Somente se proíbe condutas humanas

Somente se proíbe condutas humanas: um estudo sobre a perspectiva ex ante e a imputação no Direito Penal

O presente artigo busca demonstrar o porquê de o exame do desvalor da ação na tipicidade dever ser regido pela perspectiva ex ante. Em um segundo momento, busca-se, a partir das premissas assentadas, refletir acerca das possibilidades de desenvolvimento da teoria da imputação do tipo penal. Ao final, demonstra-se que as reflexões empreendidas não inviabilizam tipos penais que tutelam bens jurídicos coletivos, mas, pelo contrário, podem contribuir para uma adequada epistemologia dessa categoria.

Artigo publicado originalmente na Revista do Instituto de Ciências Penais, volume 5, de maio de 2020.

1. Introdução

Desde o advento das modernas teorias da imputação objetiva, o tipo objetivo – antes relegado à mera causalidade – ganhou destaque nos debates sobre a teoria do delito. Agora, por exemplo, são muitos os que sustentam que, para ser possível afirmar a existência de uma conduta típica de matar no sentido do art. 121 do Código Penal (CP), não basta somente constatar um nexo causal entre conduta e resultado, mas também aferir que a conduta cria um risco juridicamente desaprovado e que esse risco criado foi o que se realizou no resultado1. Assim, os pais de um homicida não realizam um ato típico de matar ao conceberem a criança que, anos depois, mataria uma pessoa, apesar de estar presente o nexo de causalidade. Aqui, é inserido um exame valorativo restritivo: o ato de conceber uma criança não cria um risco relevante para a ocorrência de um resultado morte, na medida em que é muito pouco provável que uma criança venha a se tornar, no futuro, uma homicida, sendo, portanto, um risco remoto, insuficiente para afirmar o que a doutrina chama de desvalor da ação (ou da conduta).

No exame do desvalor da ação, objetiva-se afirmar se, sob o prisma jurídico-penal, a conduta praticada pelo agente é ou não um ato prototípico do verbo contido no tipo penal. Em outras palavras, objetiva-se aferir se, aos olhos de um observador racional, seria razoável supor a adequação da conduta em provocar o resultado penalmente relevante. Normalmente, essa aferição é feita por meio de alguma figura dimensional objetiva (objektive Maßfigur), podendo esta ser, por exemplo, um membro do círculo social do autor, um homem médio, um homem prudente, entre outros. Permanecendo no exemplo do futuro homicida, trata-se de aferir se um observador racional julgaria que um ato de conceber uma criança é ou não uma conduta proibida pelo art. 121, CP. Conforme já dito, o risco de gerar um homicida é demasiadamente remoto, de modo que se trata de um risco irrelevante e, portanto, não é uma conduta proibida pelo tipo penal do homicídio.

Segundo a opinião dominante, a aferição do desvalor da conduta limita-se aos dados disponíveis ex ante, isto é, àquelas informações que um homem prudente (ou qualquer outra figura dimensional objetiva) poderia conhecer no momento da prática da conduta2. Ademais, considera-se que, nos casos em que há conhecimentos especiais, ou seja, quando o autor sabe de fato mais do que saberia um homem prudente comum, esses dados também devem ser considerados no exame ex ante. Diante desse panorama, é debatida a correção não só da consideração de conhecimentos especiais, mas da própria limitação aos dados disponíveis ex ante. O presente trabalho tem como escopo examinar este último problema: o desvalor da ação deve ser aferido limitando-se aos dados ex ante? Em caso afirmativo, deve limitar-se àquilo que um homem prudente comum conheceria ou considerar também todos os dados que o agente pôde conhecer?

Essa tarefa inicia-se com uma breve exposição dos argumentos contrários à perspectiva ex ante (1). Em seguida, exponho as razões que respaldam a perspectiva ex ante no nível do desvalor da conduta (2 e 3). A partir dessas reflexões, observo os méritos (4) e as imprecisões (5) da teoria da imputação objetiva pensada principalmente por Claus Roxin. Após, aponto, a partir da concepção segundo a qual o direito tem como finalidade a harmonização de esferas de liberdade individuais, um novo norte para a teoria da imputação no direito penal (6). Por fim, demonstro como as razões apresentadas não contradizem a possibilidade de existência de tipos que tutelam os chamados bens jurídicos coletivos, mas possibilitam um novo caminho para a interpretação desses delitos (7).

2. O problema

Se o desvalor da conduta nada mais é do que a criação ou incremento de um risco juridicamente desaprovado, por que é imperioso limitar o exame do risco aos dados disponíveis ex ante? Em outras palavras, a criação ou incremento de um risco é um dado estritamente objetivo no sentido de dispor de qualquer dado da psique do autor ou, pelo contrário, está limitado àquilo que era cognoscível ao agente? No caso de se defender a segunda opção, não haveria uma inadequada antecipação da análise do tipo subjetivo? É possível, limitando-se a análise do risco a dados ex ante, continuar chamando a imputação objetiva de objetiva? Alguns autores respondem a muitas dessas questões de forma negativa.

Segundo Struensee, a “traiçoeira procedência da dogmática da imprudência é terminologicamente encoberta”3 na imputação objetiva, de modo que todos os elementos da imprudência são transferidos para o tipo objetivo. Ele aduz, ainda, que os casos de cursos causais extraordinários, atípicos ou remotos não são nada mais do que ocasiões em que o autor não conhece suficientemente o perigo, não havendo um dolo adequado àquele contexto causal, sendo, assim, situações de erro de tipo4. Struensee prossegue posicionando-se contrariamente ao instituto do conhecimento especial no tipo objetivo, pois tais casos não são meramente excepcionais e somente demonstram que tanto o delito doloso quanto o culposo dependem sempre da representação do autor5, além de aduzir que inexistem critérios para determinar quais conteúdos de consciência pertencem ao conhecimento especial e quais pertencem ao tipo subjetivo6. O conhecimento especial nada mais seria que uma categoria provisória da qual a dogmática não teria encontrado lugar na violação do dever de cuidado na imprudência e que induz ao erro de crer que o juízo sobre a violação do dever de cuidado seria “objetivo”, abarcando somente de forma excepcional o conhecimento do autor7. Para Struensee, em suma, o tipo subjetivo deve conter todas as circunstâncias que definem o delito pertencentes ao âmbito psíquico do autor, enquanto o tipo objetivo deve conter todos os elementos necessários do delito que se encontrem fora da psique do autor8. Assim, o autor não é um crítico meramente da perspectiva ex ante, mas da própria teoria da imputação objetiva.

Para Burkhardt, o conceito de perigo, quando limitado a dados ex ante no desvalor da ação da imputação objetiva, possui uma terminologia enganosa, na medida em que o significado comum do termo “perigo” traduz uma situação objetiva, isto é, não influenciada pela representação de alguém9. Em outras palavras, o conceito comum de perigo não se limita aos dados acessíveis no momento da conduta, mas sim todos os dados objetivamente existentes. Assim como Struensee, Burkhardt considera que há uma inadequada mescla entre o objetivo e o subjetivo, na medida em que, com a consideração dos conhecimentos especiais, a doutrina adiciona elementos subjetivos (cognoscibilidade individual) a circunstâncias objetivamente cognoscíveis para o exame do desvalor da ação10. Burkhardt aduz, ainda, que o juízo de perigo ex ante viola o princípio da economia (Sparsamkeitsprinzip), na medida em que seria um conceito supérfluo para a imputação11, sobretudo por partir de um pressuposto possivelmente errôneo do ponto de vista da proibição, na medida em que esta pode ser inidônea para a proteção de um bem jurídico a partir de um juízo ex ante, mas idônea por um juízo ex post12. Ademais, Burkhardt assevera que a doutrina dominante insere no tipo objetivo, sob a rubrica da violação do dever de objetivo de cuidado, elementos subjetivos intrínsecos ao conceito, no sentido da falta de cuidado interna do agente, o que contribuiria para a confusão entre o objetivo e o subjetivo13. Das reflexões anteriores, o autor conclui assim que no tipo objetivo a avaliação sobre a criação desaprovada de um risco deve ser feita recorrendo a todos os elementos disponíveis ex post, não se limitando somente aos dados ex ante e eventuais incorreções devem ser tratadas no tipo subjetivo14.

