Congresso definiu que Daniel Silveira não tem imunidade e aprovou condenação

Artigo publicado no Conjur, em 25 de maio de 2022. https://www.conjur.com.br/2022-mai-24/fernando-fernandes-congresso-definiu-silveira-nao-imunidade

Congresso definiu que Daniel Silveira não tem imunidade e aprovou condenação

Por Fernando Augusto Fernandes, advogado criminalista e pesquisador

O Supremo Tribunal Federal, em 3 de maio de 2018, alterou sua jurisprudência para limitar o foro por prerrogativa tendo como voto condutor do Ministro Luís Roberto Barroso que circunscreveu o foro “aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados a função desempenhadas”. Ficaram vencidos Ricardo Lewandowski e Alexandre de Moraes que mantinham na corte todos os casos, assim como Dias Toffoli que estendia a limitação aos ministros de estado e magistrados de cortes superiores.

A alteração do foro previsto no art. 53, § 1º da Carta Magna decorreu de vários debates na Suprema Corte. Em 2005, o STF, por 7 x 3 havia declarado inconstitucional o art. 84 do CPP, § 1º e 2º que mantinha o foro de prerrogativas aos atos cometidos no exercício da função, mesmo após a saída do cargo (ADI 2797).  O artigo foi incluído no CPP como uma reação do congresso a fim de manter o foro, diante das mudanças.  O STF de 1999 que cancelou a Súmula 394, que estabelecia: “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício[1].

A decisão de 2018 possibilitou que um parlamentar seja processado mesmo enquanto no cargo, caso a acusação teoricamente não tenha relação com o exercício parlamentar.

O mesmo ponto de interpretação serve para definir a aplicação ou não da imunidade parlamentar. O STF define quando no caso concreto se a manifestação tem ou não relação com o exercício da função: “Com o advento da EC 35, de 20-12-2001, que deu nova redação ao art. 53 da CF, de 5-10-1988, os deputados e senadores já não gozam de imunidade processual, mas, apenas, de imunidade material, por suas opiniões, palavras e votos, proferidos, obviamente, no exercício do mandato ou em razão dele. Por crimes de outra natureza, respondem os parlamentares, perante esta Corte, agora sem necessidade de prévia licença da respectiva Casa Legislativa, como exigia o § 1º do art. 53 da CF, em sua redação originária. [Inq 1.710, rel. min. Sydney Sanches, j. 27-2-2002, P, DJ de 28-6-2002.[2]]”.

Nesse ponto há algo a se analisar que se encontra em choque interpretativo o Supremo. Conclui-se que quando o ato tiver relação com o mandato, as palavras do deputado são abarcadas pela imunidade. O mesmo para definir a competência do Supremo. Quando não houver relação com o mandato não há imunidade e perde o parlamentar o foro por prerrogativas.

Vejamos a contradição posta no caso do parlamentar Daniel Silveira (PTB-RJ). O STF afasta a imunidade parlamentar em razão de suas palavras não terem relação com o mandato? Ocorre que afastando a imunidade manteve o caso a ser julgado pela Corte, quando por coerência a sua jurisprudência deveria ter encaminhado o caso a primeira instância. Não se trata aqui de suspeição dos Ministros, que não há, mas debate sobre competência.

É preciso ser claro. Não estou nem de longe a defender os atos de Daniel Silveira e já me manifestei repúdio as suas palavras somando as de José Roberto Batochio (https://www.conjur.com.br/2022-mai-09/fernando-fernandes-imunidadeabsoluta-parlamentar) defendo a imunidade criminal, mas também sua cassação pelo Congresso. Ainda me encaminhei à inconstitucionalidade do decreto presidencial de graça da presidência.

Lenio Streck publicou no Conjur excepcional texto sobre os limites da imunidade parlamentar e o problema do textualismo (ConJur – Na palavra ‘quaisquer’ do art. 53-CF cabe ‘qualquer coisa’?). Advertiu ainda o professor do risco dos “suicídios interpretativos (o haraquiri institucional), espero ter sido claro: o paradoxo não pode ser defendido enquanto tese uma vez que é a própria anti-teoria”.

No encontro em homenagem ao Supremo Tribunal Federal, Lenio fez a distinção entre o apoio institucional e a crítica[3]:

Em 1840, no meio da guerra, o general Rosas, ditador argentino, ofereceu tropas, casa, comida e roupa lavada para o exército farroupilha, com o objetivo de juntos – argentinos e farrapos – derrotarem o Império.

E o general David Canabarro, então líder da revolução Farroupilha, mandou-lhe uma carta, dizendo:

“Senhor: o primeiro de vossos soldados que transpuser a fronteira fornecerá o sangue com que assinaremos a paz com os imperiais. Acima de nosso amor à República está nosso brio de brasileiros. Se a separação for a esse custo, preferimos a integridade com o Império. Vossos homens, se ousarem invadir nosso país, encontrarão, ombro a ombro, os republicanos de Piratini e os monarquistas do Sr. Dom Pedro II.”

