Por Guilherme Marchioni
Pau de arara do século 21: foi esta a expressão empregada pelo ministro Dias Toffoli para se referir às técnicas da operação “lava jato” no seu intento persecutório que desrespeitou o devido processo legal.
Em decisão na Reclamação nº 43.007 deste 6 de setembro de 2023, que analisou o direito de acesso a material produzido no contexto da operação “lava jato”, o referido ministro do Supremo Tribunal Federal não se omitiu na constatação de que os agentes que compunham a dita operação subverteram provas e agiram com parcialidade “não distinguiram, propositadamente, inocentes de criminosos” e valeram-se de “verdadeira tortura psicológica, uma pau de arara do século 21, para obter ‘provas’ contra inocentes” [1].
Antigo outdoor de apoio em Curitiba
Reprodução
A afirmação do ministro Toffoli não causou surpresa a quem conhece um pouco do consórcio de Curitiba ou a trajetória do ex-juiz considerado suspeito e parcial, o atual senador Sergio Moro, que em 2004 já demonstrava sua aversão ao devido processo legal em textos sobre a mani pulite, investigação italiana que tratou sobre casos de corrupção na década de 1990 na Itália.
Naquele texto o ex-juiz já anotava a técnica tirânica: “submetia os suspeitos à pressão de tomar decisão quanto a confessar, espalhando a suspeita de que outros já teriam confessado e levantando a perspectiva de permanência na prisão” [2].
Em 2015, quando a “lava jato” atingia a fama com suas buscas, apreensões, e prisões noticiadas com prioridade pela imprensa o constitucionalista e autor de “Autoritarismo e Golpes na América Latina“, Pedro Serrano alertava que prisões preventivas com o propósito — não declarado — de se obter delações premiadas são indiscutivelmente as medidas de legitimidade duvidosa [3].
Lenio Streck e André Trindade também avisaram. Em texto publicado nesta ConJur “O passarinho pra cantar precisa estar preso. Viva a Inquisição!”, abordaram a intenção do Ministério Público Federal no âmbito da “lava jato” de utilizar a constrição da liberdade como meio de obtenção de prova, correspondendo de fato a uma violência e pressão indevida para que ocorra a delação — a prisão, agora, é para o acusado “abrir o bico”. Este é um típico problema de um Estado com baixo grau de secularização, em que os desejos morais do agente público passam por cima da lei e da Constituição.
A tortura, para o ordenamento jurídico brasileiro, é a conduta de constranger alguém com violência ou grave ameaça, causando sofrimento físico ou mental, com o fim de obter informação, declaração ou confissão, conforme disposição do artigo 1º, inciso I, alínea “a”, da Lei nº 9.455/1997. Ora, a aplicação da prisão cautelar ou a forma como o investigado preso é tratado no presídio, com a ameaça ou concretização de violência física ou mental, com a finalidade implícita de forçar confissão ou delação adequa-se aos contornos legais da tortura.
Exemplo ilustrativo são as prisões preventivas efetivadas na “lava jato” e as colaborações premiadas que as sucederam, que apontam para uma ligação umbilical entre prisão e (suposta) voluntariedade na confissão e delação, sugerindo que a operação arquitetou um mecanismo de constrangimento à colaboração premiada, ou ao menos criou a expectativa, entre os investigados e seus advogados, de que colaborar com os investigadores seria o único meio mais eficaz para evitar uma iminente prisão ou reduzir seu tempo [4].
Anos mais tarde, o ministro Gilmar Mendes, ao se pronunciar nos autos do mesmo procedimento, foi contundente quanto esta semelhança entre a prisão para obtenção de delação e a prática de tortura: “As prisões preventivas tornaram-se mecanismo para “estimular” os investigados a colaborarem com Ministério Público delatando fatos verídicos ou não.” E arrematou: “Isso não é tortura? Mas feito por essa gente bonita de Curitiba”[v].
A decisão do Ministro Dias Toffoli acresce à observação das já expostas entranhas da “lava jato” e a forma como o sistema de justiça serviu para fins autoritários. Especificamente sobre a espécie de tortura psicológica para obtenção de delações, assevera: “centenas de acordos de leniências e de delações premiadas foram celebrados como meio ilegítimos de levar inocentes à prisão, delações essas que caem por terra, dia após dia, aliás”[6]
Também dia após dia a dia as parcas dúvidas que restavam sobre o caráter de exceção da “lava jato” se esvaem. Foram prisões preventivas ilegais para obtenção de delação, conduções coercitivas, prisões provisórias sem o devido trânsito em julgado da condenação, perseguição de advogados, restrições ao uso de Habeas Corpus, a indicar adequada a expressão usada pelo ministro Toffoli; testemunhou-se o emprego de um aparato de tortura psicológica tal qual o pau de arara é usado para a imposição de sofrimento físico. E, com o ministro, é possível concluir que a parcialidade daquela operação extrapolou todos os limites, contaminou procedimentos e representou a inviabilização do exercício de garantias democrática e civilizatórias inscritas na Constituição, sendo, portanto, de todo recomendável e razoável adoção de medidas para apurar responsabilidades funcionais, administrativas, cíveis e criminais dos atos ilegais das autoridades públicas que, de forma autoritária, instrumentalizaram o sistema de justiça.
[1] STF, Reclamação n. 43.007, Relator Min. Dias Toffoli, j. 6.9.2023.
[2] MORO, Sergio Fernando. Considerações sobre a operação mani pulite. Revista cej, v. 8, n. 26, p. 56-62, 2004.
[3] SERRANO, Pedro Estevam Alves. A justiça na sociedade do espetáculo: reflexões públicas sobre direito, política e cidadania. São Paulo: Alameda, 2015, p. 447.
[4] RODRIGUES, Fabiana Alves. Lava jato: aprendizado institucional e ação estratégica na Justiça. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2020, p. 179.
[5] STF, Agravo Regimental na Reclamação n. 43.007, Voto do Min. Gilmar Mendes, Relator: Min. Ricardo Lewandowski, j. 09/02/2021.
[6] STF, Reclamação n. 43.007, Relator Min. Dias Toffoli, j. 6.9.2023.
Publicado originalmente em: Conjur.
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