No último dia 24 de abril de 2020, o Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu virtualmente o julgamento do HC nº. 176.473/RR. Nele, foi indeferida por maioria a ordem, sendo fixada a seguinte tese:
Nos termos do inciso IV do artigo 117 do Código Penal, o acórdão condenatório sempre interrompe a prescrição, inclusive quando confirmatório da sentença de 1º grau, seja mantendo, reduzindo ou aumentando a pena anteriormente imposta.
Isso significa dizer que, se o tribunal de segundo grau não deliberar pela reforma de sentença condenatória para absolver o réu, o acórdão de apelação sempre interromperá o prazo prescricional, praticamente inaugurando um novo marco na ação penal de rito ordinário. Sobre o entendimento, aqui cabem dois tipos de análise: sobre sua adequação à lei, e a conveniência da tese para evolução do processo penal.
No que concerne à adequação da tese à legalidade estrita, deve-se atentar para o que prevê o artigo 117 do Código Penal. Os seis incisos ilustram taxativamente quais são as causas de interrupção da prescrição presentes no Direito Penal brasileiro:
Art. 117 – O curso da prescrição interrompe-se:
I – pelo recebimento da denúncia ou da queixa;
II – pela pronúncia;
III – pela decisão confirmatória da pronúncia;
IV – pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis;
V – pelo início ou continuação do cumprimento da pena;
VI – pela reincidência.
O que motivou a fixação da tese em voga foi a interpretação dada ao inciso IV, tendo o STF concluído que a expressão “sentença ou acórdão condenatórios recorríveis” significa dizer que o acórdão que tão somente confirma a condenação imposta em primeira instância, também está incluso na segunda parte do inciso. De uma mera análise literal do texto legal pode até ser que alguém chegue a essa mesma conclusão, contudo, a chave para ampla compreensão da problemática reside nos outros marcos interruptivos previstos pelo artigo.
Os incisos II e III preconizam duas causas interruptivas aplicáveis especificamente ao procedimento especial do Tribunal do Júri. Por estrita aplicação do dispositivo legal, quando o réu por crimes dolosos contra a vida é pronunciado (art. 117, II, CP), e quando essa decisão é confirmada (art. 117, III, CP), há duas interrupções do prazo prescricional.
Por óbvio, o que se entende por “confirmação” da decisão é a ratificação da mesma pelo tribunal ad quem, ao ser submetida ao duplo grau de jurisdição. Ou seja, a lei nos traz hipótese clara e inequívoca de situação na qual uma decisão e a confirmação em instância superior configuram dois tipos diferentes de causas interruptivas da prescrição.
Logo, é fato que o legislador positivou expressamente situação na qual o acórdão de confirmação da decisão de pronúncia interrompe a contagem do prazo prescricional, exprimindo que essa era sua intenção ao prever de maneira clara a hipótese contida no inciso III, o que não acontece no caso da sentença condenatória e do acórdão que meramente confirma esta condenação.
Isso porque, ao contrário dos incisos II e III, o inciso IV não faz qualquer diferenciação nesse sentido, ainda que nada impedisse que assim fizesse o legislador. O texto legal não traz dois dispositivos diferentes, onde se diz “sentença condenatória” e “confirmação da sentença condenatória”, ou mesmo “acórdão confirmatório”, como funciona no caso da decisão de pronúncia.
Aliás, pelo contrário, a lei unifica os dois momentos processuais em uma única previsão de condenação, não subsistindo duas hipóteses distintas de nova contagem prescricional por prolação de sentença ou acórdão que concordem entre si com a condenação, como é o caso expresso dos incisos II e III.
Assim, extrai-se que não era a intenção do legislador que sentença e acórdão sirvam de causas interruptivas distintas, excetuando-se a hipótese na qual o acórdão condena o réu, reformando sentença anteriormente absolutória pois, neste caso, teremos, de fato, um verdadeiro acórdão condenatório, como é a estrita redação do inciso IV.
Fora esta situação, estaremos diante de marco interruptivo de prescrição não preconizado pelo Código Penal, uma vez que, com a devida vênia, caso fosse intenção do legislador, ele poderia ter criado hipóteses semelhantes às dos incisos II e III, o que não ocorreu.
Conforme ensina Claus ROXIN (Derecho Penal, Parte General, 2. ed., Madrid, Civitas, 1997, pp. 149-150), não se deve ampliar o texto legal sem que o mesmo dê clara abertura a essa interpretação, pois
[…] o legislador somente pode expressar com palavras suas prescrições; e o que não se depreenda de suas palavras, não está prescrito, não ‘rege’. Por isso, uma aplicação do Direito Penal que exceda do teor literal vulnera a autolimitação do Estado na aplicação do poder punitivo e carece de legitimação democrática.O acórdão que apenas confirma a sentença não pode servir para fins de aplicação do artigo 117, IV, CP, uma vez que não foi ele que impôs a condenação do Estado ao réu, e sim a sentença de primeiro grau. Ele apenas a manteve, pois concluiu que o entendimento anterior havia feito sido correto, mas isso não está contido nas hipóteses previstas pelos incisos do texto legal.
