Não ao fornecimento de senhas em diligências de busca e apreensão
Por Fernando Augusto Fernandes e Guilherme Lobo Marchioni
As cenas de diligências de busca e apreensão conduzidas pela polícia povoam o imaginário nacional, de tão repetidas e alardeadas nos jornais da manhã à noite. Já há alguns anos, especialmente com a sensação televisa conhecida como operação “lava jato”, a prisão e apreensão de bens de investigado despertando a nação é ponto alto da audiência, trazendo um momento em que a imagem é mais importante do que o direito.
Muitas questões complexas a respeito do Direito Penal e Processual Penal orbitam a realização da diligência de busca e apreensão, sendo bastante relevante recordar que o alvo, o investigado, é pela própria natureza do ato surpreendido e se vê abalado pelas circunstâncias de receber a “visita” dos agentes do Estado. Embora devesse ser razoável crer que aqueles responsáveis por exercer o poder do Estado se comportem estritamente no exercício e cumprimento das normas do Estado democrático de Direito, é bastante conhecida a ocorrência de situações em que afrontas aos direitos do investigado são cometidas aproveitando-se da sua surpresa e do desconhecimento de suas garantias.
É nesse cenário de busca e apreensão que transcorre o cumprimento de mandados de prisão e a apreensão de objetos de interesse à investigação, quando é comum a apreensão de equipamentos eletrônicos — entre os quais telefones e computadores de uso do alvo da operação.
Esses equipamentos eletrônicos se tornaram a mais importante fonte de elementos probatórios atualmente. Entretanto, a apreensão do celular é apenas um primeiro passo, pois que normalmente protegidos por senhas e códigos, nem sempre a investigação obtém de pronto o acesso aos dados armazenados.
Bem por isso, durante a busca e apreensão o investigado é por vezes confrontado com uma certa dose de coação para fornecer suas senhas. Ora, o investigado é facilmente acuado sob afirmações de que sua situação jurídica pode piorar se não cooperar entregando senhas, ainda mais sob o receio de ser preso ao fim da diligência de busca. É, com efeito, fácil verificar a capacidade de ludibriar o alvo da busca a renunciar a garantias que lhe são inerentes como cidadão — como o direito de não produzir prova contra si.
Situação referente a esse contexto foi enfrentada recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça em votos divergentes proferidos no Habeas Corpus nº 580.664. Caso em que o alvo da busca e apreensão resistiu e decidiu não fornecer senhas de seus equipamentos, porém o juízo determinou a intimação do investigado com o fim de obrigá-lo a entregar senha de seu dispositivo móvel. Coube aos ministros, portanto, decidir se tal intimação corresponde a violação ao direito ao silêncio como decorrência da garantia de não produzir prova contra si mesmo.
Instaurou-se debate no STJ em razão de raciocínio do relator, ministro Nefi Cordeiro, que entendeu possível impor o acesso da autoridade policial à senha de desbloqueio de aparelhos como “decorrência lógica” da validade da ordem de busca e apreensão. Tendo se oposto a esse entendimento, o ministro Sebastião Reis, que concluiu pela ilegalidade da decisão da autoridade que impõe ao investigado fornecer a senha, justamente sob o fundamento de que ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo, a declarar contra si mesmo, ou seja, a autoincriminar-se. Nesse precedente a divergência surtiu efeitos positivos, tendo o ministro relator revisitado seu voto para consignar retificação no seguinte sentido: “Retifico o voto, pois o tribunal de origem pode solicitar alguém à realização de provas, mas ninguém é obrigado a produzir provas contra si, conforme postulado constitucional (…) é válida a ordem judicial de entrega das senhas dos dispositivos eletrônicos apreendidos, mas o réu não é obrigado a fornecer essas senhas, e nem deve sofrer sanções” (STJ, Habeas Corpus nº 580.664, rel. min. Nefi Cordeiro, j. 20/10/20).
O conflito a respeito da entrega ou não de senha de dispositivo se resolve, portanto, pela aplicação do direito fundamental contemplado na garantia judicial da vedação à autoincriminação. O investigado não pode ser obrigado a tomar um comportamento ativo que auxilie a investigação, e da negativa em conceder senha de celular ou de equipamento não pode advir qualquer prejuízo ao acusado.
O Superior Tribunal de Justiça, entretanto, não apreciou questão que deveria ser central à discussão. Concluir que a garantia processual deve ser respeitada é o mínimo que se espera do judiciário, sendo necessário avançar para enfrentar se o investigado em casos dessa espécie foi informado do direito a não fornecer a senha, como corolário da garantia à não autoincriminação. Ou poderia o agente do Estado forçar o investigado a entrega da senha de dispositivos eletrônicos ludibriando-o a partir da omissão de seus direitos?
Essa celeuma evoca mais uma cena icônica, agora dos filmes policiais americanos, quando um policial recita mecanicamente enquanto apreende um suspeito, “you have the right to remain silent. Anything you say can be used against you in court”, com isso afirmando a garantia ao silêncio e fazendo esse direito ser comunicado ao cidadão. Trata-se da realização do Miranda warning, fórmula falada que serve para garantir a admissibilidade de depoimentos colhidos pelos oficiais da polícia nos Estadps Unidos, isso porque no caso de não ser informado ao acusado seus direitos o depoimento pode ser suprimido do procedimento por afronta ao devido processo legal.