Do mesmo modo, respondemos nós, aqui presentes, Senhor Presidente do Supremo Tribunal Federal, parafraseando o General David Canabarro, que

— Podemos ter sérias críticas e divergências com relação ao tratamento dado pelo Supremo Tribunal à questão da presunção da inocência;

— Podemos ter sérias críticas ao fato de que o STF já deveria ter decidido de há muito as ADCs 44 e 54 e ainda não o fez;

— Podemos ter críticas às restrições ao habeas corpus, em um país que possui mais de 300 mil presos provisórios, dezenas de milhares dos quais em delegacias de polícia e em prisões tipo masmorras medievais, como um antecessor seu já disse de antanho;

— Podemos ter críticas e divergências com a nossa Suprema Corte quando esta faz juízos morais e parte dela quer ser vanguarda iluminista e empurrar a história;

— Podemos ter críticas e divergências com a nossa Suprema Corte quando decide com base na voz das ruas, esquecendo seu papel contra majoritário;

— Podemos ter críticas e divergências quando o STF pratica ativismos e passa ao largo dos limites semânticos da Constituição.

Mas, porém, contudo, todavia, Senhor Presidente de nosso Tribunal Maior da República brasileira, assim como já dissera David Canabarro em resposta ao ditador Rosas, podemos ter nossas críticas ao STF, só que o primeiro detrator, o primeiro que fez ou vier a fazer Contempt of Court, será enfrentado por todos nós aqui presentes e iremos arregimentar forças ombro a ombro nessa imensa comunidade jurídica de mais de um milhão de “soldados”.

Então, senhor presidente Ministro Dias Toffoli:

Acima de nossas críticas ao STF está nosso brio de juristas democratas. Não lutamos por mais de vinte anos para restabelecer a democracia e construir uma Constituição democrática – talvez a mais democrática do mundo – para, agora na democracia, entregarmo-nos para grupos e grupelhos, institucionalizados ou não, que querem fragilizar e, quiçá, aniquilar a Suprema Corte e, consequentemente, o Estado de Direito.

Respondemos aos detratores como David Canabarro respondeu ao ditador Rosas:

O primeiro que atacar a Suprema Corte brasileira servirá como exemplo de nosso brio por lutar pela democracia. As canetas Mont Blanc, as Bic e as telas dos smartphones que os detratores usam para escrever seus discursos de ódio contra a Suprema Corte serão por nós utilizadas para assinarmos novos manifestos a favor da força institucional da Suprema Corte brasileira.

A emenda Constitucional 35 de 2001, a mesma que trouxe a palavra “quaisquer” que foi objeto da defesa da imunidade, em razão da manifestação de Batochio relacionada a sua intenção como constituinte derivado, trouxe outra modificação importante. Até aquela reforma, o congressista para ser processado era exigido a licença da casa legislativa e a partir de então passou a permitir sem licença prévia. A alteração previu a possibilidade que o congresso possa sustar o andamento da ação por voto da maioria de seus membros[4].

A preocupação central de Batochio ao redigir o artigo estava na definição de quem faria a interpretação de quando às palavras do deputado tenha ou não relação com o mandato. A tensão estaria no fato de que o judiciário, outro poder, interpretasse o e não o Congresso.

Quando o STF decretou a prisão de Daniel Silveira, a casa legislativa foi instada, na forma do mesmo art. 53 da CF[5], a decidir quanto a sua manutenção. Naquela oportunidade, o congresso por 364 contra 130 votos manteve a prisão do deputado. Lembrando que a manutenção de tornozeleira é uma substituição abrandada do que o congresso permitiu. Após isso, o Congresso nunca exerceu seu poder de suspensão da ação penal, portanto autorizou o processo no Supremo e suas consequências.

Portanto a casa que o deputado pertence, definiu por maioria de todos que as palavras emitidas por Daniel Silveira não estão abarcadas pela imunidade parlamentar e não se teve notícia de qualquer iniciativa para suspender a ação contra o deputado. Dessa forma a condenação do deputado pelo Supremo Tribunal Federal respeitou a divisão de poderes.

Se o legislativo, casa que pertence o deputado, interpretou que as palavras não estavam abarcadas pela imunidade, ou teria o soltado, e ele foi condenado pelo STF, não poderia a presidência da república “tomar as dores” e editar decreto de graça para salvar o seu deputado aliado.

Não existe vácuo de poder e as prisões que foram engendradas como flagrante pelo Supremo, como do senador Delcídio de Amaral, as medidas de afastamento do senador Aécio Neves e de Daniel Silveira foram comunicadas as casas legislativas que homologaram as medidas da Corte e não suspenderam as ações penais.

Foi opção legislativa, a alteração da Carta Magna para permitir o processo sem autorização da casa legislativa, assim como o enfraquecimento da Câmara frente ao judiciário, um dos efeitos da Lava Jato, se deu pela forma de condução do próprio congresso frente às ordens de prisões, de busca no interior do congresso e de medidas alternativas a prisão.

