Protagonismo isolado da ISO 19600 em compliance não é apropriado

O conturbado cenário político, econômico e jurídico, tanto no Brasil como no mundo atual, fez florescer a noção de compliance e despontar a carência de ética no ambiente corporativo. Hoje, as empresas sérias conhecem o conceito de compliance e sua intrínseca relação com a ética corporativa. E mais, aquelas empresas que compreenderam a necessidade de se adequarem à novel cultura de cumprimento implementaram o compliance, ou estão interessadas em pesquisar o assunto para concretizar seu próprio programa de compliance.

Há também empresas que estão obrigadas a desenvolver programas de compliance, seja a fim de cumprir com obrigações legais (como aquelas destinadas a atividades específicas descritas na lei de lavagem de capitais) ou em decorrência de Acordos de Leniência, que podem prever o comprometimento da empresa com a implantação de programa de compliance.

O Acordo de Leniência na seara anticorrupção consiste em um pacto de cooperação de pessoas jurídicas com órgãos estatais, para fortalecimento de elementos capazes de contribuir com procedimentos investigativos referentes a infrações à Lei da Empresa Limpa, em troca de redução das sanções pecuniárias e restritivas de direito. Importa atentar que, além da obtenção de informações sobre ilícitos relevantes à investigação, também é escopo do Acordo de Leniência trazer a empresa à higidez ética, a fim de que a pessoa jurídica empreenda suas atividades com integridade

Na senda de orientar o encargo de estabelecer a estrutura de integridade na empresa, várias são as ferramentas utilizadas pelos profissionais de compliance para instruir e inspirar um programa de compliance (ou programa de integridade na terminologia da Lei 12.846/2013 – a Lei da Empresa Limpa). A observação da experiência internacional é uma dessas técnicas para conceber um programa de compliance adequado à realidade corporativa das empresas.

Portanto, parece razoável que a obrigação de implantar programa de compliance contemplada nos Acordos de Leniência façam menção a padrões internacionais. Bem assim, Acordos de Leniência firmados com o Ministério Público Federal no seio da operação “lava jato” especificam sobre a obrigação relacionada ao programa de compliance deve atender aos padrões internacionais da norma ISO 19600:2014 [1].

Vale ressaltar que a Organização Internacional para Padronização (ISO2) é entidade não-governamental cujo objetivo é criar normas que facilitem o comércio e promovam boas práticas de gestão. Essa entidade aprova normas internacionais em todos os campos técnicos, de modo que as técnicas normatizadas estejam padronizadas e, dessa forma, a aplicação da técnica seja harmoniosa e compreensível mesmo que empregada em diferentes países e culturas.

Nesse sentido, a ISO 19600:2014 serve de padrão internacional para os programas de compliance. A intenção da norma é auxiliar as organizações a aprimorar e fortalecer as estruturas de compliance das corporações. Apresenta para tanto orientações universais e procedimentos padrões de política de compliance, que podem ser estabelecidos para na implementação, avaliação, manutenção e desenvolvimento dos programas e para fixar bons princípios de governança.

Comentada norma ISO foi concebida como uma mera diretriz, e não um sistema de gestão certificável, como é a conhecida ISO 9000 sobre gestão da qualidade em corporações que permite, caso a empresa se submeta com sucesso a uma entidade de certificação, a emissão do certificado de conformidade ISO 9001.

Diante desse quadro, a ISO 19600 pode ser considerada como uma fonte, mas não é ideal alçar a norma a posição de destaque como ferramenta isolada de orientação a um programa de compliance efetivo, tal como faz o Acordo de Leniência elaborado pelo Ministério Público Federal.

O texto do Acordo de Leniência firmado com a empresa Andrade Gutierrez Investimentos em Engenharia, empreiteira notoriamente envolvida nos procedimentos oriundos da operação “lava jato” ilustra a situação narrada. Ressalva-se, contudo que se trata de um Acordo de Leniência na seara criminal sui generis e que, até o momento, sequer a Lei da Empresa Limpa (Lei 12.846/2013) prevê o Ministério Público como órgão competente para a celebração do acordo.

Cláusula 7ª. A COLABORADORA compromete-se a: (…) j) implantar programa de compliance segundo os padrões internacionais da Norma ISO 19600:2014, a ser iniciado no prazo de 90 (noventa) dias da homologação do presente Acordo de Leniência, cabendo à COLABORADORA apresentar o cronograma de implantação do programa no prazo de 120 dias”. (Processo n. 5016683-68.2016.404.7000/PR, em tramitação na 13ª Vara Federal de Curitiba)[3]

De fato, a ISO 19600 serve de guia, porém ela não contém requisitos específicos a serem observados pela empresa, conforme descreve seu próprio texto.[4]

Diretrizes, guias e instruções sobre a estruturação de programas de compliance editados por órgãos e instituições brasileiros podem auxiliar as empresas brasileiras com muita propriedade e de forma mais completa.

Aliás, documentos como o Programa de Integridade – Diretrizes para Empresas Privadas, divulgado pelo Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle (antiga Controladoria Geral da União) e o Guia de Programas de Compliance, do Conselho Administrativo de Defesa Econômica[5] foram criados considerando a realidade brasileira. Isso implica, sobretudo, em dizer que tais documentos se pautaram no atendimento à legislação brasileira específica que se relaciona às questões de compliance.

