Reflexões acerca dos fundamentos do Direito Penal a partir do exemplo do bode expiatório

Artigo publicado na Revista Liberdades nº 29, publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

Resumo: A partir de exemplos hipotéticos de ocorrência de bode expiatório, empreende-se reflexões sobre as teorias da pena. Primeiramente, refletindo-se sobre por que o bode expiatório é injusto. A partir dessa construção, verifica-se as consequências para a elaboração de uma adequada teoria da pena. Por fim, expõe-se a ponto de partida necessário para uma teoria da pena que respeite postulados de justiça.

Introdução

“Se fosse possível os homens promoverem seus
interesses transformando alguns semelhantes
em bodes expiatórios e se me pedissem
que me imolasse pelo bem de criaturas que
querem sobreviver com meu sangue, se
me pedissem para servir os interesses da
sociedade separadamente dos meus, acima
dos meus, em detrimento dos meus, eu me
recusaria, rejeitaria essa possibilidade como
o mal mais abjeto de todos, lutaria contra ela
com todas as minhas forças, lutaria contra
toda a humanidade, mesmo que só me restasse
um minuto de vida antes de ser assassinado
– lutaria na absoluta convicção de que estaria
lutando com a justiça ao meu lado, de que
um ser humano tem o direito de existir. Que
não haja mal-entendidos a meu respeito.
Se atualmente meus semelhantes, que se
autodenominam “o público”, acreditam que
para seu bem é necessário haver vítimas, então
eu digo: o público que se dane, não contem
com a minha colaboração!” (76).

As linhas de pensamento denominadas funcionalistas, que têm predominado no moderno debate do direito penal, caracterizam-se por conferir um viés preventivo à tutela penal (77). Delineia-se um norte e orienta-se os institutos das teorias do delito e da pena com vistas ao objetivo traçado. O motivo que gera essa linha de pensamento é de ordem lógica: a tutela penal deve justificar-se perante os cidadãos, respondendo por que os recursos do contribuinte devem ser direcionados à movimentação da máquina estatal pela via jurídico-penal. Além disso, é preciso dizer aos cidadãos os motivos do emprego de um instrumento altamente incisivo sobre as liberdades individuais. Portanto, as linhas preventivas sustentam que a intervenção estatal pela via penal deve ter um fundamento de utilidade. As teorias preventivas têm hoje tamanha força e receptividade, que chegam a ser o fundamento de institutos do direito contemporâneo, como, por exemplo, o da colaboração premiada (78).

Por outro lado, é preciso ter em mente a natureza qualificada da resposta penal: um indivíduo sofre uma pena. E por essa imposição de pena, o Estado não deve justificar tal resposta exclusivamente a partir de uma perspectiva coletiva, sendo ainda mais importante responder ao próprio apenado o porquê da sanção penal. Caso contrário, estar-se-ia instrumentalizando o indivíduo e, via de consequência, violando o postulado kantiano do homem como um fim em si mesmo.

Para refletir sobre as modernas proposições de viés preventivo, recorre-se à figura do bode expiatório (79). E é explorando o caráter indesejado da ocorrência de um bode expiatório que se pretende, nesta sede, desenvolver reflexões sobre os fins da pena, dando um especial enfoque às teorias da prevenção geral. Primeiramente, será apresentado um exemplo-base de ocorrência de bode expiatório com o fim de, em seguida, fazer sucessivas alterações no caso, visando a refletir sobre o problema à luz das teorias preventivas da pena (2). Após, será exposto o conteúdo do injusto de um bode expiatório (3), para, assim, concluir as consequências das reflexões anteriores à teoria da pena (4). Por fim, serão dedicadas algumas linhas ao ponto de partida que deve guiar uma adequada teoria da pena: o individualismo normativo (5).

1. O Caso Examinado
O presente estudo parte de um ponto de partida intuitivo: a injustiça dos casos de bode expiatório e, por conseguinte, que tais hipóteses são indesejadas e devem ser evitadas. O caráter intuitivo de tal premissa não pode constituir per se uma falha de método. Em realidade, ocorre o inverso, pois tal ponto de partida proporciona um duplo ganho: a oportunidade de falsear a hipótese inicial e, ao mesmo tempo, refletir sobre os fins da pena.

Para isso, é preciso um exemplo-base e, partindo da premissa de que a ocorrência de um bode expiatório é algo indesejado, serão deduzidas as razões que podem fundamentar esse pressuposto. Será preciso incrementar paulatinamente a complexidade do problema, motivo pelo qual haverá variações do exemplo-base, que serão apresentadas em ordem crescente de complexidade.

O exemplo-base é simples: X, Y e Z, funcionários da Empresa P, estão sendo investigados no bojo do programa de compliance da citada empresa. X e Y são detentores de cargos importantes para a atividade do ente coletivo, enquanto Z realiza um trabalho fungível e facilmente substituível. Por esse motivo, os agentes de compliance da empresa decidem simular uma investigação, com o fim de proteger os interesses de P, apresentando uma notícia-crime ao Ministério Público somente contra Z, blindando, assim, X e Y.

1.1. Variação 1: O Bode Expiatório É Inocente
Na primeira variação do exemplo-base, ocorre que o bode expiatório Z é inocente. Ele não participou de nenhuma atividade delituosa, tampouco tinha ciência de quaisquer irregularidades, realizando suas atividades laborais sem gerar prejuízos. Z foi escolhido como bode expiatório exclusivamente por motivações de utilidade: era a escolha menos onerosa para a Empresa P, nos cálculos de seus agentes de compliance. Com as evidências deturpadas, o Ministério Público fora induzido a erro, oferecendo denúncia contra Z, que, ao final do processo, foi condenado.