Evidente que Lenio tem razão ao apontar o perigo do textualismo e os riscos institucionais na extensão da imunidade a abarcar ataques a democracia, ofensas a ministros e manifestação de um deputado em favor do Ato Institucional que fechou o próprio congresso no passado. A manutenção da prisão pelo próprio congresso e a não suspensão da ação demonstra que dois órgãos da república (judiciário e legislativo) repudiaram a imunidade. Não é liberdade ou livre manifestação de pensamento cometer crime incitando Golpe ou ofendendo a qualquer um e muito menos ministros do STF.

Me manifesto contrariamente à limitação do foro por prerrogativas assumida pelo STF em 2018 entendendo que ela se estende a todos os atos no exercício da função. Mas novamente, o congresso editou o art. 84 do CPP que foi julgado inconstitucional, e posteriormente não exerceu seus poderes em uma reforma constitucional que preservasse a interpretação que proteja mais amplamente seus membros. Ao contrário na reforma de 2001, diminuiu a proteção sobre os membros do parlamento.

Permanece a dúvida. Porque o Supremo Tribunal ao definir que os atos não tem relação com o mandato não remeteu os autos a primeira instância? A interpretação leva a uma nova linha que a manifestação tem relação direta com o mandato do deputado, no entanto foram realizadas fora da imunidade parlamentar.

Se Congresso aprovou a prisão e não suspendeu a ação, o deputado precisa sofrer às consequências de cassação determinadas pelo Supremo. O decreto da presidência portanto não afronta somente ao Supremo, mas o próprio Congresso Nacional.

Ultrapassado esse momento, talvez fosse a hora do Congresso meditar sobre as reformas e interpretações que reduziram o foro em razão de inúmeros processos que correm em primeira instância civil e criminal todas às vezes que palavras são consideradas sem relação com o mandato. A revisão da ampla possibilidade de ações contra parlamentares a licença prévia, melhor definição do que é flagrante para evitar outras prisões. A proibição de busca interna no congresso e residências parlamentares exceto pela polícia legislativa. O mesmo sobre os limites de imunidade, deixando claramente de fora ataques a democracia, mas protegendo mais claramente outras manifestações, tornando o congresso sempre o intérprete e não o judiciário da relação das palavras com o mandato.

[1] Citar caso do Flávio Bolsonaro que o STF decidiu a permanência em razão de mandato cruzado. ConJur – Entenda o julgamento do STF e a restrição da prerrogativa de função

[2] Julgados Correlatos:

“Atentar contra a democracia e o Estado de Direito não configura exercício da função parlamentar a invocar a imunidade constitucional prevista no art. 53, caput, da Constituição Federal. (…) A CF não permite a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático (…), nem tampouco a realização de manifestações nas redes sociais visando ao rompimento do Estado de Direito, com a extinção das cláusulas pétreas constitucionais – separação de Poderes (…), com a consequente instalação do arbítrio. [INQ 4.781 Ref, rel. min. Alexandre de Moraes, j. 17-2-2021, P, Informativo 1.006.]”

Ninguém pode se escudar na inviolabilidade parlamentar para, sem vinculação com a função, agredir a dignidade alheia ou difundir discursos de ódio, violência e discriminação. [PET 7.174, rel. p/ o ac. min. Marco Aurélio, j. 10-3-2020, 1ª T, Informativo 969.]””Deputado federal. Crime contra a honra. Nexo de implicação entre as declarações e o exercício do mandato. Imunidade parlamentar material. Alcance. Art. 53, caput, da CF. (…) A verbalização da representação parlamentar não contempla ofensas pessoais, via achincalhamentos ou licenciosidade da fala. Pet 5.714 AgR, rel. min. Rosa Weber, j. 28-11-2017, 1ª T, DJE de 13-12-2017.]”” A imunidade parlamentar material, estabelecida para fins de proteção republicana ao livre exercício do mandato, não confere aos parlamentares o direito de empregar expediente fraudulento, artificioso ou ardiloso, voltado a alterar a verdade da informação, com o fim de desqualificar ou imputar fato desonroso à reputação de terceiros [Pet 5.705, rel. min. Luiz Fux, j. 5-9-2017, 1ª T, DJE de 13-10-2017.]”” “” eis que tais manifestações – desde que vinculadas ao desempenho do mandato – qualificam-se como natural projeção do exercício das atividades parlamentares. [Inq 2.332 AgR, rel. min. Celso de Mello, j. 10-2-2011, P, DJE de 1º-3-2011.]”

[3] Conforme transcrição em: FERNANDES, Fernando Augusto. Geopolítica da Intervenção: a verdadeira história da lava jato. São Paulo: Geração, 2020, p. 352-354

[4] CF Art. 53 § 3º Recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação.   § 4º O pedido de sustação será apreciado pela Casa respectiva no prazo improrrogável de quarenta e cinco dias do seu recebimento pela Mesa Diretora.         (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001) § 5º A sustação do processo suspende a prescrição, enquanto durar o mandato.

[5] § 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.

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