Pelas razões acima aduzidas, um defensor da perspectiva ex ante no desvalor da conduta deve responder à seguinte pergunta: se o tipo é objetivo, por que limitar a avaliação somente aos dados cognoscíveis ao agente? Uma resposta é necessária na medida em que há uma realidade objetiva independente da subjetividade do indivíduo. Essa resposta passará por duas razões que possuem como ponto de partida o princípio impossibilium nulla obligatio est: (i) todo tipo penal representa um comando normativo com uma função de determinação, que deve ser possível de ser cumprido para que a obrigação seja válida; (ii) do ponto de vista da teoria da pena, não seria justo punir alguém pela não realização do impossível.

3. Impossibilium nulla obligatio est

Todo tipo penal estabelece uma obrigação, que será, traçando um paralelo com o direito civil, de fazer nos crimes omissivos e de não fazer nos delitos comissivos. Essa obrigação é dirigida a seres humanos, o que significa dizer, por exemplo, que uma cobra peçonhenta, após levar uma pessoa a óbito, não pratica uma ação de matar no sentido do art. 121, CP. O direito, afinal, tem a finalidade de viabilizar a convivência humana15 e somente seres humanos são capazes de agir conforme a comandos normativos. Essa obrigação estabelecida pelo tipo penal deve ser possível de ser realizada pelo indivíduo em razão do princípio jurídico impossibilium nulla obligatio est16, que prescreve que toda obrigação impossível de se realizar é nula17.

Dessa forma, entra em cena a função de determinação de uma norma de conduta, que, na linguagem da teoria das normas, significa dizer que toda norma tem como função orientar atos humanos e a consequência disso é que essa obrigação deve ter como ponto de partida a representação do destinatário da norma no momento do seu comportamento, para que ele possa assim decidir se age ou não conforme o dever18. Somente dessa forma a obrigação torna-se possível de cumprimento pelo indivíduo e, desse modo, é válida. Em outras palavras, um indivíduo, por exemplo, só pode cumprir a orientação normativa contida no art. 121, CP – “não mate!” – se a ele for possível conhecer a situação concretamente perigosa para a vida de alguém e, assim, decidir se cumpre ou não esse imperativo de não matar. Evidentemente, essa decisão individual não estará presente da mesma forma nos delitos culposos, sobretudo na culpa inconsciente, mas o importante aqui é focar não naquilo que foi efetivamente conhecido, mas no que o agente era capaz de conhecer se tivesse o cuidado devido.

Portanto, se a representação do agente é o ponto de partida do exame da norma de comportamento, a perspectiva ex ante é a única opção legítima na aferição do desvalor da conduta. O centro da questão é a concepção fundamental de que o direito só pode orientar comportamentos humanos e, para isso, é preciso que um indivíduo, ao menos, possa conhecer as circunstâncias em que o seu comportamento está inserido19. A impossibilidade de conhecer uma situação perigosa é uma barreira instransponível à imputação se o que se deseja é valorar um comportamento humano. Somente em abstrato todas as normas de conduta vigem o tempo todo, o que significa dizer que, no mundo dos fatos20, é preciso que uma determinada circunstância fática esteja presente e seja cognoscível ao indivíduo para que este tenha condições de conhecer o perigo de desrespeito ao imperativo normativo. Somente nesses termos torna-se possível que uma pessoa possa agir conforme o dever, isto é, tendo condições de optar por orientar ou não o seu comportamento à norma de conduta.

Ignorar isso é desconsiderar que o ser humano se diferencia dos outros seres conhecidos da natureza justamente por ser capaz de agir conforme máximas de conduta, afinal, “[q]uando um homem não pode escolher, ele deixa de ser um homem21. Assim, o exame do desvalor da conduta por meio de dados ex post em certa medida iguala o ser humano à cobra peçonhenta do exemplo citado acima. Em outras palavras, a não ser que se queira imputar à cobra peçonhenta a conduta descrita no artigo 121, CP, o critério correto, se impossibilium nulla obligatio est, é a concepção ex ante. Reconhecer isso equivale a constatar que a norma não se dirige a animais, plantas, minerais ou a fenômenos da natureza, mas somente a orientar condutas de seres humanos. Por isso, no famoso exemplo do sobrinho que recomenda ao tio um passeio num bosque e que o tio falece atingido por um raio num dia chuvoso, seria um absurdo afirmar que o golpe do raio é um injusto.

4. Considerações conforme a teoria da pena

Uma segunda linha argumentativa, que está diretamente ligada ao argumento da obrigação impossível, é de ordem deontológica: não é possível justificar ao indivíduo apenado a imposição da pena em razão do não cumprimento de uma obrigação impossível. E isso será fundamentalmente importante na medida em que todo injusto penal pressupõe a pena como consequência22, o que não pode ser desconsiderado, portanto, no momento da constituição do injusto. O argumento, aqui, prima facie só poderia ser feito de forma complementar ao acima aduzido, pois uma consideração conforme a teoria da pena, apesar de relevante para a constituição do injusto penal, na realidade pode ser realizada para qualquer momento da estrutura do delito, de modo que não serve para identificar per se o foco do problema em questão, isto é, sobre a limitação do exame do desvalor da conduta aos dados disponíveis ex ante.

Todavia, para este específico tema, uma argumentação conforme a teoria da pena tem per se relevância para o debate, na medida em que o direito penal, diferentemente de outros ramos, não permite responsabilidade objetiva. Isso significa que o direito penal é o ramo do direito que é mais influenciado pelo fato de que somente se proíbe condutas humanas. E isso tem relação direta com o fato de que somente no direito penal responde-se o injusto culpável com uma pena.

Essa resposta penal diferencia-se das respostas de outros ramos do Direito tanto quantitativamente quanto qualitativamente. O aspecto quantitativo é amplamente reconhecido e normalmente é abordado pela maioria dos manuais no momento de dissertar sobre o objeto da tutela penal e/ou a subsidiariedade ou ultima ratio do direito penal: este é o ramo cuja resposta é potencialmente mais dura23. Entretanto, é o aspecto qualitativo que aqui é fundamental, na medida em que a pena é não só a imposição de um simples mal sensorial, mas sobretudo é dotada de um desvalor ético-social que faz dela uma forma qualificada de resposta estatal24. Aqui há um reproche que é intrínseco ao injusto penal, de modo que o crime não é a mera causação de um resultado indesejado, mas é a sua realização de forma errônea. Pode-se dizer, dessa forma, que o injusto penal é para o Direito o que o pecado é para a religião, no sentido de que é necessariamente um comportamento humano errôneo.

A responsabilidade objetiva civil, isto é, aquela decorrente da simples causação de um dano, tem caráter meramente compensatório: a vítima teve o seu direito violado e por isso deve ser restituída pelo causador do dano. Para o direito penal, ao contrário, a reponsabilidade é eminentemente subjetiva, e isso tem repercussão para a constituição do injusto. Não à toa o deslocamento do dolo e da imprudência para a tipicidade é normalmente considerada uma das maiores – talvez a maior – contribuições do finalismo para o direito penal25. Hoje em dia parece ser absurdo afirmar, por exemplo, que um homicídio doloso é meramente a forma de culpabilidade mais grave do seu correspondente imprudente, de modo que o injusto penal doloso e o injusto penal culposo são duas formas distintas de praticar um comportamento errôneo cuja resposta é a pena.

Pelo aduzido até aqui, as boas razões estão a favor da limitação do desvalor da conduta aos dados ex ante. Afirmar a existência de um injusto penal quando o agente não tinha condições de conhecer o perigo é não só equiparar o ser humano a uma coisa, mas ignorar que o injusto penal nada mais pode ser do que um erro humano. A solução de Burkhardt de resolver eventuais imprecisões no tipo subjetivo, apesar de não levar manifestamente à exclusão da concepção ex ante do exame da tipicidade, simplesmente descarta os acertos da teoria da imputação objetiva, fazendo com que o método de imputação praticamente regrida ao que era no finalismo26. Em outras palavras, retornando ao exemplo exposto supra, uma cobra peçonhenta até praticaria uma ação objetiva de matar no sentido do art. 121, CP, mas não seria imputável pela falta do elemento subjetivo – o que já seria uma constatação potencialmente imprecisa, pois é sabido, por exemplo, que os animais também são dotados de cognição. Dizer que uma cobra objetivamente matou uma pessoa até pode ser razoável, mas dizer que ela praticou objetivamente um crime de homicídio dificilmente seria defendido por alguém.