Quem inaugurou a situação de condenado do indivíduo no mundo jurídico foi o juiz singular na sentença, e não o Tribunal no acórdão que a confirma. Logo, o provimento de segunda instância não pode ser compreendido como “acórdão condenatório” nos moldes do referido inciso IV, sob pena de absoluta violação à taxatividade do artigo.
Em se tratando de verdadeiras limitações legais ao exercício do Estado Penal, a proteção às normas estritas deve ser ainda mais forte, não podendo o Poder Judiciário tecer interpretações que venham a desconstruir causas específicas trazidas pela legislação. O entendimento do STF, assim, viola a literalidade do dispositivo penal, uma vez que acaba por inaugurar marco interruptivo definitivamente não previsto em lei, fazendo com que a tese fixada não encontre adequação no Ordenamento jurídico.
No que concerne à conveniência prática do entendimento frente às necessidades impostas pelo direito processual, melhor sorte também não merece. Os maiores fundamentos para indeferimento da ordem no HC nº. 176.473/RR, e posterior fixação de tese pelo STF, passam principalmente pela efetividade do processo penal, interpretando a prescrição como fator impeditivo para que o Estado execute a pretensão advinda de seu jus puniendi.
A possibilidade de dificultar que o título executivo estatal perca sua eficácia motivou a Corte Constitucional a inaugurar a possibilidade de compreender o acórdão confirmatório da condenação como uma nova interrupção do prazo prescricional sem, contudo, analisar o que verdadeiramente exige o processo penal contemporâneo.
Vivemos a época na qual a digitalização é a realidade do Direito, conferindo dinamicidades que antes não existiam. Juntadas de petições são automáticas, enquanto há menos de uma década, dependiam de processamento que podia demorar meses; remessas para as diferentes partes e entes podem ser feitas sem que o processo precise sair da serventia jurisdicional, o que assegura acesso permanente de todos os envolvidos ao processo; disponibilizações de cópias não mais dependem de pessoas e vários dias para que sejam efetivadas; prazos são contados eletronicamente independente de publicação em diário oficial; dentre várias outras praticidades que a informatização trouxe à dinâmica diária do processo.
Desta forma, irremediavelmente os processos tendem a ganhar uma celeridade que não tinham há pouco tempo. Trata-se de um avanço muito significativo do Direito perante a sociedade, já que não se pode falar que as evoluções sistêmicas não ampliaram o acesso à Justiça, inclusive do réu em ação penal. Assim, não parece crível que a subjugação de normas positivadas que, em última análise, são benéficas aos réus, seja o único caminho para melhorar a “efetividade” do processo penal.
A prescrição não se reveste de direito único do acusado, é, principalmente, a válvula que impulsiona o Estado a atingir a satisfação de seu direito de punir, utilizando-se dos caminhos normativos que a democracia de direitos lhe proporciona. E é nesse particular que o afrouxamento das normas de prescrição – noves fora a já exposta condição de incompatibilidade com a lei – não parece ser condição benéfica ao Direito Processual.
Retardar o cumprimento do direito/dever estatal em construir e executar a punição ao indivíduo, ainda mais em momento no qual dispõe de todos os mecanismos possíveis para sua concretização, não significa elevar a efetividade do processo. Em sentido absolutamente contrário, o que se projeta é o aumento da dificuldade em concluir o processo nas duas primeiras instâncias, pois não subsistirá o risco processual que obriga o Estado a agir e protege a sociedade de punições temporalmente muito dissociadas do fato possivelmente praticado.
A legitimidade da punição é inequivocamente reduzida quando a mesma é imposta muitos anos, ou até décadas, após a ocorrência do fato típico culpável. A pessoa que praticou, a pessoa que possivelmente sofreu, o próprio estado das coisas, não são mais os mesmos do momento inaugural, o que acaba por reduzir a efetividade processual, e não a aumentar, pois esvazia os próprios fundamentos da pena.
Compreender a ampliação das causas interruptivas de prescrição como fato apto a moldar um Direito Penal “mais efetivo” é apenas admitir a completa incapacidade do Estado em executar suas próprias pretensões, não devendo jamais, essa responsabilidade, ser repassada ao indivíduo, sob pena de subverter-se diametralmente a lógica do direito processual penal.
Afinal, o que é efetividade do processo, que não a concretização do Direito com observância das garantias normativas? Isso, sim, é um processo efetivo em seus objetivos.
Conclui-se, portanto, que o precedente cunhado pelo STF nos autos do HC nº. 176.473/RR, inaugurando a tese de que o acórdão meramente confirmatório da condenação também deve ser causa interruptiva da prescrição pra fins de aplicação do artigo 117, IV, CP, não se reveste nem de adequação à lei, uma vez que o legislador detinha esta liberalidade, mas não previu expressamente a hipótese no bojo do referido artigo; nem de conveniência prática pois, conforme exposto, não é a ampliação do Estado Penal perante o indivíduo que vai fazer com que o processo penal se torne mais efetivo, ainda mais em momento evolutivo no qual há inúmeras ferramentas para que isso aconteça da forma mais ampla possível.
Artigo publicado no Canal Ciências Criminais.
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