci, 2021, p. 29.

15 ALMEIDA, Enea de Stutz e. A transição brasileira. Salvador: Assessoria sociaisculturais e educacionais, 2022, p. 29.

16 https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/noticias/caso-panair-apos-58-anos-empresa-tem-pedido-de-anistia-acatado

17 WARDE, Walfrido, VALIM, Rafael. Abutres, ingênuos e a ameaça da destruição da grande companhia. São Paulo: contracorrente, 2021, p. 61.

 

Publicado originalmente em: https://www.migalhas.com.br/depeso/398630/neste-7-de-dezembro-lembremo-nos-da-panair-do-brasil

 

 

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