Com isso, uma primeira constatação pode ser feita: o desvalor da ação deve limitar-se ao exame dos dados disponíveis ao autor naquele exato momento em que ele agiu. Todavia, ainda é preciso, mesmo que superficialmente, retornar ao exame do método da imputação objetiva, de modo a traçar um panorama de suas virtudes, bem como de suas deficiências. Com isso, torna-se possível olhar para o futuro com uma inabalável esperança: aproximar-se da verdade (mesmo que nunca se chegue) e, assim, diminuir a probabilidade de decisões injustas, sobretudo numa área em que a injustiça equivale ao pior dos males humanos: a punição de um inocente.

5. As virtudes da imputação objetiva

O exame do desvalor da ação, isto é, o da criação ou incremento de um risco juridicamente desaprovado de realização do resultado previsto no tipo penal, tem a virtude de mostrar que também nos delitos dolosos há a violação de um dever objetivo de cuidado. É o próprio Roxin que aduz que a sua teoria da imputação objetiva “permite, pela primeira vez, construir um sistema do ilícito culposo”27. Com a pretensão de uso das categorias referentes à criação de um risco juridicamente desaprovado em substituição dos critérios desenvolvidos pela doutrina do delito imprudente até então (evitabilidade, cognoscibilidade, violação do dever de cuidado etc), há a transferência desses critérios também para os delitos dolosos28. Dessa forma, a teoria da imputação objetiva consegue chegar à acertada conclusão de que todo injusto penal é violador de algum dever29 e que, nos casos de delitos de resultado, esse dever só pode ser o de cuidado com o bem tutelado pelo tipo penal. Isso porque nos delitos de resultado há uma distância espaço-temporal entre conduta e resultado, de modo que a ação esperada não pode ser a de não produzir um resultado. Em outras palavras, nos delitos de resultado, a ação não leva instantaneamente ao resultado. Por isso, a ação devida dos delitos de resultado deve ser justamente aquela que não cria ou incrementa um perigo ao valor tutelado pela norma ou que permanece dentro daquela zona de perigo que deve ser juridicamente tolerada num Estado orientado à proteção das liberdades humanas, isto é, que tem como fim a harmonização das esferas de liberdade individuais.

Com isso, um indivíduo que comete o injusto penal do homicídio doloso não só o faz porque mata alguém consciente do que faz, mas também porque viola um dever objetivo de cuidado com a vida alheia. O que a imputação objetiva faz é dar outra roupagem à ideia geral de dever objetivo de cuidado, que se converte justamente na criação ou incremento de um risco juridicamente desaprovado. Assim, de fato, abre-se caminho para uma construção mais precisa sobre o conteúdo desse dever de cuidado. A respeito disso, há a virtude de inserir na valoração sobre o dever o conteúdo das normas extrapenais de segurança, o princípio da confiança e a figura dimensional objetiva do homem prudente30. Com isso, é possível uma avaliação mais justa, pois nem todo ato perigoso pode ser desaprovado pelo ordenamento jurídico.

Dessa forma, se bem explorado, esse método tem o potencial de simplificação da imputação, na medida em que traça um critério mínimo geral para todos os delitos (não só os chamados delitos de resultado), que é o próprio exame do desvalor da conduta (os delitos de resultado possuem um plano a mais: o do desvalor do resultado), que deve ser limitado pela perspectiva ex ante. Portanto, há o potencial de realização do princípio da economia, de modo que a imputação pode ganhar em simplicidade e ser facilmente aplicável. Além disso, essa simplicidade reduz a probabilidade de contradições internas, pois um método mais simples tende a ser mais fácil de ter seus eventuais problemas solucionados. Muitos na doutrina, inclusive, parecem subvalorizar essa virtude de potencial de simplificação do método da imputação com a generalização da aferição da realização do dever de cuidado.

6. Os defeitos da imputação objetiva

Um primeiro problema que um defensor da teoria da imputação objetiva deve enfrentar surpreendentemente passa despercebido no atual debate: de uma perspectiva global, apesar do potencial de simplificação apontado, a imputação objetiva, nos moldes defendidos pela opinião dominante, de fato viola o princípio da economia. Para demonstrar como isso ocorre, divido a imputação da tipicidade nos delitos de resultado em quatro fases: (i) nexo de causalidade; (ii) desvalor da ação (criação ou incremento de um risco juridicamente desaprovado); (iii) desvalor do resultado (realização do risco criado ou incrementado); (iv) verificação do dolo31. As fases 1 e 2 (nexo de causalidade e desvalor da ação) são condições necessárias para qualquer imputação, na medida em que, quando ausentes, sempre afastam a tipicidade. A fase 3 (desvalor do resultado) somente afasta a imputação nos delitos culposos, enquanto a fase 4, quando respondida de forma negativa (ou seja, pela ausência de dolo), leva à exclusão da imputação somente quando ausente a fase 3 ou quando não existir o delito na modalidade imprudente.

Duas das fases (1 e 3) são realizadas desde uma perspectiva ex post, isto é, analisando todas os dados existentes, enquanto as outras duas fases (2 e 4) limitam-se aos dados ex ante, ou seja, aqueles que estavam disponíveis ao agente no momento da sua conduta. Dessa forma, a opinião dominante realiza uma espécie de movimento pendular, transitando entre as perspectivas ex ante e ex post: primeiro ex post, depois ex ante, depois novamente ex post e, por último, novamente ex ante. Parece incontroverso que esse movimento poderia ser mais simples caso não fosse necessário ficar alterando a perspectiva tantas vezes, em um verdadeiro movimento de zigue-zague.

Esse movimento não é só estranho, mas tem consequências concretas. Se a fase 1, ou seja, o exame do nexo de causalidade, possui uma resposta negativa, já é possível afirmar a atipicidade da conduta. Por exemplo, veja-se o caso de uma empresa que comete algum crime ambiental em decorrência de uma decisão colegiada do seu órgão diretor. Aqui, o debate acerca do nexo causal entre os votos dos diretores e o dano ambiental tem como escopo a fase 1 e uma resposta negativa leva à atipicidade penal do voto do diretor. Na fase 2, o exame do desvalor da ação, uma resposta negativa também leva à atipicidade da conduta. Aqui, um exemplo clássico é o dos pais de um futuro homicida, visto que o ato de conceber uma criança não está juridicamente desaprovado e, portanto, não há desvalor da conduta. Entretanto, o que era simples complica-se na fase 3, em que se examina o desvalor do resultado, pois uma resposta negativa não afasta de plano a tipicidade, na medida em que essa definição depende da ausência de dolo, que só é verificada na fase 4. Um exemplo simbólico é da pessoa ferida por alguém e que acaba morrendo não em decorrência do ataque, mas de um acidente de trânsito sofrido na ambulância no caminho para o hospital, em razão de erro crasso do motorista. Aqui, o risco de morte criado pelo primeiro agressor não foi aquele que se realizou no resultado, de modo que a ele deve ser imputado homicídio tentado (se a agressão foi dolosa) ou lesão corporal culposa32. Portanto, há a passagem de uma fase para outra em que não há uma definição sobre o “se” da imputação. A questão aqui é que inexistem boas razões para a manutenção de uma movimentação dessas, que só ocorre em decorrência de uma suposta distinção cartesiana entre objetivo e subjetivo, em que aparentemente nem sequer se cogitou a possibilidade de essa não ser a melhor das possibilidades.