Aqui, o caso é simples, pois a injustiça é evidente, ocorrendo a hipótese que causa mais arrepios a um jurista: a condenação e punição de um inocente (80). Mas não só tal situação é odiosa, como também prejudicial a partir do ponto de vista consequencialista (81): não somente um inocente foi punido, como também os verdadeiros culpados permaneceram impunes. Isso significa que também é possível negar a legitimidade desse cenário a partir de pressupostos de prevenção: não se puniu os verdadeiros autores da atividade delituosa, assim como não se conseguiu fazer nada para que tal atividade cessasse. Além disso, pode-se arguir que há o risco de posterior descoberta da responsabilidade dos outros agentes e do esquema criminoso, o que colocaria em xeque a crença, no plano fático, na vigência da normaa. O fim preventivo, dessa forma, não foi atingido.

Aparentemente, já há motivos suficientes para confirmar o ponto de partida intuitivo deste trabalho: na variação 1, a ocorrência de bode expiatório não pode ser defendida. Em resumo, este hipotético caso possui, então, um duplo desvalor: o Estado falhou tanto da perspectiva deontológica (82) quanto do ponto de vista consequencialista. No entanto, esse cenário ainda não é apto para esgotar per se o assunto, sendo preciso alterar a narrativa.

1.2. Variação 2: O Bode Expiatório É Culpado
Desta vez, o bode expiatório Z é culpado. Isso significa que o indivíduo punido participou da empreitada criminosa em conjunto com os agentes encobertos pelo programa de compliance da Empresa P. Disso deriva a constatação de que o desconforto gerado por esse cenário não está motivado pela condenação de Z isoladamente, mas sim pela não punição concomitante dos agentes X e Y. Portanto, pode-se retirar da avaliação a injustiça inerente à condenação de um inocente.

Por outro lado, um observador que se guie a partir de premissas de prevenção ainda pode arguir a inadequação do fato aos fins perseguidos: todos os pressupostos consequencialistas inerentes à não realização (ou potencial não realização) das finalidades preventivas do sistema penal continuam presentes. Dessa forma, o defensor de um direito penal puramente preventivo ainda pode queixar-se desse cenário de bode expiatório.

1.3. Variação 3: A Atividade Criminosa No Bojo Da Empresa É Encerrada
Agora é o momento de incrementar significativamente a complexidade do exemplo. Não só o bode expiatório é culpado, mas X e Y decidem cessar permanentemente com a atividade criminosa, temerosos dos riscos de serem descobertos numa hipotética investigação futura. Os agentes, tendo em vista o fato de não terem sido responsabilizados somente por causa do bode expiatório, decidem não mais assumir riscos e prosseguir com uma atividade profissional sem delitos.

Neste exemplo, pode-se arguir que um certo fim preventivo foi, de fato, alcançado: não há mais delitos da mesma natureza ocorrendo na empresa P. É possível, portanto, afirmar algum êxito preventivo no caso concreto, apesar da ocorrência de um bode expiatório. Entretanto, o defensor de um direito penal preventivo ainda poderia alegar os riscos de descobrimento futuro dos fatos criminosos de X e Y, o que poderia violar a confiança do cidadão na vigência da norma. Além disso, poder-se-ia questionar se as pessoas que tiveram ciência desse fato se sentiriam estimuladas a fazer o mesmo, desde que pudessem repetir as mesmas circunstâncias que ocorreram nessa variação do exemplo.

Assim, ainda pode-se defender a inadequação do bode expiatório sob a ótica da prevenção.

1.4. Variação 4: Todas As Provas Foram Eliminadas
Agora, além de todas as variações já ocorridas, não há mais o risco de descoberta futura: todas as provas foram devidamente eliminadas. O tempo passou tanto que todos os agentes, assim como eventuais testemunhas, já faleceram, com a exceção de X e Y. Considere-se, ainda, que o fato ainda não se encontra prescrito. Não há a possibilidade de os cidadãos descobrirem a ocorrência do bode expiatório (83).

Se tudo isso ocorrer e nenhum óbice de natureza consequencialista for possível, o defensor de um direito penal puramente preventivo não terá outra opção senão aceitar a ocorrência do bode expiatório como algo adequado neste caso. Ou seja, aqui há três opções: uma primeira é tomar um posicionamento contra a intuição inicial da injustiça da ocorrência de bode expiatório e aceitar hipóteses em que este possa acontecer. Os outros dois caminhos têm um ponto em comum: rejeitar um direito penal puramente preventivo. Um deles, mais radical, será optar por excluir do direito penal qualquer viés de prevenção. Um segundo, mais moderado, será reconhecer que o direito penal persegue fins de prevenção, mas que tais fins não podem ser absolutos, ou seja, não se pode aceitar um sistema penal exclusivamente preventivo.

2. Sobre A Injustiça Do Bode Expiatório
O primeiro passo a partir de agora será demonstrar por que a ocorrência de um bode expiatório é algo injusto e deve ser absolutamente indesejado. Logicamente, devido ao caráter categórico da posição tomada contra o bode expiatório, os fundamentos precisarão ter tamanha força argumentativa de modo a sustentar a pretensão de vigência universal dessa assertiva (84). Em outras palavras, os fundamentos, aqui, não podem estar suscetíveis às contingências do mundo.