No Brasil é igualmente assegurado o direito ao silêncio, estando consagrado no artigo 5º, LXIII, da CFRB/88 e no Pacto de San José (artigo 8.2.g.). Sobre o tema o Código de Processo Penal é preciso, impondo ao juiz o dever informar ao acusado, quando do seu interrogatório, sobre o direito a permanecer calado e de não responder às perguntas que forem formuladas. É esse o texto do artigo 186 da Lei Processual Penal, que, assim como faz fórmula do Miranda warning, denota a obrigação do Estado de informar o direito referente à vedação à autoincriminação e o decorrente direito ao silêncio para o cidadão submetido ao processo.
Corrobora com essa lógica o texto do artigo 289-A, §4º, do CPP, que traz a regra pela qual “o preso será informado de seus direitos, nos termos do inciso LXIII do art. 5º da Constituição Federal”. Ao oferecer ao acusado o conhecimento do seu direito a não se autoincriminar e de que seu silêncio não importará em prejuízo, o Estado assegura a comentada garantia judicial.
É interessante ressaltar que foi extirpado do Código de Processo Penal a antiga redação do artigo 186 que asseverava a possibilidade do silêncio do réu ser interpretado em prejuízo de sua defesa. Com a retirada da interpretação negativa do texto legal não há dúvidas sobre a impossibilidade do silêncio do investigado ser levada em consideração pelo judiciário para lhe prejudicar. E o mesmo deve ser dito quanto a seu silêncio durante uma diligência de busca e apreensão, não é razoável que sofra ameaças pelos agentes do Estado se decidir não cooperara com a investigação no momento da busca.
A jurisprudência do STF é pacífica no sentido de salvaguardar o direito ao silêncio durante a busca e apreensão, ao que ilustra precedente que denota a necessária certificação no auto da diligência do alerta sobre o direito do investigado: “Há a violação do direito ao silêncio e a não autoincriminação, estabelecidos nas decisões proferidas nas ADPFs 395 e 444, com a realização de interrogatório forcado, travestido de “entrevista”, formalmente documentado durante o cumprimento de mandado de busca e apreensão, no qual não se oportunizou ao sujeito da diligência o direito a prévia consulta a seu advogado e nem se certificou, no referido auto, o direito ao silêncio e a não produzir provas contra si mesmo” (STF, Rcl 33.711, rel. min. Gilmar Mendes, j. 11/6/19).
No mesmo sentido, o ministro Sepúlveda Pertence, ao fundamentar julgado sobre a questão, asseverou que “o direito à informação da faculdade de manter-se silente ganhou dignidade constitucional, porque instrumento insubstituível da eficácia real da vetusta garantia contra a autoincriminação que a persistência planetária dos abusos policiais não deixa perder atualidade”, concluindo que “a omissão do dever de informação ao preso dos seus direitos, no momento adequado, gera efetivamente a nulidade e impõe a desconsideração de todas as informações incriminatórias dele anteriormente obtidas, assim como das provas delas derivadas” (STF, HC 78.708, rel. min. Sepúlveda Pertence, h. 9/3/99).
A partir do mesmo raciocínio, importa chamar atenção a esse imprescindível pressuposto da garantia judicial do acusado: eis que não basta a legislação conferir o direito ao silêncio ao investigado e o Judiciário o reconhecer, mas é salutar que esse direito seja comunicado ao cidadão, bem por isso a legislação a respeito expressamente afirme a necessidade de informar ao preso (e, consequentemente ao acusado) no que é corroborado pela jurisprudência da Corte Constitucional.
É o fato concreto que os esforços para a realização do devido processo legal devem, no ponto sobre o fornecimento de senhas de equipamentos eletrônicos apreendidos em busca e apreensão, atentar ao que tem passado despercebido: as autoridades policiais deveriam advertir o sujeito do seu direito de não produzir prova contra si mesmo, que inclui a não entrega de senhas, desde o primeiro contato nas famigeradas diligências de busca, e tal alerta dos direitos do investigado precisa ser devidamente registradas nos autos. De modo que a autoridade pública, antes de pedir senhas de equipamento eletrônicos, tem o dever de cientificar o investigado de suas garantias individuais, entre as quais o direito de não fazer prova contra si mesmo que é a extensão do direito de permanecer calado.
Embora seja razoável a conclusão que reconhece ao Judiciário a opção de requerer ao investigado ou acusado que forneça a senha de seus dispositivos apreendidos, é pressuposto que o Estado informe ao cidadão do seu direito ao silêncio e cientifique-o da inexistência de qualquer prejuízo no caso de decidir não fornecer elementos que possam ser utilizados pela acusação. É imprescindível que o investigado que decida fornecer senhas de equipamento, ou realizar qualquer comportamento que possa ser utilizado contra si, o faça a partir de uma decisão devidamente informada do seu direito ao silêncio; sem tal conhecimento não há cooperação, mas, sim, uma afronta ao direito à não autoincriminação que resulta na nulidade de provas obtidas sem observância às circunstâncias que concretizam o direito ao silêncio.
Artigo publicado no Conjur em 27 de janeiro de 2021
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