Ademais, a estrutura atual da imputação torna-se vulnerável ao mais óbvio dos ataques: se a imputação é objetiva, por que a inclusão de dados da psique do agente quando na presença de conhecimentos especiais? Essa questão levou, por exemplo, a uma corrente de autores, dos quais se destaca Jakobs33, a defender a completa desconsideração dos conhecimentos especiais do tipo objetivo, o que equivale, no fim das contas, ao abandono da perspectiva ex ante no desvalor da ação, o que já foi criticado acima. O debate acerca dos conhecimentos especiais só ganhou tamanha relevância justamente em razão do enfoque desnecessário numa divisão entre tipo objetivo e tipo subjetivo. Se, por um lado, uma mera mudança de perspectiva ainda pode não solucionar o problema, por outro, pode torná-lo muito menos importante do que parece atualmente, na medida em que, de fato, seria absurdo não considerar os conhecimentos especiais no nível do desvalor da conduta. A nível de esclarecimento: a questão dos conhecimentos especiais não é um defeito intrínseco da teoria da imputação objetiva, mas simboliza bem a confusão que pode advir de uma má compreensão das categorias da imputação (aqui, de uma divisão que deveria ser meramente classificatória entre tipos objetivo e subjetivo)34.

Um segundo problema é que a teoria da imputação objetiva, tal qual pensada hoje, parece fundar-se em pressupostos exclusivamente consequencialistas. Isso significa dizer que um grande âmbito dos espaços de liberdade deixa de ser um exercício de direito e passa a tornar-se uma concessão estatal aos indivíduos em razão de considerações de conveniência. Em outras palavras, a liberdade passa a ser considerada mediante a sua utilidade social, e não como um valor intrínseco35. Não à toa o instituto do risco permitido é visto pela opinião dominante como fruto da ponderação entre o interesse sobre a proteção de bens jurídicos e o interesse geral de liberdade36. Faz-se, dessa forma, uma conta sobre a utilidade social de determinada atividade e o interesse difuso de proteção de bens jurídicos, de modo que determinadas atividades socialmente desejadas devem ser mais toleradas por serem úteis. Assim, a teoria da imputação objetiva parece ignorar que o exame de utilidade deverá ser sempre limitado pelos princípios deontológicos de justiça, de modo que não se pode dar uma fundamentação consequencialista para um instituto fundado em razões de respeito. Em suma, se a liberdade humana é um valor em si, ela não pode ser uma mera questão de conveniência.

Um exemplo simbólico é o atual tratamento dado ao princípio da confiança, que, segundo muitos dos adeptos da imputação objetiva, seria fruto de uma ponderação de interesses37. Ignora-se, assim, que, na medida em que a onisciência não é um predicado humano, todos os indivíduos precisarão em alguma medida confiar na conduta correta de terceiros se o que se deseja é a garantia da denominada liberdade civil38. E que a liberdade civil é uma conditio sine qua non de toda concepção de sociedade organizada, é possível inferir de quaisquer das proposições contratualistas já realizadas até hoje. Em outras palavras, o desejado equilíbrio entre esferas de liberdade nunca será alcançado se os indivíduos não puderem confiar que os demais agirão conforme o dever, tendo em vista que, em última instância, dificilmente alguém sequer sairia de casa se não confiasse em alguma medida que não teria seus direitos violados.

A consequência dessa forma de proceder é que a teoria da imputação objetiva, nos moldes atuais, aparenta ignorar a existência de direitos subjetivos. Isso fica claro a partir do momento que se percebe que, nos moldes pensados por Roxin, a participação em autocolocação em risco responsável de terceiro, assim como a heterocolocação em perigo consentida responsavelmente, são categorias do que o autor chamou de alcance do tipo, isto é, não repercutem no exame do desvalor da ação39. Essa visão está fundamentalmente equivocada pois não explica por que o direito valora negativamente uma conduta de contribuição ao exercício de um direito subjetivo. Explicado de melhor forma: a pessoa que responsavelmente dispõe do próprio bem na realidade somente exerce a função de gozo do próprio direito subjetivo, na medida em que nesta está incluído dispor do bem que é objeto do seu direito. A desconsideração dos direitos subjetivos é uma grande falha metodológica da teoria, na medida em que o seu próprio arquiteto, ao nomear que a função do direito penal é subsidiariamente garantir os pressupostos para uma sociedade pacífica, aproxima-se da ideia geral de harmonização de esferas de liberdade40. E esferas de liberdade nada mais são do que os direitos subjetivos que são deixados em segundo plano pela teoria da imputação objetiva.

Por fim, é preciso esclarecer que a concepção geral da ponderação de interesses não é uma ideia errada, mas somente imprecisa em razão do seu grau demasiado de abstração. A ideia não está equivocada, primeiramente, porque, de fato, não existem direitos absolutos: não seria correto um motorista que acaba de atropelar um pedestre afirmar que a sua atitude é lícita na medida em que ele somente exerceu seu direito de propriedade do veículo. Assim, existe uma certa margem de liberdade humana que está suscetível de ponderações, mas somente na medida em que a atividade em questão constitui um perigo a direitos subjetivos alheios. Portanto, aqui há uma busca pela não contradição: o direito de um não pode colocar em perigo o direito de outro, ou no jargão popular: “a minha liberdade termina onde a sua começa”41. De qualquer forma, já não se trata de uma mera “utilidade social” pura e simples, visto que os direitos subjetivos devem entrar na equação. Em segundo lugar deontologia e consequencialismo não são logicamente excludentes, sendo dificilmente possível uma teoria ética que prescinda de algum dos dois42. Isso se acentua tendo em vista a natureza instrumental e teleológica de um Estado: não é possível que a atividade estatal não se volte aos seus fins. Dessa forma, à luz da dignidade humana, o que deve haver é uma precedência da deontologia sobre o consequencialismo: ali onde o dever de respeito se coloca, o consequencialismo nada pode dizer. Assim, considerações consequencialistas são bem-vindas somente na medida em que respeitem o ser humano como titular de direitos.

7. Uma nova esperança: lineamentos para uma imputação direcionada à harmonização de esferas de liberdade

O futuro da imputação da tipicidade não pode abandonar os ganhos obtidos com a teoria da imputação objetiva e, ao mesmo tempo, deve reparar os seus defeitos. Segundo vejo, há, fundamentalmente, três tarefas principais: (i) simplificar o método de imputação (entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem); (ii) fundamentar a imputação com o real fim do direito: a harmonização das esferas de liberdade individuais; (iii) consequentemente à tarefa ii, incluir os direitos subjetivos no método da imputação do tipo.

Para realizar a primeira tarefa, um caminho parece promissor: abandonar a divisão cartesiana e meramente classificatória entre imputação do tipo objetivo e do tipo subjetivo. Com isso, é possível simplificar a imputação da tipicidade para aquilo que realmente importa: o desvalor da ação e o desvalor do resultado. Assim, uma primeira possibilidade de simplificação seria alcançada se a imputação do tipo se resumisse a dois níveis: (i) no primeiro nível, o da perspectiva ex ante, afere-se o desvalor da conduta, primeiramente numa dimensão objetiva, que nos delitos de resultado corresponde à criação ou incremento de um risco juridicamente desaprovado e, caso positivo, verifica-se, em segundo lugar, a dimensão subjetiva, isto é, a existência ou não de dolo; (ii) no segundo nível, o da perspectiva ex post, que só está presente nos delitos de resultado, examina-se, primeiramente, a existência de um nexo causal entre conduta e resultado e, em caso positivo, afere-se o desvalor do resultado, isto é, se o risco criado ou incrementado foi aquele que se realizou no resultado.

Essa abordagem possui uma série de vantagens. A primeira delas consiste no fato de que não haveria mais aquele movimento de zigue-zague criticado supra, harmonizando a imputação, inclusive, com a lógica temporal das coisas: todo delito de resultado possui uma conduta e, posteriormente, algum resultado dela decorrente. Logo, é mais razoável avaliar antes o desvalor da conduta para, após, analisar a sua relação com o resultado. Dessa forma, a aferição também do dolo deveria ser feita antes do desvalor do resultado, pois, no mundo da vida, também a relação subjetiva do indivíduo com a sua conduta precede o resultado. Além disso, as polêmicas quanto à perspectiva ex ante e em relação aos conhecimentos especiais perdem força, na medida em que o desvalor da ação considera também os elementos subjetivos. Mantém-se também o maior ganho da teoria da imputação objetiva: todo delito, seja ele doloso ou imprudente, pressupõe a violação de um dever objetivo de cuidado.

