Desencarceramento em meio à pandemia

Em poucos dias a disseminação do Coronavírus tomou de assalto o Brasil e o mundo. Medidas como o isolamento social e quarentena vêm sendo aplicados como recomendação máxima, com o objetivo de evitar que o contágio pela doença cause colapso no já fragilizado sistema de saúde pública, circunstância que tem um sério potencial para gerar um número alarmante de mortes.

O isolamento social e a restrição ao comércio causam uma impressão de confinamento nas pessoas. Há, de fato, uma contingência à liberdade de ir e vir, mas que é justificada ante a proteção à vida e à saúde – evidentemente, ressalvada a cautela de ver garantida as liberdades e privacidade uma vez que seja ultrapassado o período de crise na saúde pública.

Conquanto a discussão sobre o isolamento do cidadão em atenção às recomendações de saúde reflitam na forma como estes utilizam sua liberdade de ir e vir, há uma parcela da população brasileira contra quem a liberdade foi retirada – aqueles que encontram-se à guarda do Estado nos estabelecimentos prisionais -, mas que ao invés de menos suscetíveis ao contágio enfrentam uma espécie de isolamento que torna-os ainda mais expostos à doença.

Ocorre que o sistema prisional brasileiro sofre com mazelas estruturais, das quais a superlotação é apenas a mais conhecida. Doenças graves e contagiosas, como a tuberculose e a sarna, são frequentes nos estabelecimentos como resultado do estado precário e inconstitucional dos estabelecimentos prisionais no Brasil.

Nas palavras no Excelentíssimo Ministro Marco Aurélio, no voto da ADPF n. 347, “no sistema prisional brasileiro, ocorre violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica. A superlotação carcerária e a precariedade das instalações das delegacias e presídios, mais do que inobservância, pelo Estado, da ordem jurídica correspondente, configuram tratamento degradante, ultrajante e indigno a pessoas que se encontram sob custódia. As penas privativas de liberdade aplicadas em nossos presídios convertem-se em penas cruéis e desumanas. Os presos tornam-se ‘lixo digno do pior tratamento possível’, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre. Daí o acerto do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, na comparação com as ‘masmorras medievais’”.[1]

É necessário chamar a atenção de que a pena de prisão priva o condenado de alguns direitos, conforme artigo 91, e seguintes, do Código Penal, dentre eles a sua liberdade, mas não retira a sua dignidade. Com efeito, não podemos esquecer que, nos termos do artigo 1°, da Lei 7.210/1984, a pena “tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.

Norberto Avena nos ensina que reinserção social do condenado ou internado “traduz a ideia de ofertar, durante a execução, os meios necessários a que os apenados e os sujeitos a medida de segurança possam alcançar a reintegração social”.[2]

No cenário que converge entre a atual pandemia e a precariedade do sistema penitenciário, a saúde dos detentos sofre grave revés. Embora a assistência à saúde do preso seja uma garantia estabelecida na Lei de Execução Penal, a realidade do atendimento de saúde ao preso é bastante deficiente. Some-se a isto que o sistema de saúde do país está à beira do colapso em razão do surto de Covid-19 e é fácil concluir que os cuidados de saúde nos estabelecimentos prisionais, tanto para prevenção quanto para tratamento, terão desafios ainda maiores.

Diante deste cenário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou, de maneira muito bem acertada a nosso ver, a Recomendação n. 62[3], em que o Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal, considerou a situação de pandemia, compatibilizando a necessidade de enfrentamento da emergência de saúde pública com a realidade do sistema prisional e socioeducativo.

A recomendação do Conselho Nacional de Justiça parte das premissas de que o Estado é garantidor da saúde das pessoas privadas de liberdade, que o coronavírus se propaga rapidamente em espaços de confinamentos, e de que o alto índice de transmissibilidade da doença denota um significativo risco de contágio nos estabelecimentos prisionais. Fatores estes que colocam em perigo a vida e a saúde dos custodiados e internados, bem como de todos os agentes públicos e visitantes dos estabelecimentos prisionais.

Das várias instruções que expostas pelo CNJ, chama a atenção a recomendação de que os magistrados, com vistas à redução dos riscos no contexto de disseminação do vírus, consideram a reavaliação das prisões provisórias. Isto é, na prática, deverá o juiz reavaliar a situação do preso para analisar a com novos olhos a possibilidade de retirá-lo do sistema prisional, ainda que com imposição de outras restrições diversas da prisão.

A instrução quanto a reavaliação de prisões provisórias orienta a priorizar pessoas que se enquadrem no grupo de risco, pessoas presas em estabelecimentos penais com ocupação superior à capacidade ou sem equipe de saúde, e pessoas submetidas a prisões preventivas há mais de noventa dias por crimes sem violência ou grave ameaça.