Ou seja, o bode expiatório não é indesejado por ser inútil, mas por ser injusto. Em primeiro lugar, o juízo de utilidade de algo dependerá sempre do fim visado. Por exemplo, uma carroça será útil para transportes terrestres, mas inútil para transportes marítimos. Além disso, a aferição de utilidade está suscetível a gradações, isto é, pode haver medidas mais ou menos úteis. Assim, a mesma carroça, apesar de ser útil para transportes terrestres, não é tão útil quan to um carro ou um caminhão. Por outro lado, um conceito deontológico de justiça estará insuscetível a essas variações. Em outras palavras, ou algo é justo, ou não é.

Para o caso em exame, é preciso ter ciência de que uma ocorrência de bode expiatório inocente é mais grave que uma de bode expiatório culpado. E isso pela razão já exposta acima: a punição do inocente já é intrinsecamente injusta per se, violando o princípio da culpabilidade. Mas, então, qual é o conteúdo do injusto do bode expiatório culpado? Em outras palavras, o que fundamenta o juízo negativo sobre a ocorrência do bode expiatório naquelas hipóteses em que o indivíduo de fato mereceria a resposta penal? A resposta, aqui, está intimamente ligada à concepção liberal de que o poder estatal deve estar justificado. Assim, não pode o Estado agir com abuso de poder, devendo respeitar a certos imperativos de justiça.

E é por questões de justiça que desde, ao menos, o Código de Hamurabi, é pacífica a concepção segundo a qual a punição deve ser exclusivamente individual. Dessa forma, a cada um cabe carregar o fardo da própria culpa. Inclusive, um dos preceitos do direito romano, suum cuique tribuere, pode ser aqui aplicado de forma principiológica: deve-se dar a cada um o que lhe pertence (85). Nos casos de bode expiatório, esse preceito é violado, pois submete-se alguém ao fardo de uma culpa que não lhe é própria. Nos casos de bode expiatório inocente isso fica especialmente acentuado, mas também nos casos de bode expiatório culpado isso ocorre, tendo em vista que se impõe a alguém a culpa que pertence também a outros e, por tanto, será uma culpa per definitionem mais intensa do que o limite do justo.

Pode-se perceber que o disposto até aqui é capaz de fundamentar também um dos fundamentos do moderno Estado de Direito, o princípio da isonomia (86): não pode o Estado tratar iguais de modo desigual. Na hipótese do bode expiatório inocente, inclusive, ocorre o inverso: quem deveria ser responsabilizado restou impune, enquanto que quem não poderia ser afetado foi punido. A isonomia está ligada intrinsecamente aos fundamentos de um Estado de Direito que se pretenda legítimo. Aqui, a ideia básica é que um Estado que exerce poder em nome de todos os cidadãos não pode fazê-lo senão de forma a poder justificar-se perante cada indivíduo. A isonomia, assim, prescreve não só a igualdade de tratamento, mas também que esse tratamento seja sempre adequado às circunstâncias concretas e conforme padrões universais, sem atos discriminatórios, objetivando-se evitar o abuso de poder. Dessa forma, chega-se à já consagrada fórmula do tratamento igual aos iguais, que significa, considerando-se as circunstâncias relevantes da situação concreta, que os indivíduos que ostentarem os mesmos predicados deverão receber a mesma resposta. Consequentemente, a outra faceta da isonomia é o tratamento desigual aos desiguais, ou seja, tratar-se de forma diferente aqueles que possuírem predicados diversos (87).

3. Consequências Para A Teoria Da Pena
Com a conclusão que a ocorrência de bode expiatório é algo injusto, aparentemente recai sobre os partidários de teorias pre ventivas da pena um grande ônus argumentativo. Isso porque, conforme visto supra, nem sempre será possível dizer que o bode expiatório frustra as pretensões preventivas do direito penal. Dizer simplesmente que as hipóteses em que isso ocorre são demasiadamente improváveis ou que se dariam numa proporção muito pequena de casos é insuficiente. Isso porque seria simplesmente aceitar passivamente uma teoria só porque ela resolve a maioria dos casos, deixando o restante, mesmo que em pequena quantidade, sem resolução.

Uma adequada teoria da pena, que tem a importância de influenciar a dogmática da teoria do delito e da execução penal, deve dar conta de todas as hipóteses possíveis, não havendo espaço para lacunas. Por outro lado, o exposto até aqui está longe de ser um golpe fatal nas teorias preventivas, tendo em vista que não necessariamente uma teoria da pena precisa atender a pressupostos exclusivamente preventivos. Dessa forma, somente os defensores de considerações puramente preventivas terão dificuldades em explicar por que se deve evitar casos de bode expiatório quando razões preventivas não forem suficientes para tanto.

A título exemplificativo, os problemas inerentes à possibilidade de injustiças em nome da prevenção contribuíram para o ressurgimento das teorias da retribuição no âmbito anglo-saxão. Teixeira (88) aponta que duas foram as objeções principais às teorias preventivas – denominadas utilitárias na doutrina anglo-saxã –: (i) as teorias preventivas puras permitiriam, por uma questão lógica, o castigo de um inocente e (ii) violariam o princípio da não instrumentalização do homem, formulado por Kant (89).

Ao que parece, a questão principal aqui é que a natureza consequencialista da linguagem puramente preventiva desconhece limitações deontológicas à atuação estatal. Em outras palavras, num Estado de Direito toda atuação estatal é limitada por considerações de respeito ao ser humano e a fundamentação da pena precisa considerar esse fator, sendo insuficiente o puro argumento da prevenção. No caso brasileiro, o dispositivo mais emblemático é o art. 5º, CRFB, que lista um extenso rol de direitos e garantias fundamentais. Qualquer pretensão preventiva precisa atender a limitações dessa natureza se o Estado pretende exercer um poder justificado.