Poder-se-ia replicar essa configuração principalmente por duas vias: (i) afirmar que esse esboço de mudança da imputação do tipo leva a uma confusão entre o objetivo e o subjetivo; (ii) sustentar que o exame de causalidade deve preceder a imputação, seja porque o primeiro possui natureza ontológica, enquanto a segunda opera no plano normativo, seja porque não faria sentido examinar o desvalor de uma conduta que não se encontra na cadeia causal do resultado. Todavia, ambas as linhas argumentativas parecem, no mínimo, não ser per se suficientes a afastar a simplificação da imputação proposta acima, e isso pelas seguintes razões.

Se, por um lado, de fato há, a uma primeira vista, uma aparente mescla entre objetivo e subjetivo, por outro, essa confusão mostra-se inexistente quando o devido escrutínio é realizado. Isso porque a simplificação aqui proposta não altera per se aquilo que já existe. Em outras palavras, somente há uma alteração na ordem da imputação, a ser feita nos seguintes moldes, usando como stardand os delitos de resultado: (i) criação ou incremento de um perigo juridicamente desaprovado; (ii) existência ou não de dolo; (iii) nexo causal; (iv) realização do perigo criado ou incrementado no resultado. Há, portanto, somente uma mudança na ordem, de modo a ficar mais adequada à lógica espaço-temporal do evento (afinal, a conduta e o dolo do agente são temporalmente anteriores à concretização do nexo causal, isto é, ao resultado), onde i e ii correspondem ao desvalor da conduta (perspectiva ex ante) e iii e iv ao nexo causal e ao desvalor do resultado (perspectiva ex post). Ademais, mesmo que fosse o caso de uma mescla entre o objetivo e o subjetivo, essa mescla não é um evidente mal em si, isto é, dependeria de boas razões para justificar como essa confusão prejudicaria a imputação.

A segunda hipotética réplica, de que o exame da causalidade deve preceder a imputação normativa para evitar confusões, traz uma questão mais controversa. Por um lado, a proposta não consiste numa mistura entre as categorias do nexo causal e do desvalor do resultado, mas somente uma alteração na ordem da imputação. Assim, após o exame do desvalor da ação e do dolo, verifica-se o nexo causal (ontológico) para, posteriormente, caso a resposta seja positiva, analisar se há desvalor do resultado. As próprias consequências de cada análise impediriam uma inadequada mescla, na medida em que a ausência de nexo causal afasta a imputação, enquanto a ausência de desvalor do resultado permite a imputação por tentativa, caso o delito seja doloso.

Por outro lado, é possível arguir que o problema não está na mescla entre o ontológico e o normativo, mas sim na lógica da coisa: o que não está na cadeia causal não poderia ser objeto da imputação penal, de modo que um elemento logicamente precede o outro. Entretanto, uma possível tréplica seria no sentido de que ao direito penal não são relevantes aquelas condutas que fazem parte de uma cadeia causal, mas que não são juridicamente desaprovadas43. De uma perspectiva lógica, como o nexo causal inclui (ou não) a conduta do agente, não é possível afirmar, a partir de uma reflexão superficial, que há uma relação natural de precedência de uma categoria sobre a outra. Dessa forma, entra-se em algo análogo a um dilema de causalidade: o que deve vir antes, a aferição do nexo causal ou a análise do desvalor da conduta? Dessa forma, há uma segunda possibilidade de simplificação da imputação do tipo, desta vez em três níveis: (i) nexo causal; (ii) desvalor da conduta (incluindo a aferição do dolo); (iii) desvalor do resultado. Aqui, a resposta negativa à fase i exclui a possibilidade de imputação; a resposta negativa à fase ii também exclui a imputação de plano, enquanto há duas possibilidades de resposta positiva: a resposta positiva dolosa e a resposta positiva imprudente (ou culposa); no caso de resposta positiva dolosa, a negação da fase iii permite a imputação por delito tentado, enquanto no caso de resposta positiva imprudente, a negação da fase iii exclui a imputação.

Não posso, nesta sede, tomar um posicionamento acerca de qual das alternativas de simplificação deve ser preferível, pois isso demandaria uma reflexão mais profunda sobre temas que extrapolam o espaço disponível neste estudo. Com isso, uma resposta conclusiva desse ponto deve ficar, aqui, em aberto.

Quanto ao problema da fundamentação, a missão aqui é abandonar a imprecisa concepção da ponderação entre o interesse geral de liberdade e a proteção de bens jurídicos, de modo a adotar a ideia correta e mais precisa da harmonização entre esferas de liberdade. Isso significa que dirigir um carro não pode ser um risco permitido por se tratar de uma atividade vista como socialmente útil. Pelo contrário, dirigir um carro significa o livre exercício da função de gozo do direito subjetivo à propriedade do carro. Todavia, no mundo da vida, as liberdades, em seu estado natural, estão suscetíveis a entrar em colisão. Em outras palavras, o motorista que exerce o seu direito de uso do automóvel pode, em algum momento, invadir uma esfera de liberdade alheia, atropelando alguém ou danificando a propriedade de outrem, por exemplo. Assim, o ordenamento jurídico precisa harmonizar as esferas de liberdade, de modo a garantir tanto o direito do motorista de uso do seu carro, como os direitos de terceiros de não terem as suas esferas de liberdade invadidas pelo motorista. Aqui, há a busca pela realização daquilo que se denominou liberdade civil, que é aquela decorrente da harmonização das esferas de liberdade individuais. Com isso, a liberdade humana não é meramente um meio para um fim socialmente útil, mas é ela um fim em si mesmo. Com isso, está respeitado o postulado kantiano da proibição de instrumentalização do ser humano, isto é, da dignidade da pessoa humana44.

Aqui, busco aplicar a Navalha de Occam: em vez de adotar a já citada solução proposta por Greco em conferir dois fundamentos ao instituto do risco permitido (esfera imponderável da vida privada e ponderação entre o interesse geral de liberdade e a proteção de bens jurídicos)45, proponho a simplificação dos pressupostos do instituto para a ideia geral da harmonização entre esferas de liberdade. Esferas de liberdade nada mais são do que direitos subjetivos e, portanto, os direitos à privacidade e à esfera imponderável da vida privada já estão incluídos na ideia fundamental de harmonização entre esferas de liberdade. Portanto, até pela perspectiva lógica da simplificação das premissas, a opção aqui proposta é a preferível.

Partindo desse pressuposto, uma conclusão natural é que atos de auxílio à autocolocação em perigo responsável de terceiro ou de heterocolocação em perigo consentida46 não podem ser avaliados negativamente, de modo que são casos a serem aferidos já no nível do desvalor da conduta. Isso porque colocar-se em perigo nada mais é do que uma dimensão da função de gozo do direito subjetivo ao próprio corpo, de modo que não há, nessas hipóteses, invasão a esferas de liberdade individuais4748. Dessa forma, como pressuposto geral tem-se a seguinte proposição: não é qualquer perigo que deve ser juridicamente desaprovado, mas somente aquele perigo que represente, por um lado, a extrapolação da própria esfera de liberdade e, por outro, uma invasão indevida na esfera de liberdade alheia (aqui, no caso de delitos contra bens jurídicos individuais). Nesse sentido, portanto, a contribuição a uma livre disposição de direito não pode ser valorada negativamente pelo direito penal.

8. Breve excurso: os delitos contra bens jurídicos coletivos

Um leitor mais atento terá percebido que, se os direitos subjetivos devem ser a pedra angular da imputação, então os olhares do direito penal voltam-se aos bens jurídicos individuais. Com isso, surge uma possível questão: o que fazer com os delitos contra bens jurídicos coletivos, que se caracterizam justamente por não dizerem respeito a indivíduos especificamente49? Estes devem ser afastados in totum? A resposta aqui deve ser negativa, mas só poderá ser ensaiada de forma resumida. Primeiramente, porque nenhum defensor da teoria mais favorável à autonomia dos bens coletivos em relação aos individuais, a teoria dualista do bem jurídico, discorda dos pressupostos gerais aqui expostos, isto é, que é o Estado que existe para o ser humano e não o contrário50. Em segundo lugar, pois não há uma contradição lógica entre o pressuposto geral da harmonização entre esferas de liberdade e a proteção de bens jurídicos coletivos, desde que a tutela destes bens tenha como fim último essa harmonização, isto é, a viabilização de uma convivência livre e pacífica entre os cidadãos.

