Artigo do advogado e pesquisador Fernando Augusto Fernandes, publicado em 31 de agosto de 2022, no Conjur https://www.conjur.com.br/2022-ago-31/fernando-fernandes-whatsapp-golpista-contencoes-supremo
Este artigo analisa a legalidade da busca e apreensão dos telefones dos empresários bolsonaristas. A ordem de busca dos telefones celulares dos empresários, após uma reportagem do site Metrópoles que trouxe à luz diálogos dos empresários que em um grupo de WhatsApp chamado “Empresários e Política”. No próprio texto jornalístico e em outras posteriores os empresários não negaram os diálogos.
Inúmeras questões se colocam. A prova obtida pela matéria foi lícita? Os diálogos privados publicados e obtidos sem ordem judicial poderiam ser usados? Poderiam ser valorados pelo ministro Alexandre de Moraes? A matéria e os diálogos eram suficientes para a decretação da busca e apreensão? Houve razoabilidade? Estamos diante de um ato protegido pela liberdade da expressão de pensamento? E de manifestação?
A primeira questão a se enfrentar é quanto a legalidade. O conteúdo foi postado em um grupo privado de WhatsApp, é de toda a evidência de que um dos componentes do grupo forneceu ao profissional da imprensa o conteúdo dos diálogos. Sabendo-se que o artigo 5º, XIV[1] garante o sigilo da fonte, o jornalista não irá divulgar qual dos interlocutores forneceu o conteúdo. Mas um elemento tornou definitiva pela jurisprudência do STF a possibilidade de análise do material, a não negativa do conteúdo revelado publicamente.
Não é possível ter dois pesos e duas medidas quando se aprecia o conteúdo de material divulgado em matérias jornalísticas em razão do investigado. Quando o ministro Gilmar Mendes deferiu uma medida impedindo a posse de Lula como ministro de Dilma nos MSs 34.070 e 34.071, assim se manifestou: “No momento, não é necessário emitir juízo sobre a licitude da gravação em tela. Há confissão sobre a existência e conteúdo da conversa, suficiente para comprovar o fato[2]“.
Após as gravações foram consideradas ilegais porque após o fim da autorização judicial. A divulgação por Sergio Moro foi um dos atos considerados para sua declaração de parcialidade pelo STF, somada a intromissão no descumprimento da soltura de Lula, a condução coercitiva e prisão, algo que importamos dos Estados Unidos, mas que jamais foi feito com um ex-presidente americano.
Reação diferente teve Michel Temer quando foi apresentada gravação ambiental clandestina enquanto era presidente. A negativa e a edição foi anos depois confirmada em sentença de absolvição[3]. O ex-juiz e ex-ministro Moro, Deltan Dallagnol e os procuradores também não negaram o conteúdo e a partir de confirmações de certos envolvidos tomou força a prova. Com todas as críticas que já registrei sobre a inconstitucionalidade das prisões de senadores e ilicitudes, a jurisprudência tem se posicionado que a falta de negativa do conteúdo legítima a prova.
Diante da confirmação e falta de negativa do conteúdo obtida de forma licita pelo jornalista, os diálogos poderiam ser apreciados. Eles por si só não provam as ações, mas são fortíssimos indícios de que poderia haver atos preparatórios de crimes eleitorais e contra a democracia. A comprovação de cometimento ou não de crime tornou imprescindível o acesso aos telefones aonde os diálogos foram realizados.
Mas há liberdade de manifestação de pensamento? O Supremo Tribunal Federal enfrentou a matéria de liberdade de manifestação de pensamento e estado democrático de direito no caso do deputado Daniel da Silveira. Naquele caso antecedeu o debate sobre a imunidade parlamentar para quaisquer palavras e votos. Naquela discussão houve defesa de imunidade absoluta em relação a palavra quaisquer como defendeu José Roberto Batochio como publiquei aqui na ConJur, mas que no caso específico o Congresso permitiu e aprovou a condenação do deputado como publiquei no mesmo site e a PGR, o resultado da perda de mandato mesmo após a “anistia” anômala do presidente.
Lenio Streck também ingressou na questão definindo que não é possível anarco-textualismo defendendo que “nenhum direito pode ser absoluto (inclusive o da imunidade parlamentar) e nenhuma interpretação pode pretender destruir as condições de possibilidade da sua própria existência”. No limite, a democracia não é um produto das instituições modernas, mas antes a sua matéria prima e é por isso que deve(ria) ser defendida contra o abuso dos poderes constituídos. A liberdade deriva da democracia e não contrário”.
