Prisões nunca amadureceram países ou instituições e sim liberdades civis

A divulgação de uma nota assinada por advogados contra o que apontaram de arbitrariedade na operação policial disparada pela Polícia Federal e comandada pelo juiz Sergio Moro há pelo menos dois anos ininterruptos e a resposta assinada pelo presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) deixam claro os contornos do debate dos personagens judiciais do caso, que está no centro da política nacional. Certamente, nem a nota dos advogados, nem a assinada pelo presidente da Ajufe representa a opinião da maioria dos advogados ou juízes do Brasil, menos ainda do povo brasileiro.
O conflito de visões vai além dos bem redigidos textos das notas, mas também estão no contexto as manifestações, entrevistas e matérias sobre o tema. Um ponto é comum, a operação “lava jato” é um interminável processo judicial que nunca ocorreu e que de alguma maneira mudará o Brasil. Da diferença de visões, é possível pensar no que muda e em que deveria ser aperfeiçoada, quais as mudanças positivas e nefastas.

Antes de ingressar nestas manifestações é necessário afirmar que ambos os lados têm legitimidade para o debate. A resposta da Ajufe e a manifestação de procuradores vieram com a acusação de que os advogados não seriam “sinceros” e teriam interesse na causa. Além das entrevistas com esta acusação direta, a nota da Ajufe contém tal deselegante acusação que inclui o fato de que os signatários estavam a dar uma resposta pública aos seus contratantes, diante da falta de vitórias judiciais. Entre os nomes, existem advogados que não atuam na “lava jato”.

Os juízes e procuradores recebem vencimentos fixos muitos mais altos que a população brasileira, tendo garantias que nenhum mortal na nossa terrabrasilis tem. Enquanto o desemprego assola nossa Nação, eles têm garantias absolutas de emprego e de proventos que se projetam sobre uma aposentadoria igual aos vencimentos atuais e equivalentes aos na ativa, para todo o sempre. Enquanto isso o povo sofre com a redução de suas aposentadorias mesmo com contribuição ao INSS. Tudo para estes funcionários públicos é diferentes, duas férias por ano (!), licenças de saúde e  saúde mantidas por seus fundos. Fora que, enquanto bradam contra foro de prerrogativa que intitulam foro privilegiado, todos têm foro privilegiado para seus atos, não podendo ser presos, senão por crimes inafiançáveis por ordem de seus próprios colegas do Órgão Especial. Enquanto se debate a diminuição de armas, estes têm direito a porte. Assim, recebem mais que valores financeiros, mas vantagens acima do comum, sem contar carros públicos, assessores, motoristas, passagens, em instituições que nem sempre são transparentes quanto a seus tetos salariais.

Todas estas garantias têm um objetivo constitucional, assegurar a independência tanto do magistrado quanto do promotor. Não pode, no entanto, dar legitimidade a estes funcionários públicos privilegiadíssimos mantidos com nossos impostos, pagos inclusive pelos advogados signatários da nota, de acusar que recebimento de honorários torna o que falam e assinam dignos de desconfiança.

O advogado representa muitas vezes interesses privados ou individuais e recebe por isso. No entanto, no Direito Penal não existe o conflito entre interesse do estado versus interesse individual e particular. Inicialmente, porque não existe interesse público em agentes do estado cometerem injustiças, e temos uma história, não só do Brasil como da humanidade, cheia delas. Saber o que é justo depende do processo e este se desenvolve com a resistência do acusado. Esta resistência não é interesse somente particular, mas público. Quando um advogado defende um réu está a exercer um papel público reconhecido de importância crucial para a democracia e fundamental nas ditaduras.

Exatamente por esta importância que a lei que rege a profissão da advocacia diz que o advogado exerce múnus público e lhe confere garantias de inviolabilidade do escritório, arquivos e uma lista de outras entre as quais de independência, falta de hierarquia com o juiz da causa, vedação de ser preso no exercício da profissão, exceto por crime inafiançável. E os honorários? O nome do recebimento financeiro pelo trabalho prestado já é diferente de remuneração e visa equivaler a honra pelo recebimento.

Os advogados sustentam estruturas caras que são os escritório de advocacia para exercer estas funções. Para isso, como todo empresário, precisam pagar luz, aluguel, secretárias, boys, passagens aéreas, gerando emprego e conhecimento. Ao fim da vida, quando não mais conseguem trabalhar precisam garantir seus próprios vencimentos de aposentadoria. Não têm de ninguém, nem do estado nem da OAB qualquer auxílio para manter sua sobrevivência. E trabalhar de graça não significa não cobrar, mas sustentar todos esses empregos, gastos e estrutura a serviço de alguém, em momento de crise financeira e dificuldade geral. Alguns dos que assinaram o manifesto, é de se lembrar, defenderam de graça perseguidos no regime militar de 1964.

Com ambos os lados legitimados e de boa-fé, é necessário saber o que divergem e o que vai mudar ou já mudou. Mas é certo que nenhum dos lados destes cidadãos defende a corrupção ou a impunidade, mas divergem na forma de combate e o que seria ilegal ou inconstitucional. Os advogados apontam ilegalidades na operação. O centro desta crítica está na incompetência do juiz Sergio Moro, nas prisões, suas justificativas, nas delações premiadas e, por último, nas exposições dos presos e ataques públicos aos magistrados que deram razões aos argumentos defensivos.