Os antigos partidários da teoria da lesão de direitos como conceito material de delito, com especial destaque ao jurista alemão do fim do século XVIII e início do século XIX, Paul Johann Anselm von Feuerbach, buscavam resolver a questão asseverando que o Estado também é titular de direitos subjetivos51. De modo análogo, seria prima facie possível sustentar também um direito subjetivo da coletividade52. Todavia, essas possibilidades não são adequadas, pelas razões expostas a seguir.

O primeiro grande problema de uma abordagem dessas é que ela dá margem a considerações coletivistas que violariam o pressuposto geral de que o indivíduo é um fim em si mesmo. Isso porque não raras serão as vezes em que a construção de um “direito da coletividade” entrará em conflito com direitos subjetivos. Veja-se o exemplo do suposto bem jurídico “saúde pública” nos delitos de drogas: se a saúde pública passasse a ser considerada um direito subjetivo da coletividade, este suposto direito entraria em conflito com a função de gozo do direito subjetivo individual ao próprio corpo. Assim, e isso é o que importa, impedir o uso de drogas por meio do art. 28 da Lei 11.343/06 recorrendo a um direito coletivo à saúde pública equivale a impedir que a pessoa disponha do seu próprio corpo, de modo que aqui haveria uma colisão entre direitos. O grande problema, aqui, é que a coletividade não é uma entidade homogênea e, conforme assevera corretamente Nozick53, somente há pessoas individuais, diferentes, com vidas próprias, de modo que sacrificar a autonomia de um indivíduo em nome da coletividade nada mais é do que sacrificar a autonomia de uma pessoa em benefício dos outros. Como direitos subjetivos nada mais são do que esferas de liberdade juridicamente protegidas, dificilmente seria cognoscível um conceito de esfera de liberdade da coletividade.

Um conceito de direito subjetivo do Estado traz outro tipo de complicação. Aqui, ignora-se que o Estado é uma criação humana de natureza instrumental e, por isso, não é um fim em si mesmo. Por sua natureza instrumental, dificilmente seria possível defender a titularidade estatal de algum direito e, conforme já exposto, direitos subjetivos nada mais são do que esferas de liberdade juridicamente garantidas. O Estado é, assim, um meio para a harmonização das esferas de liberdade individuais e não detentor de alguma dessas esferas. Defender um direito subjetivo estatal equivaleria, por exemplo, a admitir a legítima defesa de bens jurídicos coletivos, o que, segundo a opinião dominante corretamente aduz54, não seria correto55. Em suma, uma aceitação de direitos subjetivos estatais somente esvaziaria o conceito de direito subjetivo e corromperia o seu fundamento, que é a liberdade humana.

Com isso, outro caminho é necessário para conceber bens jurídicos coletivos. Como o tema dos bens coletivos extrapola o objeto principal deste estudo, só poderei ensaiar uma resposta de forma superficial. Aqui, o trajeto é simples: bens jurídicos individuais são o objeto direto dos direitos subjetivos, enquanto bens jurídicos coletivos são condições de viabilização do exercício dos direitos subjetivos56. Por exemplo, veja-se os bens ligados às atividades estatais, como a administração pública ou a organização da justiça: se o Estado é um instrumento do exercício dos direitos subjetivos, a proteção de bens relacionados à atividade estatal protege, de forma mediata ou indireta, os direitos subjetivos. O mesmo pode ser verificado no caso do meio ambiente: um meio ambiente protegido é, em última instância, condição de existência da vida no planeta e, por consequência lógica, dos direitos subjetivos (inclusive das gerações futuras). Essa concepção demonstra o acerto das propostas de Schünemann57 e Greco58: não há proteção de bens coletivos quando bens individuais estão diretamente em jogo.

Portanto, o caminho aqui superficialmente indicado não só não contradiz a proteção de bens coletivos, mas, pelo contrário, tem o potencial de oferecer diretivas para uma correta epistemologia dos bens jurídicos coletivos. Em outras palavras, critérios para a aferição de legitimidade de bens coletivos declarados podem partir da concepção geral segundo a qual os bens coletivos devem possuir relação mediata com direitos subjetivos, enquanto os bens individuais são o objeto direto da função de gozo dos direitos subjetivos. Se há um bem jurídico individual afetado pela conduta proibida, não só não há sentido em postular um bem coletivo, mas essa postulação poderia ser perigosa para o exercício da função de gozo do direito subjetivo pelo seu titular. Desse modo, há uma inversão no ônus da justificação: agora é o poder público que deve justificar por que está interferindo na função de gozo dos direitos subjetivos.

9. Conclusão

A título de conclusão, tem-se o seguinte panorama das reflexões empreendidas acima:

– A análise do desvalor da conduta deve ser regida pela perspectiva ex ante fundamentalmente por duas razões: (i) se a norma de conduta inserida no tipo penal se dirige a indivíduos, isto é, se o ordenamento jurídico pretende comunicar-se com seres humanos, o agente deve ter condições de conhecer a situação de perigo para, assim, poder decidir se respeita ou não a norma de conduta; e (ii) se o direito penal é o ramo que somente é acionado diante de condutas humanas injustas e o ser humano não é onisciente, o injusto só pode se materializar diante de situações onde o agente tinha condições de conhecer o perigo da sua conduta.

– A teoria da imputação objetiva trouxe contribuições importantes à imputação do tipo penal, sobretudo ao possibilitar que se veja com mais clareza que todo injusto penal é violador de algum dever e que, nos delitos de resultado, esse dever deve referir-se ao perigo criado.

– A partir dos ganhos obtidos com a citada teoria, é preciso adequar a imputação do tipo penal aos pressupostos gerais do Direito, sobretudo no que tange ao risco permitido, que deve ser visto como materialização da concepção geral de que o Direito serve à harmonização de esferas de liberdade, inserindo assim, no método de imputação, a observação dos direitos subjetivos.

– Ademais, é possível simplificar a estrutura da imputação, sobretudo trazendo a observação do tipo objetivo já no exame do desvalor da conduta.

– Por fim, uma interpretação à luz dos direitos subjetivos pode trazer mais clareza na interpretação de bens jurídicos coletivos, que devem possuir relação mediata com direitos subjetivos, enquanto os bens individuais possuem uma relação imediata com os direitos subjetivos, por serem os objetos diretos da sua função de gozo.


