Em questão de método, Jean-Paul Sartre discorre sobre o sentido de uma conduta humana e afirma que “as significações vêm do homem e de seu projeto, mas se inscrevem por toda parte nas coisas e na ordem das coisas” (1972, p. 127). O filósofo propõe uma reflexão pela qual tudo, a todo instante, é significante, resultando no fato de que essas significações revelam as características das pessoas e norteia suas relações através das estruturas da nossa sociedade. Assim, cada pessoa tem particular autoafirmação ao transcender sua situação precedente por meio do trabalho, de ações, de gesto concretos.
No campo prático do Direito há muita significação, espelhando as diversas áreas que segmentam o campo de atuação jurídico. É bem verdade que o profissional que se estabelece na advocacia pode ser um generalista, contudo a complexidade do Direito conduz à especialização em determinado ramo. É de notar que ao atentar-se às formulações do Direito atual falamos em complexidade, que conforme elucida Edgar Morin, é uma palavra-problema que se desvinculou do sentindo comum de complicação ou confusão. Para o autor, “a complexidade não compreende apenas quantidade de unidade e interações que desafiam nossas possibilidades de cálculo: ela compreende também incerteza, indeterminações, fenômenos aleatórios (…) mas não se reduz à incerteza, é a incerteza no seio de sistemas ricamente organizados” (2005, p. 35). É neste contexto que o deliberado aprofundamento do profissional do direito a um ramo ou temática entre ampla a gama de possibilidades de atuação em Direito se faz útil, consistindo em uma ferramenta para, na atuação prática, suplantar a desordem e ambiguidade que decorrem da complexidade.
Na advocacia, a especialização do profissional não é mera alocação em função ou cargo, mas uma atribuição de sentido à atuação profissional proveniente das escolhas feitas. A cada encruzilhada uma significação é atribuída aos rumos do profissional do direito, conforme a referência a Sartre acima, o trajeto tomado revela um sentido. Veja-se, a propósito, que desde o exame de ordem, que separa os bacharéis de direito dos advogados, o estudante é confrontado com a opção acerca de qual a área prestará o exame, o que implica (ao menos idealmente) em definir o campo com o qual se identificou ou decidiu trilhar.
Daí que por questões de afeto e afinidade o profissional do direito, sobretudo o advogado, é fatalmente identificado pela área com a qual exerce suas atividades com maior precisão. Os ramos são diversos; há advogados tributaristas, consumeristas, criminalistas, trabalhistas, e até áreas mais arrojadas como compliance, proteção de dados ou gestão jurídica de startups. São descrições que indicam que determinado profissional é razoavelmente adequado para a solução de demandas a respeito da área do Direito que (supostamente) dominam – a chamada especialização.
Oportuno fixar que ao aludir a circunstância de que dado profissional será adequado a auxiliar na resolução de uma demanda jurídica, em razão da sua expertise neste ou naquele tema, guardamos em mente a teoria interpretativa do Direito, consoante as palavras de Ronald Dworkin, para quem “o Direito é um empreendimento político, cuja finalidade geral, se é que tem alguma, é coordenar o esforço social e individual, ou resolver disputas sociais e individuais, ou assegurar a justiça entre os cidadãos e entre eles e seu governo, ou alguma combinação dessas alternativas” (2001, p. 239) e, portanto, tem o Direito como utilidade servir de instrumental para a resolução de problemas reais.
O direcionamento do advogado rumo a especialização temática para a qual decidiu conscientemente encontra relevante justificativa no cenário em que o Direito serve à resolução de problemas, isto porque aquele que procura um prestador de serviços para solucionar sua demanda será atendido de forma superior pelo profissional com afinidade no tema circunscrito ao problema para o qual busca representação jurídica. É assim na advocacia tal qual na medicina; uma dor de garganta pode ser tratada por clínico geral, mas receberá atenção mais qualificadas de um laringologista.
Esta premissa não poderia ser melhor retratada do que pelo seguinte escrito de Clarice Lispector em a hora da estrela: “que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho” (1996, p. 31). É dizer, na hipótese da advocacia, que o problema do cliente poderá ter chances de solução mais rápidas e eficazes se colocados sob a tutela de profissional que significou sua profissionalização no aprofundamento da solução a casos pertinentes à demanda que se apresentou. Aquilo que é simples, corriqueiro, a um advogado trabalhista pode ser tormentoso àquele cujo sentido profissional lhe trouxe prestígio na condição de advogado especializado em direito ambiental.
A aporia da qual tratamos está ligada à aflição correspondente à prática de atos profissionais complicados no contexto da complexidade do sistema jurídico por prestadores de serviços não devidamente qualificados. A situação problemática não poderá ser eliminada pela simples denotação técnica do profissional, embora seja possível que qualquer advogado possa atuar em qualquer caso na sistemática legal a inquietação prevalece ante a obrigação do advogado de prestar serviços apropriados àquele a quem representa.
Com efeito, não prejudicar interesse confiado a seu patrocínio é obrigação legal do advogado, porquanto emana da Lei 8.096/94 — o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. Corrobora ao mesmo raciocínio o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados ao estabelecer como dever do advogado empenhar-se, permanentemente, em seu aperfeiçoamento pessoal e profissional, a teor de seu artigo 2º, parágrafo único, inciso IV.
É a especialização que, nesta toada, exerce uma dupla função. A primeira é demonstrar à sociedade que o advogado está qualificado para prestar serviços dentro de determinado ramo do direito. E, ao mesmo tempo, a cada ressignificação dito profissional se constrói e reconstrói um prestador adequado a apresentar soluções a problemas específicos.
Importa ressaltar que a especialização não implica em meramente falar-se em pós-graduação, como pode parecer despercebidamente. Na realidade, o domínio e distinção em um dado serviços profissional reservado à advocacia é comprovado a partir de notória especialidade que decorra de desempenhos anteriores daquela prática ou ramo do direito, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica e tudo o mais que possa permitir constatar o sentido da atuação profissional e consequentemente inferir que o trabalho daquele advogado ou daquele escritório de advocacia é essencial e indiscutivelmente adequado à satisfação do objeto de um contrato específico. A particularização do que é compreendido como especialidade e expertise no campo da advocacia está, aliás, definida em detalhes no art. 3º-A do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil.
Na advocacia dirigir-se a uma especialidade é reconhecer os próprios valores e muito mais; é igualmente respeitar o cliente que busca soluções e, sobretudo, cumprir a função pública que a condição de advogado lhe impõe. Afinal, nunca é demais recordar o advogado presta serviço público e exerce função social (artigo 2º, §1º, do EAOAB), sendo indispensável à administração da justiça, defensor do Estado Democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social (art. 2º, do Código de Ética e disciplina da OAB), encargos que recomendam, com seriedade, o perene aperfeiçoamento profissional.
Referências:
DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad: Luiz Carlos Borges. São Paulo: Martins fontes, 2001.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. São Paulo: Record, 1996.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. 3ª ed. Tradução de Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2005.
SARTRE, Jean-Paul. Questão de Método. 3ª ed. Tradução Bento Prado Júnior, São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1972.
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