A título exemplificativo, cabe listar alguns exemplos do que se chama, nesta sede, de teorias preventivas impuras, ou seja, de teorias da pena que conhecem não somente razões de prevenção, mas também considerações de respeito ao ser humano. É possível verificar, nesse sentido, dois caminhos diferentes: (i) defender-se uma teoria preventiva limitada, o que significa dizer que o direito penal deve atender a um determinado fim preventivo, mas que esse fim é limitado por considerações de natureza diversa; ou (ii) defender uma teoria mista, ou seja, sustentar que o direito penal não atende somente ao fim de prevenção, mas também de retribuição do delito.

Veja-se, por exemplo, Roxin (90), que sustenta uma teoria da prevenção positiva (geral e especial), porém defendendo que o grau de culpabilidade é o limite da medida da pena. Em outras palavras, o direito penal atenderia a finalidades preventivas, porém esse fim não poderia gerar um quantum de pena que excedesse a medida da culpabilidade do agente. Sem entrar no mérito do conteúdo em si dessa construção, pode-se perceber que o princípio da culpabilidade é aplicado como critério limitador das pretensões preventivas. Portanto, pode-se observar em Roxin um primeiro exemplo de teoria que não se rege somente por razões de prevenção.

Outro exemplo de construção nesse sentido pode ser observado no pensamento de Greco (91): aqui, o fim da cominação de tipos penais deve ser conferir razões prudenciais para a não realização de crimes, com o objetivo de assim prevenir futuras violações a bens jurídicos. Em outras palavras, trata-se de uma teoria da pena que gira em torno do conceito de prevenção geral negativa. Entretanto, o autor defende que a atuação estatal deve estar limitada por razões morais de respeito ao ser humano. A premissa de seu pensamento é que o Estado não pode limitar a atuação do indivíduo por razões meramente morais (amoralismo individual), mas que a atuação estatal em si deve estar limitada por razões morais (moralismo estatal) (92). Essa gama de restrições, evidentemente, também limita a atuação em sede jurídico-penal e, consequentemente, quaisquer pretensões preventivas.

Como dito acima, outro caminho possível é a adoção de teorias mistas, ou seja, da defesa de considerações preventivas e retributivas na aplicação da lei penal. É o exemplo de Welzel (93), que sustenta que o direito penal tem como missão a proteção de bens jurídicos por meio do reforço dos valores ético-sociais aprovados pela sociedade (94). O autor sustenta que, para que um determinado bem jurídico tenha suas chances de proteção maximizadas, convém que o valor que torna imperativo o seu respeito esteja devidamente estabilizado socialmente. Em outras palavras, veja-se o exemplo do homicídio: para que a vida humana tenha mais chances de proteção, o valor que estabelece que matar é errado deve estar devidamente consolidado na cabeça dos cidadãos. Assim, previne-se futuros delitos quando o valor que determina o seu não cometimento é recepcionado pelos indivíduos. Aqui, pode-se dizer que Welzel sustenta uma prevenção geral tanto positiva (afirmação do valor ético-social) quanto negativa (evitação de violações futuras).

Entretanto, o mesmo autor defende que a medida da pena deve ser a exata retribuição do grau de culpabilidade do agente, enquanto que as medidas de segurança devem atender somente a pressupostos de prevenção (95). Assim, chega Welzel a uma teoria da pena de caráter misto.

Por outro lado, conforme já explicitado, teorias preventivas puras não conseguem justificar por que não se pode permitir, em nenhuma hipótese, a ocorrência de bode expiatório. O exemplo mais simbólico dessa concepção é a teoria da pena do funcionalismo sistêmico. Partindo-se da premissa geral de que a sociedade é feita de comunicações e que a vigência das expectativas de ação é um pressuposto de existência de relações sociais (96), sustenta-se que o crime é a defraudação de uma certa expectativa normativa (97). Em outras palavras, o delito acarretaria uma lesão à teia comunicativa social, pois consistiria numa espécie de comunicação do autor de que a norma não tem vigência. Com isso, a resposta adequada ao delito seria a pena, funcionando como uma espécie de “negação da negação”, em termos que se aproximam, nesse ponto, à teoria hegeliana da pena (98).

Conforme visto acima, a partir do exemplo do bode expiatório, uma teoria preventiva pura não responde satisfatoriamente quando a punição (ou não punição) é injusta, porém é conveniente no aspecto preventivo. Um teórico do funcionalismo sistêmico poderia refutar afirmando que mesmo um caso não descoberto significaria uma violação à teia comunicativa da sociedade. Entretanto, essa concepção, que seria demasiadamente formalista, afastar-se-ia dos pressupostos gerais da teoria sistêmica, que, sendo uma teoria sociológica, baseia-se na comunicação como um fator real, e não presumido. Em segundo lugar, essa própria tentativa de defesa formalista da teoria enfraqueceria a sua força argumentativa, pois subtrairia o que há de mais relevante no bojo da teoria sistêmica. Isso porque Jakobs parte da premissa de que seria de interesse das próprias pessoas o estabelecimento de um ordenamento jurídico que viabilize a liberdade e o bem-estar de seus integrantes (99). Em outras palavras, a vantagem do pensamento seria o ganho real advindo da confirmação da vigência da norma: a ciência do cidadão de que as expectativas sociais de ação ainda são válidas e os ganhos de liberdade de ação daí decorrentes.