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1 Por todos, cf. GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 25-31.
2 Ibidem, p. 33 e ss.
3 Tradução livre. STRUENSEE, Ebehard. Acerca de la legitimación de la imputación objetiva como categoría complementaria del tipo objetivo. Trad. Fabricio Guariglia. Revista Peruana de Ciencias Penales, Lima, v. 3, n. 6, p. 751-772, 1998, p. 755.
4 Ibidem, p. 764-765.
5 Ibidem, p. 765.
6 Ibidem, p. 771.
7 Ibidem, p. 771.
8 Ibidem, p. 768.
9 BURKHARDT, Björn. Conducta típica y perspectiva ex ante. A la vez, una aportación contra la “confusión entre lo subjetivo y lo objetivo”. Trad. Nuria Pastor Muñoz. In: WOLTER, Jürgen; FREUND, Georg (orgs.). El sistema integral del derecho penal. Madri: Marcial Pons, 2004, p. 154-155.
10 Ibidem, p. 158-159.
11 Ibidem, p. 165.
12 Ibidem, p. 167.
13 Ibidem, p. 170-188.
14 Ibidem, p. 190-192.
15 Por exemplo, cf. o conceito kantiano de direito: “O direito é, pois, o conjunto de condições sob as quais o arbítrio de um pode ser reunido com o arbítrio do outro segundo uma lei universal da liberdade.”. KANT, Immanuel. Princípios metafísicos da doutrina do direito. Trad. Joãosinho Beckenkamp. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 34.
16 Esse mesmo brocardo pode ser expresso de outras formas, como obligatio impossibilium nulla est ou impossibilium est nulla obligatio.
17 Cf., por exemplo, PUFENDORF, Samuel. The Political Writings of Samuel Pufendorf. Trad. Michael J. Seidler. Oxford: Oxford University Press, 1994, p. 118.
18 Cf. RENZIKOWSKI, Joachim. Teoria das normas e dogmática jurídico-penal. Trad. Alaor Leite. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano; ASSIS, Augusto (orgs.). Direito penal e teoria das normas: estudos críticos sobre as teorias do bem jurídico, da imputação objetiva e do domínio do fato. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 33 (nota de rodapé 43).
19 No mesmo sentido, FRISCH, Wolfgang. Delito y sistema del delito. Trad. Ricardo Robles Planas. In: WOLTER, Jürgen; FREUND, Georg (orgs.). El sistema integral del derecho penal. Madri: Marcial Pons, 2004, p. 239.
20 Isto é, o mundo sensível, situado no espaço e no tempo; o local onde os atos humanos acontecem.
21 BURGESS, Anthony. Laranja Mecânica. 2ª ed. 6ª reimpressão. Trad. Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2014, p. 85.
22 Não no sentido da pena como imperativo categórico, mas de que somente a realização e um injusto penal é suscetível de pena.
23 Exemplificativamente: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 55-57; GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 13ª ed. Niterói: Impetus, 2011, p. 47-49; MARTINELLI, João Paulo; BEM, Leonardo Schmitt de. Lições fundamentais de direito penal: parte geral. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 171-172; REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal: parte geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 21-26; SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 7ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. p. 5-6.
24 Isso não passa despercebido, por exemplo, por SCHÜNEMANN, Bernd. O direito penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos: sobre os limites invioláveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. Trad. Luís Greco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 53, p. 9-37, 2005, p. 16.
25 Por exemplo, ROXIN, Claus. Finalismo: um balanço entre seus méritos e deficiências. Trad. Marina Pinhão Coelho. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 15, n. 65, p. 9-25, 2007, p. 19-20.
26 Similar, GRECO, Luís. Das Subjektive an der objektiven Zurechnung: Zum „Problem“ des Sonderwissens. Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, Freiburg, n. 117, p. 519-554, 2005, p. 529.
27 ROXIN, Claus. A teoria da imputação objetiva. Trad. Luís Greco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 10, n. 38, p. 11-31, 2002, p. 21.
28 Expressamente, ROXIN, Claus. Ingerencia e imputación objetiva. Trad. Raúl Pariona Arana. Revista Penal, Madri, n. 19, p. 152-161, 2007, p. 153.
29 Kant já defendia a ideia geral segundo a qual todo injusto é violador de um dever: “Justo ou injusto (rectum aut minus rectum) em geral é um ato enquanto é conforme ou contrário ao dever (factum licitum aut illicitum), seja de que espécie for o próprio dever, segundo seu conteúdo ou sua origem. Um ato contrário ao dever se chama transgressão (reatus)” (grifado no original). KANT, Immanuel. Princípios metafísicos da doutrina do direito. Trad. Joãosinho Beckenkamp. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 26.
30 Sobre essas categorias, cf. GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 59-70.
31 Abstrai-se, aqui, o nível do alcance do tipo, por duas razões: (i) a doutrina dominante não recepciona essa categoria, por entender que o que o Roxin ali pretende resolver pode ser aferido no desvalor da ação ou no desvalor do resultado; (ii) não sendo parte da opinião dominante, pode-se prescindir dessa categoria para simplificar o raciocínio. Dessa forma, veja-se que a imputação ficaria ainda mais complexa com a adição do alcance do tipo, agravando o problema à luz do princípio da economia.
32 Isso somente ocorre porque há uma certa relação entre vida e integridade física, de modo que para lesionar uma vida é pressuposto que se afete a integridade física da vítima. Desse modo, no exemplo citado, não houve a consolidação do risco de morte criado, mas houve o de lesão corporal. Assim, não sendo possível um homicídio culposo tentado, resta a imputação por lesão corporal culposa consumada. Todavia, na medida em que vida e integridade física não são os únicos bens protegidos por delitos de resultado, é possível pensar em exemplos em que a ausência de desvalor do resultado acarrete a atipicidade da conduta em razão da ausência de dolo (pense-se no delito de dano, por exemplo).
33 Cf. JAKOBS, Günther. Criminalización en el estadio previo a la lesión de un bien jurídico. Trad. Enrique Peñaranda Ramos. In: Bases para una teoría funcional del derecho penal. Lima: Palestra Editores, 2000, p. 209-248; JAKOBS, Günther. Representación del autor e imputación objetiva. Trad. Carlos J. Suárez González. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madri, v. 44, n. 2, p. 493-513, 1991.
34 Em outras palavras, é inegável que a classificação de tipos objetivo e subjetivo tem um valor didático e possui consequências sistêmicas. Veja-se, por exemplo, como o deslocamento do dolo para a tipicidade influenciou o debate acerca da teoria do erro. Todavia, isso não pode significar nada quando se pensa em termos de desvalor da conduta, pois, a rigor, também o dolo é analisado na perspectiva ex ante, e isso por uma razão simples: o que importa é o status mental do agente no momento da sua ação. Se a concepção ex ante é a correta por evitar um dever impossível, por óbvio essa limitação não abarca os conhecimentos especiais. Dessa forma, um crítico dos conhecimentos especiais no desvalor da conduta deveria argumentar mais do que simplesmente remeter-se à diferenciação entre tipos objetivo e subjetivo, tendo em vista que não é este o cerne do problema. Aqui, uma consideração de justiça é fundamental: por questões de isonomia, é justo exigir mais daquele que mais sabe, na medida em que o maior conhecimento fornece ao agente mais poderes de agir quando comparado a um ser humano que desconhece.
35 Observando essa diferença, RAZ, Joseph. The morality of freedom. Nova Iorque: Oxford University Press, 1988: “Se o valor da liberdade depende de outros valores dos quais ter várias liberdades serve, então a liberdade em si não é valiosa. Se a liberdade é intrinsecamente valiosa, uma teoria da liberdade não se tornará uma teoria de liberdades heterogêneas não relacionadas” (em tradução livre).
36 A exceção que posso verificar a essa tendência é GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 56-58, que defende que o primeiro fundamento do risco permitido é o núcleo de liberdade de cada cidadão que deve ser inalcançável pelo poder estatal e, para os demais casos, o fundamento está na referida ponderação.
37 Na doutrina brasileira, a principal defensora dessa concepção é SIQUEIRA, Flávia. O princípio da confiança no direito penal. 1ª ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016, p. 107-109.
38 No debate sobre o princípio da confiança no direito penal, foram poucos os autores que, mesmo que superficialmente, observaram a relação entre confiança e liberdade civil. Por exemplo, ABRALDES, Sandro. Delito imprudente y principio de confianza. 1ª ed. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2010, p. 196.
39 Cf. a ideia geral em ROXIN, Claus. A teoria da imputação objetiva. Trad. Luís Greco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 10, n. 38, p. 11-31, 2002, p. 19-20. Por outro lado, cf. GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 70-79, que inclui os institutos no local correto: o desvalor da conduta.