O presidente da Ajufe defende que a operação é um amadurecimento das instituições. Para julgar, o leitor precisa entender o significado jurídico de competência, que não é o mesmo de habilidade. Na aplicação, dizer que alguém é incompetente significa inábil e sem condições para o cumprimento da missão que lhe foi conferida. Já no Direito é sinônimo de dizer que a autoridade não tem poder para o caso. A lei processual e a Constituição delimitam o poder de um juiz. O juiz precisa ser provocado, ou seja, não pode agir simplesmente porque quer ou viu algo ocorrer na rua.  É necessário que a questão em dúvida chegue a ele para que possa ter algum poder sobre ela.

Como saber quem será o juiz do caso? Ou como um juiz pode escolher o caso a julgar? Existem inúmeros juízes no Brasil e em quase todas as cidades de nossos estados.

Há distribuição, sorteio entre os juízes do local aonde o fato ocorreu. Quando o fato ocorreu em dois locais, iniciando os atos em um local e terminando em outro, o juiz do local que primeiro foi distribuído fica com o caso. Neste ponto, encontra-se a divergência no caso “lava jato”.

O juiz Sergio Moro está julgando fatos que não ocorreram no Paraná. A Petrobras é no Rio de Janeiro, e os fatos ocorreram no Rio de Janeiro ou São Paulo, onde algumas das empresas tinham sede. O juiz paranaense argumenta que num primeiro processo de 2006, o Banestado, em que foi réu Alberto Youseff, decorreram as investigações que geraram a sua prisão em 2013. Assim seu poder estendido. Ocorre que Moro não julgou um processo de Youseff, mas desdobrou em incontestáveis. Continua e todos os dias surgem novos, com fatos inteiramente fora do Paraná. E ele prossegue a atuar. Isso porque deseja, faz o que o Ministério Público espera e tem apoio da opinião pública. Nem Sergio Moro está prevento para uma eternal investigação, nem os relatores no Tribunal Regional Federal, Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal. Não pode haver um jogo de cartas marcadas e o Judiciário não irá permitir conexões eternas.

A questão sempre é: “Os fins justificam os meios?” A prisão de acusados de corrupção em larga escala e a descoberta de envolvimento político justificam as prisões? Pois a Constituição define regras de presunção de inocência, limita o encarceramento para depois dos processos. O presidente da Ajufe acha amadurecimento das instituições a realização das prisões, e, por outro lado, os advogados, retrocesso.

A Constituição de 1988 foi fruto de enorme esforço histórico, e ela, fundante da democracia brasileira, da magistratura, do Ministério Público e da advocacia como é hoje. Desviar das garantias ali talhadas é se afastar das liberdades conquistadas. Manter ilegalidades, mesmo em nome de acabar com a corrupção, foi uma das justificativas do Ato Institucional 5. Pior que todas as corrupções é corromper a Constituição. Dar poder a quem não tem legalmente subverte as normas. O Judiciário terá que amadurecer, e também o Ministério Público. Prisões nunca amadureceram países ou instituições e sim liberdades civis. O debate amadurece as instituições.

Não existe nenhum país do mundo que tenha evoluído ou amadurecido por meio de prisões, mas através de lutas por direitos civis e respeito às liberdades individuais. Diga-se que em nenhuma destas conquistas da humanidade foram protagonistas juízes ou promotores; sempre vieram a reboque. Sempre foram favoráveis e operadores das repressões.

Os negros, pobres, perseguidos habitam nossas prisões lotadas de 40% de encarcerados provisórios, vítimas do sistema que defendem procuradores e juízes que se opõem à nota dos advogados. Querem isonomia da arbitrariedade, tentando legitimar este sistema injusto com a prisão de ricos e políticos. Amadurecer significa mudar este sistema e tornar o respeito às liberdades regra. As ações do Judiciário podem ser debatidas e seus atos são julgadas pela história. As ações jurídicas sendo públicas, são direcionados ao público os protestos contra as decisões equivocadas. Os vazamentos de elementos do processo, que legalmente são sigilosos, como gravações telefônicas, mensagens, dados bancários, decorrem de crimes cometidos por funcionários públicos. Prevaricam os que não apuram e não denunciam. Comete crime quem defende e incentiva estes elementos. Também quem divulga.

Assim, como nenhuma operação policial muda um país, o que muda com a operação “lava jato” são os juristas e, em especial, o Judiciário. Os princípios limitadores dos poderes dos juízes, promotores e da polícia, insculpidos na Constituição, passaram a ser feridos, com lenta reação das cortes superiores. Como falta de limite aos poderes gera arbitrariedades, estamos fortalecendo o arbítrio. Certamente, a maioria da população o apoia, e muitas das centenas de milhares de formados em Direito, cuja minoria exerce a defesa penal perante tribunais.  Mas a maioria dos juízes não compactua com esta falta de limites. O amadurecimento das instituições se fará quando a Constituição for respeitada. Isso ocorrerá, ou não há mais leis e sim desordem que acabará com a Constituição.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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