Por outro lado, Hans Achenbach (100) argumenta a favor da prevenção pura, sustentando que a teoria da prevenção geral positiva só possui idoneidade naqueles casos em que haja uma aceitação social da sanção. Dessa forma, o autor aduz que somente a pena que se repute como justa pelo cidadão pode ser capaz de motivar o cidadão a respeitar o valor protegido pelo tipo penal correspondente. Assim, aparentemente, a finalidade preventiva do direito penal só seria possível respeitando-se os imperativos de justiça do caso concreto.

A reflexão acima pode ser contestada por três vias. Primeiramente, e isso é reconhecido pelo próprio autor (101), essa ideia de que a prevenção geral positiva só funcionaria caso as pessoas reputassem a punição como justa é uma proposição de natureza empírica que de nenhuma forma está devidamente comprovada. Em segundo lugar, ao defender valores de justiça no bojo de uma concepção preventiva, a teoria abandona, dessa forma, a prevenção pura, que, como já dito, é de natureza consequencialista. Em terceiro lugar – e esse é o ponto mais delicado –, o fundamento do autor está dirigido à aparência de justiça, e não à justiça em si. Em outras palavras, o autor conseguiu, ao mesmo tempo, deturpar tanto o conceito de justiça, quanto o de utilidade. Isso porque, ao asseverar que o importante é que as pessoas vejam a punição como justa, seu argumento não é capaz de dar conta da variação 4 (102), ou seja, de responder por que evitar o bode expiatório nessas circunstâncias é um dever.

Assim, qualquer teoria da pena deve dar conta dos imperativos deontológicos que limitam o poder estatal. Por outro lado, argumentos puramente consequencialistas, característicos da linguagem preventiva, não dão conta dos problemas inerentes à necessidade de justiça do ato (103). Dessa forma, uma teoria preventiva da pena só terá a possibilidade de ter sucesso se não for defendida de forma pura. Isso significa que a moderna tendência funcionalista do direito penal não pode ignorar os limites ao poder estatal que emergem do imperativo mais importante para um Estado de Direito: o respeito ao indivíduo.

4. O Individualismo Normativo
Um leitor mais exigente pode não estar satisfeito com o explicado até aqui, exigindo o esclarecimento de uma questão: por que não se pode punir, de forma alguma, um inocente? Se, afinal de contas, fosse necessário sacrificar os direitos da inocência em prol do bem comum, por que não relativizar esse direito? A resposta reside no fato de que não existe, de fato, um “bem comum”, no sentido de um bem universalmente aplicável a todos ao mesmo tempo. Uma sociedade é composta de indivíduos, com vontades, objetivos, valores e desejos próprios, independentes uns dos outros (104).

Por isso, Rawls (105) tem razão ao afirmar que o utilitarismo não leva a sério o fato de que as pessoas são diferentes. Assim, quando se menciona o termo “sociedade” ou “social”, faz-se menção a um conjunto de pessoas que, todavia, não se confundem. Dessa forma, usar uma pessoa em nome de um “bem comum” significa sacrificá-la em nome de terceiros, o que acarreta na violação do imperativo categórico kantiano da proibição de instrumentalização do homem (106).

Sacrificar direitos individuais em nome de uma mera utilidade geral só estaria em harmonia com um coletivismo normativo, o que, numa sociedade que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (107), é manifestamente inadequado. Se o homem é um ser dotado de dignidade (108), não pode servir de mero objeto para fins alheios a ele mesmo. Portanto, o ponto de partida obrigatório para uma adequada teoria da pena deve ser o individualismo normativo (109).

A ideia fundamental aqui é que toda política pública deve ser apta a fundamentar-se em razões referentes aos indivíduos, principalmente àqueles afetados diretamente, não sendo suficiente a menção a termos abstratos referentes a entes coletivos. Em suma, nenhum sacrifício em prol do bem comum pode ser imposto a alguém. Isso significa, para o debate acerca dos fundamentos do direito penal, que uma teoria da pena que não busca justificar ao próprio apenado o motivo da aplicação da pena é manifestamente ilegítima. Nunca será justificado, portanto, a aplicação de uma pena injusta a pretexto de uma suposta vantagem social.

Um utilitarismo baseado na ideia de maximização de ganhos e minimização de danos não pode sobrepor-se a direitos individuais. Em razão de todo ser humano ter um valor intrínseco, de ser uma pessoa independente, isto é, de ser um indivíduo, é um imperativo categórico (isto é, incondicionado) a não violação de certos direitos fundamentais. É por esse motivo, por exemplo, que está vedada a tortura (110), uma série de penas (111) e tribunais de exceção (112). Além disso, é justamente por essa razão que é inviolável a vida privada (113) e que o direito penal está limitado à mais estrita noção de legalidade (114).

Num Estado de Direito não se admite sacrifícios humanos. É por esse motivo que não se pode punir o inocente ou fazer de alguém bode expiatório. Não importa se haveria ou não hipotéticos ganhos, haja vista que um indivíduo, por seu valor intrínseco, é único, indivisível e insubstituível. Só a partir do individualismo normativo é possível respeitar, portanto, os direitos fundamentais, o que coopera para a garantia de que um Estado não se tornará uma quadrilha de ladrões (115).