De fato, é vantajoso que as prescrições a servir de suporte para uma empresa implementar ou aprimorar seu programa de compliance estejam em harmonia com a Lei da Empresa Limpa, com a Lei de Lavagem de Capitais, com a Lei Concorrencial, entre outras.

Outra menção digna de nota é a edição de guias de orientação por entidades relacionadas a atividades específicas, ou seja, a obtenção de suporte técnico de órgãos que conheçam as nuances de determinado nicho empresarial. Para ilustrar pode-se citar o guia Ética e Compliance na Construção elaborado pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), que tem como objetivo “fortalecer o segmento e a qualidade dos relacionamentos com seus públicos de interesse”[6].

É prudente que a empresa busque em entidades preocupadas com a sua atividade específica o material de apoio quanto à ética, o combate à corrupção e avaliação de riscos, pois estas servirão à consecução dos fins do programa de compliance de maneira individualizada.

Conquanto diretrizes mais genéricas podem auxiliar na estruturação e formalização de Programas de Compliance, em se tratando da elaboração de conteúdo e adequação à lógica do mercado e do cumprimento de normas locais e internacionais aplicáveis, é imperioso que o profissional de compliance experiente se valha de instrumentos mais especializados à área quanto possível.

É essencial compreender que gerenciar um compliance é muito mais do que apenas satisfazer alguns critérios. A mera formalização de preenchimento dos requisitos legais não é suficiente quando a finalidade é estar em compliance, conduzido por um programa de integridade que seja efetivo.

Por isso, o desígnio de criar ou incrementar um programa de compliance deve estar particularmente comprometido com a individualidade da empresa, mormente quando a empresa aceita a obrigação de compliance a partir de uma imposição fixada em Acordo de Leniência.

A individualização do programa de compliance corresponde à especialização das regras e técnicas de compliance que contemplem os riscos específicos da atividade de determinada empresa. Uma implementação genérica ou eminentemente protocolar, em que, por exemplo, atenta-se exclusivamente em protocolo padrão internacional, arrisca-se a gerar um programa inadequado que pode contribuir em afastar ainda mais a empresa da integridade corporativa tão clamada na atual sociedade.

Assim, é oportuno questionar se a menção à norma ISO 19600 é adequada, para o que somos obrigados a responder com cautela. Isto porque a norma não é suficiente. Seguir as orientações da ISO é técnica que auxilia as empresas no aprimoramento de suas estruturas de compliance, e certamente sua utilização como fonte de inspiração é benéfica. De ressaltar, ainda, a principal vantagem da ISO – a uniformização da técnica utilizada na empresa a empresas com atuação no mercado internacional (onde quer que a ISO 19600 tenha servido de parâmetro).

Entretanto, trazer a norma ISO como referência isolada não é ideal. Conferir um protagonismo que não é apropriado à ISO 19600 pode contribuir à criação de programas de compliance superficialmente adequados, que tenham aparência de eficazes a obscurecer deficiências práticas. As empresas devem compreender que a realização de programas de compliance reais não decorre da satisfação a um ou outro documento, mas se constrói a partir de um trabalho sério que incorpore várias técnicas e esforços. Logo, a menção de documento isolado em um Acordo de Leniência acaba por trazer mais prejuízos do que benefícios, mormente porque a sugestão de limitação à uma instrução pode iludir ao invés de amparar a empresa leniente

Por fim, devemos frisar a importância de resguardar nas tratativas em que se propõe a implementação de programas de compliance, e aqui nos referimos sobretudo aos Acordos de Leniência, a percepção de que a cultura de integridade e cumprimento da legislação se realiza pela congregação de várias técnicas e emprego de diversos instrumentos, sempre buscando a efetividade do programa de compliance com atenção às atividades e riscos específicos das empresas.


1 Cf. “o acordo também estabelece a colaboração da empreiteira para esclarecer os ilícitos e apresentar provas e ainda a implantação de programa de compliance segundo padrões internacionais da Norma ISO 19600:2014.” In: Multa do Acordo de Leniência da Andrade Gutierrez será paga em 12 anos e não engloba CGU. Publicado por Lec News. Disponível em: http://www.lecnews.com/web/multa-do-acordo-de-leniencia-da-andrade-gutierrez-sera-paga-em-12-anos-e-nao-engloba-a-cgu-2/. Acesso em 2 de junho de 2016.

2 A expressão ISO originou-se de palavra grega que significa igualdade, e foi por isso foi escolhida como designação da organização de padronização de normas técnicas com alcance internacional

4 “This international standard does not specify requirements, but provides guidance on compliance management systems and recommended practices” ISO 19600:2014. Disponível em https://www.iso.org/obp/ui/#iso:std:iso:19600:ed-1:v1:en. Acesso em 2 de junho de 2016.

5 O guia formulado pelo CADE discorre sobre noções básicas, como a definição de compliance e seus benefícios até questões práticas como o tone from the top¸ técnicas para percepção de riscos e métodos para monitoramento do programa, sempre com atenção a condutas anticompetitivas e a Lei de Defesa da Concorrência. O texto integral do guia está disponível em: http://www.cade.gov.br/acesso-a-informacao/publicacoes-institucionais/guias_do_Cade/guia-compliance-versao-oficial.pdf

6 “CBIC disponibiliza Guia sobre Ética e Compliance na Construção”. Publicado pelo Instituto Compliance Brasil. Disponível em http://compliancebrasil.org/cbic-disponibiliza-guia-sobre-etica-e-compliance-na-construcao/.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico

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