No caso dos empresários a questão é mais simples, não há qualquer imunidade a se debater. E se o STF definiu que não há liberdade de manifestação de pensamento a se divulgar discurso de ódio, racista ou de ataques a democracia a um deputado, muito menos para quem não porta o voto popular como parlamentar. Mas se os mesmos não são deputados porque o STF agiu? Há certamente uma disfuncionalidade na necessidade da existência de um inquérito para investigar fake news e ataques aos ministros na Suprema Corte.
A existência do inquérito demonstra que o STF foi obrigado a se autodefender por inércia absoluta dos poderes que deveriam exercer esse papel. Mas o STF manteve sua competência no inquérito 4.781/DF em 10 votos contra 1[4], ou seja, não se está diante de atos monocráticos do ministro Alexandre de Moraes, mas uma competência definida pelo plenário.
A notícia crime da Polícia Federal, diante da matéria jornalística foi encaminha ao ministro vinculado a prevenção do inquérito sobre notícias falsas. Basta ler a mensagem de Marco Aurelio Raymundo para verificar que esse era um tema tratado:
“Se não precisar mentiras… ótimo!!!! Mas se precisar para vencer a guerra é aceitável. Muito pior é perder a guerra!!!! Esta mídia e políticos em geral são todos mentirosos profissionais! O Bolsonaro é o esteio da verdade… Isso é indiscutível e muito nobre. Mas os soldados rasos não precisam ou não podem ter a mesma nobreza exatamente porque estão lutando corpo a corpo. Dedo no olho, pontapé no saco. Também não apoio eticamente a mentira. Óbvio. Mas não posso no momento condenar quem usa de todas as armas para lutar contra um mal muito, muito. Muito maior!!! É GUERRA!!!!”
Mas as mensagens não se atêm a opiniões gerais, elas contêm indício de uso de dinheiro das empresas para os propósitos eleitorais. O mesmo Marco Aurélio Raymundo também sustentou que “o Sete de Setembro está sendo programado para unir o povo e o Exército e ao mesmo tempo deixar claro de que lado o Exército está”, informando, ainda, que adquiriu “milhares de bandeirinhas” para distribuir em suas lojas.
Como saber, portanto, se os diálogos foram mera conversa ou se houve de fato financiamento de campanhas aos atos antidemocráticos ou fake News? Não havia outra forma do que a apreensão dos telefones celulares para checar.
O atentado contra o Estado democrático de Direito ou o Golpe de Estado são crimes previstos no artigo 359 L e 359 M com penas de quatro a oito anos. A interrupção do processo eleitoral ou perturbação é previsto no art. 359 N com pena de três a seis anos e o uso de valores sem registro em campanhas está no artigo 350 do Código Eleitoral.
Conversas propunham dar dinheiro a funcionários que votassem em Bolsonaro, que configura artigo 299 do Código Eleitoral, compra de votos. Em 2019 foi editada a Lei 13.834 e incluído o artigo 326 A no Código Eleitoral que prevê o crime de divulgação de notícias falsas e de denunciação caluniosa eleitoral.
A união de pessoas para cometimento dos primeiros crimes contra o Estado de Direito democrático pode constituir organização criminosa previsto na Lei 12.850/13 que se define como reunião de quatro pessoas (ou mais) para cometimento de crimes com penas superiores a quatro anos. Para os demais associação criminosa prevista no código penal (artigo 288).
A associação e organização criminosa significam a criminalização da conduta preparatória da união de pessoas para os fins de cometimento de crime. Assim, caso mais de quatro empresários tenham se reunido virtualmente, planejado ou usado valores para os fins de cometimento de crimes, estamos plenamente na possibilidade da configuração dos crimes de organização criminosa.
Tenho minhas críticas ao que passou ao poder que passou a constituir o STF e tenho escrito artigos e no livro “Geopolítica da Intervenção – A verdadeira História da Lava Jato” faço de forma mais profunda. Defendo que a “lava jato” foi uma forma de intervenção política como estratégia de uma Guerra Híbrida (Lawfare) e que ao atacar o mundo político acabamos com uma distorção nos poderes que faz se sobrepor o Judiciário ao Legislativo e Executivo. Esse vácuo causou a ascensão do Bolsonaro e consequentemente do bolsonarismo.