Com relação à pena, isso significa o respeito não só dos citados princípios da culpabilidade e da isonomia, mas também ao da proporcionalidade. Sobre este último, é importante notar alguns pontos. O primeiro deles é que na medida em que a definição de proporcionalidade é invariável, isto é, a ideia do conceito é fixa, a noção do que concretamente é proporcional aparenta variar ao longo do tempo (116). Isso significa que dificilmente será possível afirmar taxativamente que uma pena concreta é proporcional ou desproporcional independentemente dos valores dominantes em determinado período. É por essa razão que a noção de proporcionalidade estará condicionada ao tempo e lugar em que a pena será aplicada (117). Entretanto, apesar de não ser possível calcular a exata medida da noção metafísica do justo, pode-se exigir uma coerência interna do sistema de penas, de modo que os delitos mais graves sejam apenados de forma mais intensa e os menos graves de forma menos intensa (118). Nesses termos, é possível, inclusive, fazer um controle constitucional da intensidade da pena cominada por meio do princípio da proporcionalidade (proibição do excesso) (119). Veja-se que, por se tratar de uma avaliação em que não é possível derivar um quantum certo de pena de imperativos de justiça, parece não ser possível impedir que considerações de necessidade empírica tenham lugar nesse sopesamento. O importante, aqui, é que as razões conferidas ao indivíduo apenado sejam suficientes para respeitá-lo como um ser único, indivisível, insubstituível e, portanto, dotado de dignidade.

Considerações Finais
Como conclusão da breve investigação aqui empreendida, pode-se observar que a hipótese do bode expiatório é um clássico exemplo de imperativo categórico estatal de não fazer. Há, assim, uma obrigação estatal de não submeter ninguém a essa condição, por razões deontológicas de justiça. Por outro lado, teorias da pena exclusivamente preventivas só conhecem argumentos consequencialistas que, por sua natureza contingencial, não são capazes de responder à questão da vedação categórica do bode expiatório. Dessa forma, em virtude de o ordenamento jurídico estar também limitado por razões de respeito aos indivíduos, não se pode defender uma teoria da pena exclusivamente preventiva, sem ter em vista os limites deontológicos à atuação estatal.

A melhor forma de evitar esse tipo de erro é partir do ponto de vista metodológico do individualismo normativo. Isso porque, considerando as pessoas como seres independentes entre si, impede-se o erro coletivista do cometimento de injustiça a pretexto de estar satisfazendo o bem comum. Em outras palavras, nenhuma utilidade geral está apta a dispensar a necessidade de justificar a pena ao próprio apenado, bem como também não justifica o cometimento de injustiças por parte do Estado.