No mesmo sentido, recomenda o CNJ que os magistrados com competência criminal suspendam o dever de apresentação periódica ao juízo para aqueles que se encontram em liberdade provisória ou suspensão condicional do processo, com vistas a evitar que estas pessoas tenham de se deslocar e entrar em contato com os servidores do judiciário.

E recomenda, ainda, a máxima excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva. Ou seja, quer que os juízes opinem pela realização de novas prisões apenas no caso de ser absolutamente necessário, sempre em mente as recomendações das autoridades médicas e sanitárias quanto ao espaço prisional.

Importa frisar que as medidas visam proteger mais do que aquelas pessoas presas ou internadas, mas protegem os trabalhadores do sistema prisional, os profissionais de saúde, e todos os envolvidos nas atividades envolvendo unidades prisionais.

Por certo que tal recomendação foi alvo de críticas, a exemplo daquela tecida pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública, que afirmou em sua conta no Twitter que “não podemos enfrentar junto com a epidemia do coronavírus uma crise na segurança pública. É preciso, com todo o respeito, que os magistrados examinem os casos individuais e limitem as solturas a necessidades demonstradas”.[4]

Ao que parece, em seu discurso, o Ministro da Justiça prefere sustentar um imaginado risco à segurança pública, sustentando em seu exercício de imaginação que a segurança deve prevalecer sob o direito à vida. Contudo, a segurança pública deveria ser garantida pelo próprio Estado, através de medidas que vão muito além do encarceramento em massa, sobretudo em razão da já apresentada finalidade da pena de prisão.

Outrossim, um desembargador do estado de São Paulo, no bojo de um habeas corpus[5] achincalhou um requerimento formulado pela Defensoria Pública consistente na conversão de uma pena privativa de liberdade em prisão domiciliar. De acordo com o relator “a questão relativa ao COVID-19 tem sido alegada de forma tão indiscriminada que sequer mereceria análise detalhada”, afirmando que apenas três pessoas, que atualmente habitam a estação especial internacional, não estariam sujeitas à contaminação pelo coronavírus.

Nada obstante os desarrazoados posicionamentos acima descritos, é de se destacar que a população carcerária é diariamente exposta ao risco de contaminação. Aliás, já há notícia da morte de um agente penitenciário no estado do Rio de Janeiro em decorrência do COVID-19[6]. Assim, é imperioso consignar que que a assistência médica é um direito do recluso e um dever do estado, conforme artigos 14 e 41, VII, da Lei de Exceção Penal, bem como pelo artigo 5°, XLIV, da Constituição da República.

Ocorre que inobstante o dever estatal de garantir saúde aos reclusos, a já mencionada ADPF 347 fez constar que o Estado efetivamente é falho neste dever.

Nessa esteira é imprescindível trazer à baila que “o dever constitucional de proteção ao detento somente se considera violado quando possível a atuação estatal no sentido de garantir os seus direitos fundamentais, pressuposto inafastável para a configuração da responsabilidade civil objetiva estatal, na forma do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal”[7]. Assim, há responsabilidade civil do Estado com relação à população carcerária, de modo que o não atendimento à recomendação do Conselho Nacional de Justiça pode gerar ato omissivo passível de indenização.

Vivemos em um Estado Democrático de Direito, não em um estado inquisitório do século XV, nossas casas de custódia não são masmorras onde se administram suplícios e penas de morte veladas, daí a Resolução do CNJ é oportuna orientação de seriedade na administração pública.

O combate ao coronavírus não acontece sem um enfrentamento robusto e preciso que enxergue, inclusive, a situação dos estabelecimentos prisionais. Acreditamos, portanto, que ao acatar as recomendações do CNJ o judiciário brasileiro se reveste da dignidade que dele se espera.


Notas

[1] ADPF 347 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016

[2] AVENA, Norberto. Execução Pena, 5ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2018. Edição Digital, p. 25

[3] Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf , acesso em 14/04/2020

[4] Disponível em: https://twitter.com/sf_moro/status/1244743806622236672 , acesso em 14/04/2020

[5] Autos n. 20.1058-72.2020.8.26.0000

[6] https://m.extra.globo.com/casos-de-policia/agente-penitenciario-do-rio-morre-com-suspeita-de-covid-19-24370598.html?utm_source=WhatsApp&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilhar (disponível em 14/04/2020)

[7] RE 841526, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 30/03/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-159 DIVULG 29-07-2016 PUBLIC 01-08-2016

Artigo publicado no Justificando.

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