A dicotomia está que muitos que criticam a ação da busca e apreensão dos empresários bolsonaristas ou a condenação do deputado Daniel da Silveira não emitem uma palavra para rechaçar os ataques que o deputado fez ao Supremo, as ofensas que Bolsonaro fez ao ministro Alexandre de Moraes, as palavras golpistas dos empresários. Falam de liberdade de uma forma deturpada, mas usam a crítica de fato para apoiar os atos antidemocráticos.
Terá legitimidade para criticar juridicamente a busca ou a condenação do deputado quem desde o primeiro momento rechaçar os atos, as palavras antidemocráticas. Para usar o direito é preciso antes de tudo portar-se dentro do direito.
A hipocrisia está em atacar o STF quando esse age defendendo a democracia ao usar argumentos de inexistência de foro ou razoabilidade na busca e ao mesmo tempo não ter se levantado contra a condução coercitiva do ex-presidente. Criticar uma busca e achar normal a imparcialidade com que Moro agiu contra o ex-presidente Lula e depois o juiz ser nomeado ministro da Justiça de Bolsonaro. É preciso coerência e não usar subterfúgios para em nome de liberdade não defender palavras contra a liberdade, ou usar o direito como subterfúgio para ataques ao direito, que só sobrevive no sistema democrático.
Percebam que Batochio, que tem a posição de que a imunidade de Daniel de Silveira seria absoluta, inicia sua crítica a decisão da seguinte maneira: “Reprovo o que ele fez, execro o seu comportamento, repúdio as ofensas que ele lançou contra coram populo, publicamente contra o Supremo Tribunal Federal, reputo-o sem condições para exercer o mandato parlamentar…” (ConJur — Fernando Fernandes: Imunidade absoluta para parlamentar). A partir da ressalva em relação as palavras assume a legitimidade que Sobral Pinto teve para defender Prestes.
Não há algo mais grave no momento que vivemos na história do país do que a sistemática tentativa de corrosão de nossa democracia. A instabilidade constante com que o chefe do poder executivo incentiva ofensivas ao Supremo Tribunal, aos seus ministros. A sinalização constante de que pode não respeitar as urnas, a corrosão que coloca na legitimidade do sistema eleitoral ainda gritando em alto em bom som que é o chefe das Forças Armadas.
Para aqueles que usaram o argumento de crime impossível dos empresários em ataque a democracia as palavras e ações do presidente e a ligação dos empresários bolsonaristas com ele, e o fato de comemorarem o golpe de 1964, e divulgarem discursos historicamente atrasados de anticomunismo da década de 60, um marcartismo, torna o argumento de crime impossível inaplicável.
Fosse absolutamente impossível o mundo jurídico somado a empresários realmente nacionalistas não teriam se unido em fundamental movimento da Carta pela Democracia que colheu mais de 1 milhão de assinaturas. A Ordem dos Advogados do Brasil não assinou a carta sobre a justificativa de deixar pontes com o governo, divulgado nota apartada, mas agiu rápido em rechaçar a busca aos empresários.
Destaco as palavras de Patrícia Vanzolini, presidente da OAB-SP na USP, no dia 11 de agosto, dia da fundação dos cursos jurídicos no país e da leitura da Carta pela Democracia. Muitos brasileiros morreram, desapareceram e foram torturados no Brasil para que possamos chegar a esse momento de eleição e a Carta de 1988, a Constituição.
Somente uma eleição livre, respeitada, e a posse de um novo presidente da República pode devolver o país a normalidade necessária a aplicação do direito. Somente o pleno respeito a Constituição pode devolver a nossa democracia a normalidade necessária.
Quanto a busca a apreensão dos poucos empresários, a ordem de busca e de outras medidas restritivas serão objeto do devido processo legal. Certamente haverá bons advogados para a defesa. E caso realmente nada seja achado que não tenha as conversas desdobradas para ações concretas o tema será solucionado. Ao contrário, poderão responder por suas ações no Supremo, na Justiça eleitoral ou para onde o Supremo declinar a competência.
[1] XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
[2] Geopolítica da Intervenção (Geração Editorial, 2020) pag. 221
[3] Geopolítica da Intervenção (Geração Editorial, 2020) pag. 237
[4] ConJur – Supremo diz que inquérito das fake news deve prosseguir
Leave a Reply