Notas
76 RAND, Ayn. A revolta de Atlas. Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo: Arqueiro, 2017, p. 502-503.
77 “O ponto de partida de toda teoria hoje defensável deve basear-se no entendimento de que o fim da pena só pode ser de tipo preventivo.” (Tradução livre). ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general, tomo I. Fundamentos. La estructura de la teoría del delito. Trad. da 2ª ed. alemã: Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madri: Civitas, 1997, p. 95.
78 Fundamentando a colaboração premiada em considerações preventivas, SOUZA, Artur de Brito Gueiros; CÂMARA, Juliana; ALENCAR, Matheus. Prêmio e castigo: ensaio político-criminal sobre o instituto da colaboração premiada. In: LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SANTOS, Humberto Souza (orgs.). Comentários ao direito penal econômico brasileiro. 1ª ed. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 830 – 834.
79 A origem do termo vem da tradição hebraica. Descrito em Levíticos, os hebreus realizavam um ritual no chamado Dia da Expiação, a fim de purificar o povo. Para tal, utilizava-se dois bodes. O primeiro era sacrificado junto com um touro. O segundo era transformado no “bode expiatório” e tinha como função carregar todos os pecados da sociedade. Convencionou-se, assim, a chamar alguém de bode expiatório quando o indivíduo em questão sofre sozinho as consequências de um fato quando ele não era ou, ao menos, não era sozinho, o culpado pelo infortúnio.
80 Cf. GRECO, Luís. A ilha de Kant. In: GRECO, Luís; MARTINS, Antonio (orgs.). Direito penal como crítica da pena: estudos em homenagem a Juarez Tavares por seu 70º aniversário em 2 de setembro de 2012. São Paulo: Marcial Pons, 2012, p. 263-279, que afirma: “Ainda que a paz social e a existência da sociedade, o bem estar e a vida de vários indivíduos esteja em jogo, não parece correto sacrificar os direitos da inocência, o principal dos quais é o de nunca sofrer uma punição.”.
81 Para os fins deste trabalho, entende-se por consequencialista o método através do qual valora-se uma ação como positiva ou negativa tendo como parâmetro as consequências dessa ação.
82 Por deontológico entende-se, nesta sede, todo método que valora uma ação como certa ou errada tendo como parâmetro considerações morais de respeito a partir de um juízo a priori, ou seja, que não se guia a partir das consequências do ato.
83 É evidente que tal hipótese está sendo pensada somente para fins de argumentação. No plano da vida concreta, se não for possível saber que o bode expiatório ocorreu, isso não chegará a ser um problema prático. Entretanto, sob o ponto de vista do dever ser argumentativo, é preciso pensar nessa possibilidade como um observador externo, a fim de testar verdadeiramente a força teórica de um posicionamento, não importando se a possibilidade de seu acontecimento é remota. Se um fato tem 0,0001% de chance de se concretizar, este ainda é possível e, portanto, deve ser considerado.
84 Observando o alerta feito por Greco em sua análise sobre a crítica do utilitarista John Stuart Mill ao paternalismo. Cf. GRECO, Luís. A crítica de Stuart Mill ao paternalismo. In: Revista Justiça e Sistema Criminal, Curitiba, v. 4, n. 7, p. 81-92, 2012.
85 O princípio romano suum cuique tribuere, elaborado por Ulpiano como base do direito civil romano, não possuindo relação direta com o direito penal. Cf. BÖTTCHER, Carlos Alexandre. O Legado ético e universalista do Direito Romano. In: Revista da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, v. 108, p. 155-167, 2013, p. 159: “Para Savigny, com alterum non laedere, quis Ulpiano atender ao respeito devido aos direitos absolutos ou originários, que são os direitos fundamentais, ao passo que com suum cuique tribuere, teve em vista o respeito aos direitos relativos ou adquiridos. Donelo, por sua vez, acreditava que alterum non laedere abrangia as regras atinentes aos direitos das pessoas e suum cuique tribuere referia-se ao direito das coisas.”. Dessa forma, é preciso ressaltar que aqui se recorre a um uso análogo, de forma que o postulado “dar a cada um o que é seu” não se limite somente ao direito das coisas.
86 Sobre as linhas gerais do princípio, cf. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 157-158, que fazem uma importante observação: “vale lembrar, com Forsthoff, que o Tribunal Constitucional da Alemanha, repetidas vezes, afirmou que o princípio da igualdade, como regra jurídica, tem um caráter suprapositivo, anterior ao Estado, e que mesmo se não constasse no texto constitucional, ainda assim teria de ser respeitado.”.
87 A esse respeito, cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª ed. 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 101-102, cuja explicação é didática: “Essa diferenciação somente adquire relevo material na medida em que se lhe agrega uma finalidade, de tal sorte que as pessoas passam a ser iguais ou diferentes de acordo com um mesmo critério, dependendo da finalidade a que ele serve. Duas pessoas podem ser iguais ou diferentes segundo o critério da idade: devem ser tratadas de modo diferente para votar nalguma eleição, se uma tiver atingido a maioridade não alcançada por outra; devem ser tratadas igualmente para pagar impostos, porque a concretização dessa finalidade é indiferente à idade.”
88 TEIXEIRA, Adriano. Las teorías retributivas en el pensamiento angloamericano contemporáneo. In: En letra: derecho penal, Buenos Aires, ano IV, n. 7, p. 35-77, 2019, em especial p. 41-43.
89 Segundo Kant, o ser humano é dotado de dignidade, que é o atributo do que é um fim em si mesmo, o contrário daquilo que possui preço. O que possui dignidade não pode ser objeto de finalidades alheias a si mesmo, por não ser objeto de razões de conveniência. Dessa forma, Kant chega ao seu imperativo categórico do respeito à dignidade humana, que leva à proibição de instrumentalização do homem. Sobre isso, cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 76-77.
90 Cf. ROXIN, Claus. Derecho penal… op. cit., p. 95-103; Idem. Culpabilidad y prevención en derecho penal. Trad. Francisco Muñoz Conde. Madri: Reus, 1981, p. 46-48.
91 Cf. GRECO, Luís. Lo vivo y lo muerto en la teoría de la pena de Feuerbach: una contribución al debate actual sobre los fundamentos del Derecho penal. Trad. Paola Dropulich e José R. Béguelin. Madri: Marcial Pons, 2015, p. 205-397.
92 Ibidem, p. 109.
93 Cf. WELZEL, Hans. Derecho penal: parte general. Trad. Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque Depalma, 1956, p. 1-13.
94 “É missão do direito penal a proteção dos bens jurídicos mediante o amparo dos valores ético-sociais elementares da ação.” (Em tradução livre). Ibidem, p. 6.
95 Ibidem, p. 11-12.