40 “Penso que o direito penal deve garantir os pressupostos de uma convivência pacífica, livre e igualitária entre os homens, na medida em que isso não seja possível através de outras medidas de controle sociopolíticas menos gravosas”. ROXIN, Claus. Que comportamentos pode o estado proibir sob ameaça de pena? Sobre a legitimação das proibições penais. Revista jurídica: órgão nacional de doutrina, jurisprudência, legislação e crítica judiciária, São Paulo, v. 52, n. 317, p. 69-81, 2004, p. 70.
41 Aqui, talvez, até o princípio da isonomia tenha algum lugar: no exemplo citado, se o direito de propriedade do automóvel englobasse o atropelamento, haveria um inadequado privilégio do motorista em detrimento do pedestre.
42 Exemplificativamente, veja-se a diferenciação kantiana entre imperativos categóricos e imperativos hipotéticos. Os primeiros regem-se deontologicamente, enquanto os segundos, de forma consequencialista. Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 50 e ss.
43 Estou abstraindo a possível circularidade deste argumento, somente para fins de argumentação.
44 “O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 68.
45 Ver supra, nota 33.
46 Para fins de simplificação do argumento, estou abstraindo o debate sobre em que medida as heterocolocações em perigo consentidas devem permanecer impunes, na medida em que há um extenso debate doutrinário acerca do tema. Há aqueles que entendem que nunca exclui a tipicidade (teoria da punição), aqueles que equiparam o instituto à autocolocação em perigo responsável, sempre excluindo a tipicidade (teoria da equiparação) e aqueles que adotam uma solução diferenciadora, aduzindo que em alguns casos exclui a tipicidade e, em outros, não (teorias da diferenciação).
47 No que tange à participação em autocolocação em perigo responsável, Roxin já sublinhou em mais de uma oportunidade que ela possui fundamento no fato de que somente a participação em uma violação típica de bem jurídico alheio é objeto da proteção de bem jurídico. Por exemplo, cf. ROXIN, Claus. Problemas de la imputación objetiva. Trad. Pablo Guillermo Lucero. Revista de Derecho Penal, Santa Fe, n. 2, p. 13-35, 2010, p. 25. Se essa limitação decorre de razões logicamente anteriores ao direito positivado – como é o caso dos direitos subjetivos –, isso não parece estar devidamente esclarecido. Ainda mais problemática é a argumentação contida em ROXIN, Claus. A teoria da imputação objetiva. Trad. Luís Greco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 10, n. 38, p. 11-31, 2002, p. 16, que busca amparo na impunidade da participação em suicídio no direito alemão. Além de esse argumento não ser válido no caso o direito brasileiro por aqui existir tal figura típica, o que fica pendente de questionamento é o seguinte: é justa a punição de um ato de participação em autolesão responsável de terceiro? Essa pergunta só pode ser respondida abstraindo o direito positivo; caso contrário, estar-se-ia caindo inevitavelmente numa petitio principii. Todavia, o problema pode não ser tão grande quanto parece, na medida em que o próprio Roxin reconhece que o seu posicionamento encontra guarida no princípio da autorresponsabilidade, o que, ao menos, o aproxima da figura do direito subjetivo.
48 Em seu mais recente artigo sobre heterocolocação em perigo consentida (Die einverständliche Fremdgefährdung – eine Diskussion ohne Ende? GA 2018), Roxin defende a sua teoria diferenciadora, que exclui a tipicidade somente nos casos em que a situação de perigo ocorreu por iniciativa da vítima ou quando esta participou conjuntamente do plano que levou à situação perigosa. O que interessa para o presente trabalho é que o autor em nenhum momento enfrenta diretamente o problema dos direitos subjetivos. O mais próximo que se chegou foi em afirmar que o instituto não é uma forma de consentimento ao resultado lesivo. Todavia, não fica muito bem elucidado se o autor considera ou não se se colocar em uma situação perigosa ou consentir para ela está ou não abarcado pela função de gozo do direito subjetivo. Ademais, a solução proposta pelo autor não parece levar em conta essa questão, pois o que ele busca é uma equiparação normativa da figura com a participação em autocolocação em perigo responsável de terceiro. No mesmo ano da publicação alemã, o artigo ganhou uma tradução espanhola. Cf. ROXIN, Claus. La heteropuesta en peligro consentida: una discusión sin final? Trad. Beatriz Escudero García-Calderón. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madri, n. 71, p. 53-73, 2018.
49 “Os bens supraindividuais são definidos, em contraposição aos individuais, como sendo aqueles que atendem às necessidades de todos e cada um dos membros da sociedade”. BADARÓ, Tatiana. Bem jurídico-penal supraindividual. 1ª ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017, p. 182-183.
50 Corretamente, GRECO, Luís. Existem critérios para a postulação de bens jurídicos coletivos? In: MACHADO, Marta Rodriguez de Assis; PÜSCHEL, Flavia Portella. Responsabilidade e pena no Estado democrático de direito: desafios teóricos, políticas públicas e o desenvolvimento da democracia. São Paulo: FGV Direito SP, 2016, p. 438.
51 Cf. GRECO, Luís. Lo vivo y lo muerto en la teoría de la pena de Feuerbach: una contribución al debate actual sobre los fundamentos del Derecho penal. Trad. Paola Dropulich e José R. Béguelin. Madri: Marcial Pons, 2015, p. 259-261.
52 Ibidem, p. 260-261.
53 “Mas não há entidade social com um bem que suporte algum sacrifício para seu próprio bem. Há apenas pessoas individuais, pessoas diferentes, com suas vidas individuais próprias. Usar uma dessas pessoas em benefício das outras implica usá-la e beneficiar os demais. Nada mais. O que acontece é que alguma coisa é feita com ela em benefício dos outros. Conversas sobre bem social geral disfarçam essa situação. (Intencionalmente?) Usar uma pessoa dessa maneira, além de indicar desrespeito, não leva em conta o fato de que ela é uma pessoa separada, que é sua vida de que dispõe. Ela não obtém algum bem que contrabalance seu sacrifício, e ninguém tem o direito de obriga-la a isso – e ainda menos o Estado ou o governo, que alegam que lhe exige a lealdade (o que outros indivíduos não fazem) e que, por conseguinte, deve ser escrupulosamente neutro entre seus cidadãos”. NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991, p. 48.
54 Cf., por todos, ROXIN, Claus. Derecho penal, parte general, tomo I: fundamentos. La estrutura de la teoria del delito. Trad. da 2ª ed. Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madri: Civitas, 1997, p. 623-628.
55 Em razão de a legítima defesa não ser o tema do presente trabalho, aqui só é possível abordá-la superficialmente: se o instituto possui fundamento no direito de defesa, que, por sua vez, está incluído na função de exclusão de todo direito subjetivo, a conclusão natural é que só é possível agir em legítima defesa em favor de direitos subjetivos, ou seja, nos delitos em que se tutela bens individuais. Para uma exposição mais detalhada do direito de legítima defesa, cf. AMARAL, Rodrigo. Existe um direito de legítima defesa? JOTA, São Paulo, 2019. Disponível em: www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/existe-um-direito-de-legitima-defesa-11112019. Acesso em: 16 nov. 2019.
56 Apesar de aqui criticado por sua teoria da imputação não considerar suficientemente os direitos subjetivos, Roxin parte de um conceito de bem jurídico bastante próximo à concepção aqui sustentada: “Compreendo por bens jurídicos todos os dados necessários para uma convivência livre e pacífica dos cidadãos sob a égide dos direitos humanos. Isso vale tanto para os bens jurídicos individuais, como vida, saúde ou propriedade, quanto para bens jurídicos coletivos, tais como a organização do Estado ou a Justiça. Afinal, uma convivência livre e pacífica pressupõe o funcionamento do aparato estatal e da Justiça.”. ROXIN, Claus. Fundamentos político-criminais e dogmáticos do direito penal. Trad. Alaor Leite. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 23, n. 112, p. 33-40, 2015, p. 34.
57 SCHÜNEMANN, Bernd. Del derecho penal de la clase baja al derecho penal de la clase alta. ¿Un cambio de paradigma como exigencia moral? Trad. Lourdes Baza. In: Temas actuales y permanentes del derecho penal después del milenio. Madri: Tecnos, 2002, p. 59-62.

58 GRECO, Luís. Existem critérios para a postulação de bens jurídicos coletivos? In: MACHADO, Marta Rodriguez de Assis; PÜSCHEL, Flavia Portella. Responsabilidade e pena no Estado democrático de direito: desafios teóricos, políticas públicas e o desenvolvimento da democracia. São Paulo: FGV Direito SP, 2016, p. 444-446.

Artigo publicado originalmente na Revista do Instituto de Ciências Penais, volume 5, de maio de 2020.

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