96 “Mas, desde que uma das partes da situação originária age, várias consequências advêm daí: rompe-se a dupla contingência mediante a redução de complexidades, fazendo surgir expectativas ou pautas de previsão num sistema social que se tornou possível, não pela intervenção exterior de um demiurgo ou em virtude de princípios apriorísticos emanados de necessidades ontológicas, mas graças à ‘fatalidade do acaso’ (die fatalität des Willkürlichen), prefigurada aqui pela ação realizada, ou seja, pela seleção de uma possibilidade dentre várias, onde se contém implícita uma primeira opção à outra parte: conformar-se ou não à seleção feita, à pauta unilateralmente estabelecida. Mas qualquer que seja a resposta, com ela ter-se-á criado uma nova opção seletiva, uma nova pauta, uma nova expectativa, em face da qual poder-se-á reagir também em chave binária, aceitando-a ou não. É assim, segundo LUHMANN, que opera o componente central de toda estrutura social: expectativas compartidas.”. ALBUQUERQUE, Mário Pimentel. Princípio da confiança no direito penal: uma introdução ao estudo do sujeito em face da teoria da imputação objetiva funcional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 51-52.
97 JAKOBS, Günther. O que é protegido pelo Direito Penal: bens jurídicos ou a vigência a norma? In: GRECO, Luís; TÓRTIMA, Fernanda Lara (orgs). O bem jurídico como limitação do poder estatal de incriminar? 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 230.
98 Cf. o afirmado pelo próprio Jakobs, primeiro pensador do funcionalismo sistêmico em âmbito penal: “Em Hegel a teoria absoluta recebe uma configuração que em pouco se diferencia da prevenção geral positiva aqui representada.” (tradução livre). Idem. Derecho penal: parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª ed. cor. Madri: Marcial Pons, 1997, p. 22-23.
99 Idem. Sobre la normativización de la dogmática jurídico-penal. 1ª ed. Trad. Manuel Cancio Meliá e Bernardo Feijóo Sánchez. Madri: Civitas, 2003, p. 54.
100 ACHENBACH, Hans. Imputación individual, responsabilidad, culpabilidad. In: SCHÜNEMANN, Bernd (org.). El sistema moderno del derecho penal. Madri: Tecnos, 1991, p. 140-142.
101 Ibidem, p. 142.
102 Cf. supra, item 1.4.
103 Ross chega a afirmar, corretamente, que, à luz de um argumento de utilidade para o bem da comunidade, a punição de um culpado não se diferencia da punição de um inocente. ROSS, David. The right and the good. Oxford: Claredon Press, 2002, p. 56.
104 Cf. NOZICK, Robert. Anarchy, state, and utopia. Oxford: Blackwell, 1999, p. 30-33.
105 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 30.
106 Ao que parece, incrivelmente, Beccaria parece ter incorrido nessa contradição, aproximando o conceito de justiça ao de utilidade. Por exemplo: “mesmo que os castigos cruéis não se opusessem diretamente ao bem público e ao fim que se lhes atribui, o de impedir os crimes, bastará provar que essa crueldade é inútil, para que se deva considerá-la como odiosa, revoltante, contrária a toda justiça e à própria natureza do contrato social.”. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 3ª ed. Leme/SP: EDIJUR, 2015, p. 18-19. Curiosamente, todavia, o autor parte de uma noção individualista, afirmando que nenhum indivíduo doa uma porção da própria liberdade visando ao bem público, afirmando, inclusive que concepções dessa natureza “só se encontram nas novelas.”. Ibidem, p. 15.
107 Art. 1º, III da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
108 “No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.”. KANT, Immanuel. Op. cit., p. 77. Dessa passagem pode-se observar a ideia kantiana de que todo ser racional é dotado de dignidade, que é um valor absoluto, decorrente da capacidade de autolegislação de um ser racional. Disso decorre que todo homem é um fim em si mesmo. Sobre isso cf. SEELMANN, Kurt. Dignidad humana y las formulaciones segunda y tercera del imperativo categórico. Diagnóstico kantiano y función actual. Trad. Gastón Chaves Hontou. In: SEELMANN, Kurt. Estudios de filosofía del Derecho y Derecho penal. Madri: Marcial Pons, 2013, p. 27-38.
109 Cf. PFORDTEN, Dietmar von der. Individualismo normativo e o Direito. Trad. Saulo Monteiro de Matos. In: Revista Direito Público, v. 11, n. 60, p. 172-197, 2014.
110 Art. 5º, III, CRFB/88.
111 Art. 5º, XLVII, CRFB/88.
112 Art. 5º, XXXVII, CRFB/88.
113 Art. 5º, X, CRFB/88.
114 Art. 5º, XXXIX e XL, CRFB/88 e arts. 1º e 2º do Código Penal.
115 A questão da diferença entre um Estado e uma quadrilha de ladrões foi colocada primeiramente por Santo Agostinho e repetida por Greco (GRECO, Luís. Lo vivo… op. cit., p. 114), que conclui, corretamente, que a diferença reside no fato de que o Estado tem a pretensão de exercer não qualquer tipo de poder, mas um poder justificado. Dessa forma, um Estado que se diferencia de um exercício arbitrário de poder deve estar limitado a considerações deontológicas de justiça.
116 “Há, nos valores, um aspecto variante e um invariante. A prudência, como invariante, é uma virtude que faz evitar a tempo as inconveniências e os perigos. Mas o senhor feudal era prudente quando se armava, o burguês, hoje, é prudente quando se cerca de bons documentos, etc. Este é o aspecto variante.”. SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia e cosmovisão. 1ª ed. São Paulo: É Realizações, 2018, p. 113-114.
117 “A extensão em que são aplicadas devem variar tão infinitamente quanto variam os diferentes sentimentos morais e físicos, que diferem em diferentes locais e épocas. Aquilo que pode ser chamado de crueldade em um caso pode ser exigido por necessidade em outro. Incontestavelmente certo é: uma vez garantida igual eficiência, o sistema de penas torna-se mais perfeito à medida que se torna mais brando.”. HUMBOLDT, Wilhelm von. Os limites da ação do Estado. Trad. Jesualdo Correia. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004, p. 302-303.
118 Nesse sentido, HART, Herbert Lionel Adolphus. Punishment and responsibility: essays in the Philosophy of Law. 2ª ed. Nova Iorque: Oxford University Press, 2008, p. 162.
119 Conforme brevemente afirmado em AMARAL, Rodrigo. Proibição do excesso? Reflexões sobre o princípio da proporcionalidade como instrumento de controle de legitimidade da criação de tipos penais. In: Cognitio Juris, João Pessoa, ano VIII, n. 23, p. 183-208, 2018, p. 201-202.

Referências
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AMARAL, Rodrigo. Proibição do excesso? Reflexões sobre o princípio da pro- porcionalidade como instrumento de controle de legitimidade da criação de tipos penais. In: Cognitio Juris, João Pessoa, ano VIII, n. 23, p. 183-208, 2018.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª ed. 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2005.
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SOUZA, Artur de Brito Gueiros; CÂMARA, Juliana; ALENCAR, Matheus. Prêmio e castigo: ensaio político-criminal sobre o instituto da colaboração premiada. In: LOBATO, José Danilo Tavares; MARTI- NELLI, João Paulo Orsini; SANTOS, Humberto Souza (orgs.). Co- mentários ao direito penal econômico brasileiro. 1ª ed. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 821-845.
TEIXEIRA, Adriano. Las teorías retributivas en el pensamiento angloamericano contemporáneo. In: En letra: derecho penal, Buenos Aires, ano IV, n. 7, p. 35-77, 2019.
WELZEL, Hans. Derecho penal: parte general. Trad. Carlos Fontán Ba- lestra. Buenos Aires: Roque Depalma, 1956.

Artigo publicado na Revista Liberdades nº 29, publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

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